quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Danillo Villa: quadros de uma exposição

por Jardel Dias Cavalcanti
           

"O êxtase da liberdade não objetiva me levou até o deserto, onde não existe outra realidade se não a sensibilidade; assim a sensibilidade se converteu no único conteúdo da minha vida”. (Malévitch)

"Para nós, homens, a natureza está mais na profundidade do que na superfície”. (Cezánne)

APRESENTAÇÃO
O artista plástico Danillo Villa criou entre os anos de 2009 e 2010 uma série de pinturas abstratas que denominou “P.S” (paisagem e superfície), seguindo cada tela a nomeação em ordem numérica, “P.S1”, “P.S2”, consecutivamente. Os trabalhos são em acrílica sobre tela, tendo dimensões que variam ente 110 cm a 180 cm.
É um conjunto formidável de pinturas que dão um novo fôlego à criação e às pesquisas em arte abstrata, num momento em que muito do foi criado, de Kandinsky ao abstracionismo geométrico ou ao expressionismo abstrato, se cristalizou, oferecendo a alguns artistas apenas fórmulas muitas vezes vazias e comerciais. Não é o caso de Danillo Villa, que ousa novamente enfrentar a tela branca com inusitados e profícuos resultados.
Diante de suas telas temos a sensação de que a arte é para ele um espaço vazio, que estava por vir e que precisa ser (re)inventada. Despido de qualquer programa que lhe servisse como um mapa seguro no território da pintura, armado apenas do domínio de seus meios, o artista seguiu em frente, em direção ao inominável do processo da criação, fundando, ali, em cada nova tela, um novo mundo.
La mer, la mer, toujours recommencée!
O récompense après une pensée.[1]

VER A ARTE ABSTRATA

Na definição de Meyer Schapiro, a arte abstrata ampliou os meios de que dispõe o artista para a pesquisa de regiões de sensações e percepções anteriormente desconhecidas. Também para o público, o mesmo ocorre. Mas para se ter acesso a esse universo é preciso uma contínua e séria experiência de observação. E o ato de ver pode ser pensado, nesse caso, de um ponto de vista sensualista, como a disposição de receber o que é visto, já que, fenomenologicamente falando, o sensível já possui um sentido imamente, pré-categorial, que "já está aí". As razões da arte abstrata e a relação do público com ela se reconhecem no mistério desta encarnação.
Isso nos faz trazer aqui a idéia da "visualidade pura", de Fiedler, que diz que a arte é uma linguagem específica, que se produz de acordo com suas próprias leis, que os conceitos não podem explicar. O objetivo da "visualidade pura" consiste em livrar a forma de qualquer psicologia ou história, ligando-a às nossas faculdades perceptivas. Ou seja, a forma é um dado visual que satisfaz plenamente a intuição, sem necessidade de representar outra coisa que o que não pode ser representado.
Ainda podemos pensar em Worringer e seu tratado Abstraktion und Einfühlung (Abstração e empatia), que sugere a idéia da significação interior da forma e, ao mesmo tempo, torna secundária a leitura do que ela representa. Uma espécie de queda livre no reino da experiência direta, sem mediações, onde a sensibilidade é levada para o reino do inominável, de forma que o conheça.
A arte abstrata nos propõe a reeducação do olhar. Existe uma história do corps prope da pintura que só o olhar demorado desvela. Alguns versos de Alberto Caieiro/Fernando Pessoa podem resumir bem essa idéia:
O essencial é saber ver,
saber ver sem estar a pensar,
saber ver quando se vê,
e nem pensar quando se vê
nem ver quando se pensa.
Mas isso exige um estudo profundo,
uma aprendizagem do desaprender.
(...) Que difícil ser próprio e não ver senão o visível!
Os monges Zen, segundo Leyla Perrone-Moisés, também pensavam dessa forma, sabendo que o olhar não é um instrumento de análise, mas abertura receptiva ao que se vê: "o contrário do olhar armado de conceitos, carregado de intenções intelectivas ou de projeções psicológicas, olhar que separa, que cinde, que destrói". O olho, elemento móvel e aberto para o mundo externo traz de volta para o sujeito o que foi visto e é nesse sentido que conhecer é ser invadido e habitado por imagens e não por conceitos.

