sábado, 11 de fevereiro de 2012

Tristão e Isolda, de Wagner, por Jorge Coli



Tristão e Isolda, de Richard Wagner, é uma obra máxima de toda a história cultural do Ocidente. Uma história de amor simples. Transformada pela música ela se torna uma paixão tecida essencialmente pelos sons que, eles mais que todo o resto, constroem e conduzem a representação.
O entrecho vem de uma lenda medieval.  Gottfried von Strassburg a havia fixado pela escrita no início do século XIII; a primeira edição moderna desse texto data de 1785. Tornou-se então muito popular: quem gosta de ópera lembra-se que o personagem de Adina, em L’elisir d’amore, de Donizetti, é apresentado zombando do romance, uma história inverossímil e sentimental demais. O elixir de Donizetti é uma graciosa e leve ironia sobre o de Isolda. L’elisir d’amore foi estreada em 1832, bem antes de Tristão, apresentado pela primeira vez em 1865 (Munique). Ela mostra que a história dos dois amantes era bem conhecida na primeira metade de século XIX.
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Os momentos principais que pontuam a gênese de Tristão e Isolda são os seguintes:
- Janeiro de 1852: Wagner conhece Otto Wesendonck (ou Wesendonk), um negociante muito rico. Sua esposa Mathilde, sensível, escreve poemas e tem notável beleza. Wagner fica imediatamente seduzido por ela.
- Setembro de 1854: Wagner descobre o livro de Schopenhauer, O mundo como vontade e representação, que o marca definitivamente.
- Outubro de 1854: Wagner tem, pela primeira vez, a idéia de escrever uma ópera sobre o tema de Tristão e Isolda.
- Abril de 1857: Otto Wesendonck aluga a Wagner uma pequena casa, ao lado da mansão que construía para si próprio. O preço é muito módico. Wagner a chama de Asyl: asilo. Otto Wesendonck auxilia Wagner financeiramente.
- Agosto de 1857: os Wesendonck se mudam para a casa recém construída. Nesse mesmo momento, Wagner começa a escrever o libreto de Tristão. Logo se tece uma relação amorosa entre Wagner e Mathide.
- Novembro de 1857-58 - maio de 1858: Wagner escreve a música para cinco poemas de Mathilde, que formam o ciclo Wesendonck Lieder. Há neles, de maneira esboçada, algumas idéias que serão desenvolvidas na composição de Tristão e Isolda. Dois deles, Im Treibhaus (Na estufa) e Träume (Sonhos), trazem um subtítulo do compositor que especifica: “estudo de Tristão e Isolda”. Ao mesmo tempo, Wagner avança na composição de sua ópera.
- Abril de 1858 – Minna, a esposa de Wagner, descobre uma carta que revela sentimentos intensos entre seu marido e Mathilde. Minna, furiosa, retira-se para uma estação de águas.
- Agosto de 1858 – As relações de Wagner com Otto Wesendonck se degradam. Sem romper com ele, o compositor muda-se para Veneza, onde termina o segundo ato da ópera.
- Abril – agosto de 1859 – em Lucerna, Wagner termina a composição da ópera.
- 10 de junho de 1865 – estréia, em Munique, de Tristão e Isolda, financiada pelo rei Ludwig II, que se torna o grande mecenas de Wagner.
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Tais etapas, por sucintas que sejam, permitem situar dois pontos essenciais na criação da obra. O primeiro é a intensa relação amorosa vivida por Wagner e Mathilde Wesendonck, relação que espelha a dos amantes na ópera: assim como Tristão com o Rei Marke, Wagner tinha em Otto Wesendonck um amigo e um protetor. As dificuldades e separações nos dois casos  - ou seja, na ficção e na realidade - exasperaram a intensidade amorosa.
O segundo é a leitura de Schopenhauer. Tristão não ilustra uma teoria. Mas Wagner entusiasmara-se pela idéia desenvolvida por aquele filósofo de que a arte é um conhecimento fora da razão capaz de libertar o espectador de sua vontade: a consciência se esvazia para dar lugar à plenitude do gozo artístico; nesse êxtase, o indivíduo esquece-se de si e se funde na energia estética. Ao determinar essas características, Schopenhauer é levado a perceber na música a soberana das artes, porque é a mais etérea, a que menos se vincula ao mundo material.
Esses princípios explicam, ao menos em parte, o caráter poderosamente hipnótico de Tristão e Isolda. Não se trata de ação teatral: trata-se de representação, no sentido mais alto da palavra, o de figuração imaginária, reunida à vontade (impulso em direção de algo, desejo), que é, segundo Schopenhauer, o princípio determinante do mundo.
Por isso, Tristão e Isolda é radical, em relação mesmo às outras óperas criadas por Wagner. A ação está na música, que cria uma teatralidade ao mesmo tempo erótica e espiritual.


