domingo, 17 de março de 2013


Como viver sem ironia — 
por Christy Wampole

Se a ironia é o éthos de nossa época – e ela de fato é –, então o hipster é o nosso arquétipo do estilo de vida irônico.
O hipster assombra todas as ruas da cidade e cidades universitárias. Manifestando uma nostalgia por épocas que ele mesmo jamais viveu, esse arlequim contemporâneo se apropria do que há de mais ultrapassado no que diz respeito à moda (bigodes, shorts minúsculos), quinquilharias (bicicletas de marcha única, toca-discos portáteis) e hobbies (produção artesanal de bebidas, tocar trombone). Ele cultiva a esquisitice e o constrangimento e passa por várias etapas de autoavaliação antes mesmo de tomar qualquer decisão. O hipster é um pesquisador das formas sociais, um estudioso do que é cool. Ele estuda implacavelmente, escavando em busca daquilo que não foi ainda descoberto pelo público geral. Uma citação ambulante, suas roupas referem-se a algo muito além de si próprias. Ele tenta negociar o antigo problema da individualidade, não por meio de conceitos, mas a partir de coisas materiais.

É um alvo fácil para piadas. No entanto, rir do hipster é só uma forma diluída de sua própria aflição. Ele não é mais que um sintoma e uma das manifestações mais extremas do estilo de vida irônico. Para muitos americanos nascidos nas décadas de 1980 e 1990 – membros da Geração Y –, caucasianos de classe média em particular, a ironia é o modo primário para se lidar com a vida. Basta habitar um espaço público, virtual ou concreto, para ver o quanto esse fenômeno se encontra disseminado. A publicidade, a política, a moda, a televisão: quase todas as categorias da realidade contemporânea exibem essa vontade de ironia.
Tomemos como exemplo uma propaganda que se anuncia como propaganda, faz piada com o próprio formato e tenta atrair seu público-alvo para rir dela e com ela. Ela já reconhece, preventivamente, o próprio fracasso em produzir algo com sentido. Nenhum ataque pode ser feito contra ela, pois ela própria já se mostrou vencida. O molde irônico funciona como um escudo contra a crítica. O mesmo vale para o estilo de vida irônico. A ironia é o modo mais autodefensivo que existe, pois permite que a pessoa evite a responsabilidade das suas escolhas, estéticas ou não. Viver ironicamente é esconder-se em público. É uma forma, flagrantemente indireta, de subterfúgio – que significa etimologicamente “fugir em segredo” (subter + fúgio). De algum modo, tornou-se insuportável, para nós, lidar com as coisas de maneira direta.

Como isso aconteceu? Em parte, a situação deriva da crença de que essa geração tem pouco a oferecer em termos de cultura, de que tudo já foi feito, ou de que um compromisso sério com qualquer crença acabará substituído por uma crença oposta – de maneira que o compromisso inicial vire risível, na melhor das hipóteses, ou desprezível, na pior. Esse estilo de vida irônico funciona como uma desistência preventiva e assume a forma de reação, em vez de ação.
A vida na era da internet sem dúvida colaborou para que uma sensibilidade irônica florescesse. Nesse meio, uméthos pode ser disseminado de modo rápido e amplo. Nossa incapacidade de lidar com o que temos à mão é evidente em nosso uso de tecnologia digital e em nossa dependência cada vez maior dela. Ao priorizarmos o remoto em vez do imediato, o virtual sobre o real, somos absorvidos nas esferas pública e privada por aparelhinhos que nos levam a outros lugares.
Além disso, os ciclos de nostalgia tornaram-se tão curtos que tentamos até mesmo injetar o momento presente com sentimentalismo quando usamos, por exemplo, certos filtros digitais para deixar as fotos com um aspecto “apagado”, uma aura de historicidade. A nostalgia exige tempo. Não se pode acelerar o processo que dá sentido às lembranças.