É preciso ter uma mente de inverno
Para contemplar a geada...
(...)
Sendo nada ele mesmo, contempla
Nada que não está lá e nada que está.
(Wallace Stevens)

Ao olhar uma pintura abstrata o olhar seduzido não sabe onde pisa. Por isso anda cautelosamente pelo terreno e é assim que deve fazer. Se não há certeza do que essa sedução possa ser, pois se perdeu o rumo/certeza, só lhe resta aceitar o naufrágio da sedução. A obra de arte abstrata oferece ao espectador a possibilidade de esquecer o que ele sabe por experiência, pelo conceito e pelo pré-conceito.
A pintura, nesse sentido, é concebida como uma criação intrínseca, uma obra que deve manter-se em pé por um milagre, como um castelo de cartas, diria Flaubert, "sustentada pela força interna de seu próprio estilo".
A pintura abstrata coloca questões tais como: é possível significar algo exibindo, ao mesmo tempo, o sentido do que não pode ser dito? Espécie de voz do silêncio, leva o espectador a experimentar e a mergulhar nessa não-voz que diz, apesar disso, o sentido mesmo do que significa a linguagem em seu estado de pura visibilidade.
Como disse Valéry, a respeito do significado de sua obra poética, “se me interrogam, se se inquietam com o que eu quis dizer em tal obra, respondo que eu não quis dizer, mas quis fazer.


DANILLO VILLA: QUADROS DE UMA EXPOSIÇÃO


“Os prólogos se acabaram agora temos o problema.” (Wallace Stevens)

Após essa rápida introdução, podemos iniciar um comentário sobre a pintura do artista plástico Danillo Villa.
A primeira observação que podemos fazer é que as sua telas não são uma arte do evocativo, mas da dimensão física, interna, da própria matéria e sua relação com seus espaços, seus vãos e as linhas de força que interagem dentro dessas dimensões.
Como pintor abstrato ele é herdeiro das singularidades do projeto moderno: seja a subversão dos sentidos, o desprezo pela informação catalogada, a busca pela eliminação dos excessos e a recusa pela imagem imitada do real.  O que o faz, querendo ou não, expor no interior da própria obra o processo, as operações e as relações que a pintura cria ao mesmo tempo em que é criada.
De uma forma geral, a pintura de Danillo Villa se organiza a partir de alguns elementos que criam uma tensão entre duas forças: um elemento de acaso e, de outra parte, elementos onde se pode controlar o resultado. O primeiro momento é aquele em que o artista escolhe de que forma certos elementos serão constituídos e o segundo momento é o do atirar-se no desconhecido, sem prévia definição do que virá. E o resultado nos indica que foi com calma, paciência e penetração que as escolhas foram feitas a partir desses dois movimentos.



            Não se pode controlar totalmente uma linha de tinta que escorre sobre a tela, embora seja o artista que escolherá que cor e que porção desta tinta escorrerá. Sobre que fundo se manterá em suspenso esses corrimentos é escolha também da vontade do artista. Como ele pode controlar também, através das experimentações, que peso um corrimento poderá ter sobre o efeito global da tela. E o propósito contrário de deixar-se levar por alguns acasos será em seguida colocado em relação com as outras escolhas dentro da pintura, pensada ela toda como um organismo único.
É notável em cada tela a luta entre o momento necessário para se ceder ao acaso e, por vezes, o momento de não ceder e o reagrupamento desses movimentos na constituição de cada pintura. E é percebendo como próprio do resultado do trabalho o processo de tensionamento inerente a estes elementos, que se pode dizer que a obra de Danillo Villa é fruto de um demorado processo de experimentação.
No terreno abstrato, o pintor interroga o espaço, a relação entre cores-tons (Baudelaire definia a cor como o acordo entre tons) e forma, a relação entre matéria e expressão, instaurando a obra como valor em si, como construção - onde volumes, linhas, traços, resíduos, são os "vasos comunicantes" do corpo da pintura.