O compositor, em sua prática musical, mas em textos teóricos também, concebera a ópera como “uma obra de arte total” (que, em alemão, se resume numa palavra bem complicada: Gesamtkunstwerk). Os libretos, que o próprio Wagner se encarregava de redigir, e a beleza da montagem (que ele controlava obsessivamente), traziam poesia e artes plásticas para a síntese final. Mas o radicalismo de Tristão confere tal prevalência à música, que poesia e aspectos visuais tendem a se dissolver nos sons.
Diversamente de O anel do Nibelungo, de Parsifal, com seus efeitos teatrais espetaculares e ilusórios, as palavras e o teatro se introduzem discretamente na música de Tristão, sustentando o sentido narrativo, mas fazendo um mínimo. A música se encarrega do resto.
Aqui, outra idéia de Wagner atinge uma força inaudita. Trata-se dos motivos condutores (Leitmotive, no plural; Leitmotif, no singular), que são temas musicais destinados a tecer um sistema de reminiscências: assim, tal melodia é associada à cólera de Isolda, ou ao filtro do amor. Ritmos e harmonias podem adquirir também papel significante.
Os motivos condutores reaparecem cada vez que as situações se repetem, ou quando são evocadas. Mesmo modificados, contêm sempre um núcleo constante que o ouvinte reencontra e reconhece, consciente ou inconscientemente.
A música toma, portanto, um papel narrativo para além das palavras, e acentua a teatralidade por meios puramente sonoros. Ela também se torna apta para fazer sentir as nuances mais finas das relações entre os personagens.
Hipnose musical, que leva o espectador por meios que se infiltram nas emoções: Wagner reduz os episódios ao mínimo, e expande ao máximo as sensações e sentimentos. O segundo ato, que dura mais de uma hora, quase que se reduz a um dueto de amor, que um crítico caracterizou como “o mais longo orgasmo da história”. O último ato, excetuando-se os últimos minutos em que Isolda vem fundir-se com Tristão para além da morte, é apenas a expressão de uma espera.
O final de Tristão nos diz, porém, que a música, arte da temporalidade, termina, numa reviravolta, anulando a temporalidade porque se fez êxtase. Wagner dilatou ao extremo os limites da harmonia tal como a cultura do Ocidente a concebera. Muito se falou sobre o cromatismo de Tristão, sobre a liberdade tonal de Wagner nessa ópera. Com isso, o compositor eliminou o princípio conclusivo que presidia às construções musicais; o próprio Wagner forjou a expressão de melodia infinita (Unendliche Melodie), mas talvez fosse melhor dizer “música infinita”, em que infinito e eternidade se identificam.
 Isolda encontra Tristão morto, depois que o herói agoniza. Contudo não é tarde demais. Quando ela se entrega ao aniquilamento, o término está além do tempo. O todo se completa. Ou nem isso. É o todo, e basta. No mundo de verdade, ou seja, no mundo das artes, da música, da ópera, começo e fim são meras aparências.


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