Embora tenhamos adquirido novas habilidades (lidar com mais de uma tarefa ao mesmo tempo, conhecimento tecnológico), elas vieram às custas de outras habilidades: a arte da conversação, a arte de olhar para as pessoas, a arte de ser visto, a arte de estar presente. Nossa conduta não é mais governada pela sutileza, finesse, graça e atenção, todas essas qualidades que as décadas passadas prezavam mais que agora. Predominam, no momento, a introversão e o narcisismo.
Nasci em 1977, no final da Geração X, e tornei-me adulta nos anos 1990, uma década que, perfeitamente encaixada entre duas ruínas arquitetônicas – do Muro de Berlim em 1989 e das Torres Gêmeas em 2001 – parece agora ser relativamente sem ironia. O movimento grunge falava sério quanto à sua estética e atitude, com uma postura hostil à autoridade, semelhante à do movimento punk. Em minhas lembranças, que talvez sejam nostálgicas demais, o feminismo chegava a um ápice sem precedentes, as preocupações do ambientalismo ganhavam atenção mundial, e as questões de raça agora eram tratadas de modo mais aberto: todos esses movimentos continham em si as mesmas eletricidade e euforia que tocam as gerações quando testemunham uma mudança secular ou milenar.
Mas o ano 2000 veio e partiu sem nenhum desastre. Tínhamos esperança durante a década de 1990, mas a esperança é uma emoção muito vulnerável; precisávamos de um mecanismo de autodefesa, algo que toda geração tem. Para a Geração X, esse mecanismo assumia a forma de uma apatia diligente, o esforço ativo de não dar a mínima. Nosso arquétipo era o vagabundo que passava pela vida com preguiça, vestido de roupas de flanela, sozinho e incompreendido em seu quarto. E, quando nos entediávamos com a apatia, sentíamos uma raiva ou melancolia vaga, comendo antidepressivos como se fossem doces.
A partir desse ponto privilegiado de referência, um grupinho irônico parece ser confortável demais, desmiolado demais e complacente demais. O estilo de vida irônico é um problema de primeiro mundo. Para quem tem uma formação relativamente boa e segurança financeira, a ironia funciona como um tipo de cartão de crédito cuja conta nunca precisa ser paga. Em outras palavras, o hipster pode fazer investimentos frívolos em falso capital social sem precisar pagar de volta um único centavo sincero. Ele não é dono de nada do que possui.

É óbvio que os e as hipsters produzem uma irritação distinta em mim, uma que, até muito recentemente, eu não sabia explicar. Eles me provocam, porque são, como vim a perceber, uma versão amplificada de mim, apesar da distância com que os observo.
Eu também exibo tendências irônicas. Uma das dificuldades que tenho, por exemplo, é a de dar presentes sinceros. Em vez disso, dou o que no passado só seria aceito em “inimigos secretos”: uma pintura kitsch de alguma lojinha, uma caneca de café com imagens espalhafatosas do Texas, bonecos de plástico de luchadores mexicanos. Presentes bons para dar risada na hora, mas que valem pouco a longo prazo. Existe algo na responsabilidade de escolher um presente pessoal e significativo para um amigo que faz com que esse ato seja íntimo demais, importante demais. De certo modo, não consigo suportar a possibilidade de que um amigo não goste de um presente que eu tenha escolhido com sinceridade. O simples ato de perceber esse meu comportamento autodefensivo me fez pensar profundamente sobre o quanto esse posicionamento irônico podia ser potencialmente tóxico.
Em primeiro lugar, ele marca uma aversão profunda ao risco. Como resultado do medo e da vergonha preventiva, a vida irônica revela um amortecimento, uma resignação e uma derrota culturais. Se a vida tornou-se um mero apanhado de objetos kitsch, uma série infinita de piadas sarcásticas e referências à cultura pop, uma competição para ver quem consegue ser mais apático (ou, pelo menos, um espetáculo dessa competição), parece que, coletivamente, demos um passo em falso. Será que essa é a causa de nosso vazio e mal-estar existenciais? Ou seria um sintoma?
Ao longo da história, a ironia já serviu a propósitos úteis, como fornecer uma vazão retórica a tensões sociais de que não se falava. Mas nosso modo irônico contemporâneo é, de algum modo, mais profundo; ele já vazou do reino da retórica para o da própria vida. O éthos irônico pode levar a uma vacuidade e uma insipidez da psique individual e coletiva. Historicamente, os vácuos acabam preenchidos por alguma coisa – e, com muita frequência, alguma coisa perigosa. Fundamentalistas nunca são irônicos; ditadores nunca são irônicos; as pessoas que mexem com coisas na esfera política, independentemente dos lados que escolhem, nunca são irônicas.
Onde podemos encontrar exemplos da vida não irônica? Como ela é? Modelos não irônicos incluem crianças muito novas, pessoas de mais idade, pessoas muito religiosas, pessoas com sérias deficiências físicas ou mentais, pessoas que sofreram, e as que moram em lugares econômica ou politicamente complicados, onde a seriedade é o estado de espírito governante. Meu amigo Robert Pogue Harrison, numa conversa recente que tivemos, falou desse modo: “Sempre que o real se impõe, ele tende a dissipar a neblina da ironia”.
Observe uma criança de quatro anos de idade em sua vida cotidiana. Você não verá a menor indicação de ironia em seu comportamento. Ela ainda não assumiu, por assim dizer, o véu da ironia. Ela gosta do que gosta e declara seus gostos sem dissimulação. Não está particularmente consciente dos juízos dos outros. Não se esconde por trás de uma linguagem indireta. Os modelos mais puros da vida não irônica, no entanto, encontram-se na natureza: os animais e plantas são isentos de ironia, que existe somente onde habita o humano.
O que significaria vencer o empuxo cultural da ironia? Afastar-se do irônico representa dizer o que se pensa, pensar o que se diz e considerar a seriedade e a declaração direta como possibilidades expressivas, apesar dos riscos inerentes. Significa assumir o cultivo da sinceridade, da humildade e do autoapagamento, rebaixando o frívolo e okitsch em nossa escala coletiva de valores. E pode incluir também fazer um inventário honesto de si próprio.