           

Como nós sabemos, os meios não podem ser separados dos fins numa obra de arte. A obra não pode ser desejada a priori e executada segundo uma formulação total do que se pretende que ela seja. Ela cresce a partir de escolhas iniciais que se tornam donas de uma lógica própria e o momento seguinte, que é determinado por esse início. Se o resultado são belas e preciosas jóias, como no caso do Danillo Villa, é porque as escolhas iniciais e finais acabaram tornando-se acertos.
A complexidade da pintura de Danillo Villa se revela no fato de que seu repertório de formas foi obtido por meio de ambigüidades e paradoxos, embora seja difícil definir estes termos em uma matéria pictórica abstrata.
As formas que o artista cria, derivam os seus significados do fato de serem matérias que ecoam por todo o quadro segundo relações contrastantes que são estabelecidas entre as cores, as texturas, os volumes e a ação que se desdobra em um resultado perceptivo ao criador entre as partes e o todo nas telas.
O que percebemos é que embora a superfície pictórica final possa ser sugestiva em seu efeito (já que ela nos impressiona de várias maneiras), na origem ela é de natureza analítica e não é uma necessidade de expressão subjetiva do autor. Agindo na arena de sua tela, o pintor parte para a correção ou rejeição de elementos a partir de agudas percepções das relações pictóricas que surgem no andamento do seu trabalho. O que o interessa é produzir uma sensação pictórica convincente.
Portanto, a ação de julgar os resultados de cada momento do andamento de uma pintura é tão importante para o artista quanto sua execução. Um profundo conhecimento sobre a matéria pictórica que se manipula é necessário nessa operação e Danillo Villa, como percebemos pelo resultado de suas telas, detém esse conhecimento.


Reduzida à intensidade de suas significações internas, sua pintura elimina os elementos convencionalmente unitários das significações do espaço, do tempo e da subjetividade.
Um elemento objetivo só se torna compreensível na sua relação com outros elementos.
            Uma pincelada revela o gesto que a produziu, como cada matiz das cores (e sua vibração luminosa ou opaca) define o alargamento do resultado que se quer obter. Nas telas de Danillo Villa superfícies são fendidas pelo pincel e vivem sob o efeito da queda de gotas de tinta que escorrem sobre a tela já pintada. Matérias e cores se insurgem sobre espaços pintados (que já são por si transparentes revelando outros espaços internos) gerando contrapontos que nos fazem pensar na "Oferenda musical" de Bach, plena de ricercari e fugas.

As telas se constroem a partir de pequenos incidentes de matéria pictórica. Por vezes estes incidentes criam linhas de forças verticais, outras vezes horizontais, abrindo espaços secretos por onde nosso olhar deseja caminhar, como que indo para dentro, para o interior da tela; outras vezes corrimentos de tintas nos impedem de percorrer esse caminho, pois como farpas de tinta anunciam a degradação desse mesmo espaço. Mas tudo é alusivo sem ser definível. Nas telas percebemos atmosferas entre os vãos da matéria colorida. São como espaços sonhados, apenas sonhados, nos quais jamais penetraremos. Talvez aqui se anuncie sua riqueza, a de tornar possível uma vivência não referencial, inconclusiva, na própria forma que parece inconclusiva.
Como uma substância mineral, cuja forma é outra realidade dentro do quadro, os pigmentos vivem, na tela, sua própria vida, longe do que podemos chamar de representação e seus derivados, o individual, o pessoal, o contingente.
Não se pode pensar nessas telas como uma situação de conforto, já que suas entranhas guardam paradoxalmente a luta que se estabeleceu para o artista entre o devir da realização e sua constante tensão do medo da impossibilidade. Isso, no entanto, nos prende mais ainda a estas obras que são telas-forças poderosas suspensas sobre as paredes brancas de uma Galeria.
A exigência de uma contemplação demorada e silenciosa é o preceito mínimo para que se possa usufruir das intricadas redes de sugestões que cada quadro oferece. Essas telas, espécies de campos geológicos, só podem ser bem percebidas através do olho meditativo que passeia por este terreno. E este terreno não é tão seguro, já que a própria matéria operada pelo artista parece não querer se consubstanciar, buscando, talvez sugerir seu ocaso a cada momento.
Se a matéria pode estar agonizando aqui, ali ela está em estado de franca exaltação. Mas isso não depende do nosso olhar, ao contrário, depende mais da determinação do artista ou do resultado a que se chegou e no qual as telas nos trazem à mente. Temos a sensação ao nos depararmos com essas obras de que Danillo Villa está plenamente consciente destes acontecimentos e dos resultados que invadirão o olhar do expectador. O trabalho do artista não estabelece uma relação relaxada com o espectador, ele quer mantê-lo sob suas rédeas, ao que parece.
Raramente é possível o entendimento desta pintura à partir de um coup de foudre. O desvendamento de seu sentido só se dá, e se dá mais e mais, no contato demorado, na relação do reconhecimento de parte a parte do território destas pinturas. Esse exercício Danillo Villa nos impõe, nos ensinando ainda que em arte há uma forma particular de Ver.
O que não se pode esquecer nesta relação é que a pintura tem uma vida própria, independente do espectador. Seu organismo é formado por linhas, traços, cores, elevações e recuos de matéria pictórica. Estes elementos dominam a priori o que vai se passar em nossa mente, o que vai atingir nossa sensibilidade. Como disse Kandinsky, no seu livro Do Espiritual na Arte, "existem cores que parecem ásperas e que ferem o olhar. Outras, ao contrário, dão a impressão de serem polidas e aveludadas".
Essas pinturas de Danillo Villa tornam nossos olhos voyeurs, e os colocam arrancando prazer de todas as partes dos objetos que devassam. E as telas parecem sussurrar nos nossos ouvidos: "é assim mesmo que nós queremos ser olhadas".
O espaço não se configura como uma forma fechada para o artista, mas como forma ilimitadamente aberta, com divergências de planos e longe de qualquer sentido perspectivo. O espaço é possibilidade de movimento. É a dinâmica dos volumes e superfícies e os ritmos impostos à matéria que formam o eixo sob o qual a tela se mantém em pé. Onde o espaço não é uma forma geométrica ele é fenômeno. O espaço é a atividade concreta e construtiva que determina a forma.
A concretude plástica de cada tela depende da coesão e da capacidade da tensão da matéria se modular em planos de força onde massas plásticas em tensão transformam-se em um impulso inerente à matéria e à forma.
A capacidade de coesão na tensão entre as massas plásticas e suas cores é o que mantém as telas dentro daquela idéia de que toda invenção ou criação será sempre invenção ou criação de espaço.
É preciso vitalizar a matéria para que ela possa respirar para além do simples dado da contemplação, admiração ou reflexão, tornando-se, isto sim, o signo da presença ativa de uma outra realidade, tão impositiva quanto a da vida orgânica dos homens.
Há tramas que se constituem como um entrelace de cores e texturas que se sobrepõem a fundos muitas vezes apenas sugeridos, constituindo uma tapeçaria rica em espaços internos e externos, entre forças horizontais e verticais. Vislumbramos tonalidades sutis através do invólucro diáfano e cambiante dos corrimentos, que lembram uma impressão atmosférica no qual mergulham obscuros tons quase indefiníveis. Uma imagem completa que, obedecendo à forma das cores que agitam a tela, torna-se uma espécie de nevoeiro que dissolve toda certeza, mas que se mantém firme na sua fluidez; do fundo da pintura vislumbramos uma luz que transpassa, aqui e ali, corrimentos de cor, mesmo que os reflexos trepidantes só nos deixem a certeza de um céu pronto a desabar.
Numa pintura que traz na sua constituição a instabilidade, corrupção e transformação contínua da forma, o que se exige do espectador é um estado de tensão e não de relaxada contemplação.
Do que há de brilho e do que há de tremor, para estas telas faço minhas as palavras de Fernando Pessoa: "Olho e contenta-me ver".
Finalizando, gostaria de dizer que quando volto a estar diante destas telas e retomo o que escrevi sobre elas, faço minhas as palavras de Beckett, dizendo que minhas “suposições tão descabidas, tanto umas quanto as outras, pois basta enunciá-las para desejar não ter dito nada”. E que apenas a pintura fale diretamente aos meus olhos e aos olhos dos espectadores o que ela é: uma imagem plena de significados, mas guardados no silêncio de seu próprio corpo.



[1] O mar, o mar, sempre recomeçado!
Ó recompensa, após o ter pensado.

In: VALÉRY, Paul. O cemitério marinho. São Paulo: Max Limonada, 1984.

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