Começa assim: dê uma olhada ao seu redor, em casa. Você se vê cercado de coisas de que gosta mesmo ou coisas de que gosta só porque são absurdas? Ouça o que você diz. Pergunte a si mesmo: Eu me comunico essencialmente por piadas internas e referências à cultura pop? Que porcentagem das coisas que falo tem sentido? O quanto me valho de linguagem hiperbólica? Eu me faço de indiferente? Olhe suas roupas. Quanto do seu guarda-roupa poderia ser descrito como peças de fantasia, derivativas ou reminiscentes de algum arquétipo de estilo específico (a secretária, o mendigo, a coquette, ou você quando era criança)? Em outras palavras, suas roupas fazem referência a alguma outra coisa, ou só a si próprias? Você tenta deliberadamente parecer nerd, estranho ou feio? Em outras palavras, o seu estilo é um antiestilo? A pergunta mais importante: como você se sentiria se sofresse uma mudança interna, em silêncio, off-line e sem que os outros vissem?
Ao longo das últimas décadas, vimos algumas tentativas de banir a ironia. Os movimentos, nas artes, do que é definido de modo frouxo como Nova Sinceridade vêm brotando desde que os anos 1980 se posicionaram como uma resposta ao cinismo, ao afastamento e à meta-referencialidade do pós-moderno (a Nova Sinceridade vem sendo associada recentemente aos livros de David Foster Wallace, aos filmes de Wes Anderson e à música de Cat Power). Mas nenhuma dessas tentativas vingou, como comprova a nova era da Ironia Profunda.
O que as futuras gerações farão com esse sarcasmo feroz e com o cultivo descarado da besteira? Será que ficaremos satisfeitos em deixar um arquivo cheio de vídeos de pessoas fazendo coisas idiotas? Será que um legado irônico é, de fato, um legado?
Com certeza, a vida irônica é uma resposta provisória aos problemas do excesso de conforto, do excesso de história e do excesso de opções, mas minha convicção firme é a de que esse estilo de vida não é viável, e oculta em si muitos riscos sociais e políticos. Deixar que um amplo segmento da população anule sua voz cívica, por meio do padrão de negação que descrevi, é sugar as reservas culturais da comunidade como um todo. As pessoas podem escolher continuar a se esconder atrás do véu da ironia, mas essa escolha significa render-se às entidades comerciais e políticas que ficarão mais que satisfeitas em assumir o papel de pais para cidadãos autoinfantilizados. Por isso, em vez de rir do hipster – um hobbie favorito, especialmente entre os hipsters –, tente determinar se as cinzas da ironia não se assentaram sobre você também. É preciso algum esforço para espaná-las.

Tradução de Adriano Scandolara
Christy Wampole é professora-assistente de língua francesa na Princeton University. Sua pesquisa tem como principal foco a literatura e o pensamento francês e italiano dos séculos 20 e 21. “How to Live Without Irony” foi publicado originalmente no blog Opinator, do The New York Times, dia 27 de novembro de 2012 (opinionator.blogs.nytimes.com/2012/11/17/how-to-live-without-irony).
* As imagens deste post foram retiradas do site Look at this fucking hipster e Halloween or Williamsburg.
fonte: http://www.revistaserrote.com.br/2013/01/como-viver-sem-ironia-por-christy-wampole/

quinta-feira, 14 de março de 2013


Michel Houellebecq:
Anatomia de uma lavagem cerebral


Quem por acaso visitasse Versalhes no ensolarado novembro de 2008 teria uma feliz surpresa: encontraria, entre os retratos de Luís XVI e Maria Antonieta, o busto de um jovem artista norte-americano, aspiradores de pó junto às rainhas da França, uma lagosta inflável em meio a seus lustres, a pantera cor-de-rosa em seu salão principal e, por último, mas não menos importante, uma escultura dourada, em tamanho real, de Michael Jackson e seu macaco de estimação como Maria e Jesus na Pieta de Michelangelo.
E lá estava o mestre do kitsch, Jeff Koons, ostentando seu sorriso de genro perfeito e aspecto de vendedor de Chevrolets. O homem que certa vez promoveu uma das maiores vendas de arte da história — e, em seguida, as obras desvalorizaram 900% —, no qual alguns vêem um visionário, outros um charlatão.
Um ano se passa e o romancista francês Michel Houellebecq, muito mais reconhecido por americanos do que por franceses, escreve para Koons os textos do livro de fotografias da exposição. A relação é inegável. Houellebecq também foi sempre visto de formas radicalmente opostas, há forte estratégia comercial em torno de sua obra e o autor somou alguns milhões a sua conta em uma troca “futebolística” de editora. A diferença está em que realmente assume uma imagem controversa, atacando o islamismo, defendendo a prostituição e dizendo que a literatura do século 20 nada significa para ele. Ao buscar sua imagem no Google, encontramos um senhor de aparentes sessenta anos, ou mesmo setenta, ora sem camisa, ora em pé numa cadeira, usando óculos de sol característicos de um jovem de vinte.
Em setembro do ano seguinte, o autor lança seu romance mais ambicioso, e suas primeiras palavras são — adivinhem — “Jeff Koons”.

Supervalorizado

O mapa e o território
 retrata a vida de um artista plástico francês chamado Jed Martin, que, depois de falhar no quadro Jeff Konns e Damien Hirst dividem o mercado da arte,alcança reconhecimentocrítico e financeiro através de uma série de pinturas de personalidades no exercício de suas atividades. Dentre todos os trabalhos, sua provável obra-prima é o perturbador retrato do grande escritor francês Michel Houellebecq (sic).
Contudo, o enredo pouco diz da obra. É sobretudo nos diálogos e digressões que o autor empenha sua pretensão universalizante. Por Jed passam reflexões sobre a arte, o amor, a política, o capitalismo e a morte. A arquitetura da qual seu pai tanto fala é sempre uma metáfora para o comportamento humano, assim como suas obras são para as profissões, uma reflexão sobre a organização da sociedade, os anos 2040 (no qual termina a narrativa), uma teoria de a que rumos estamos caminhando.
Enquanto isso, seu estilo busca a radicalidade da arte contemporânea. A apropriação de aspectos do best-seller, o trabalho com clichês, a estética do kitsch, observações sensacionalistas e a tentativa de um estilo “branco” ou de uma ausência de estilo — em analogia a artistas como Koons, que nem mesmo tocam em seus trabalhos — são os motivos do repúdio e da devoção em torno de sua obra.
Poucos dias após seu lançamento, o romance possui toda a atenção da imprensa. Apesar de alguns raros posicionamentos radicalmente desfavoráveis — e uma paródia chamada A massa e o supositório —, é seu livro mais bem recebido. Entra na corrida já avançada dos prêmios literários anuais, recebendo, de imediato, alguns de médio porte e se tornando forte candidato ao já nem tão prestigioso assim Goncourt, concedido anteriormente a autores como André Malraux, Simone de Beauvoir e Marcel Proust.
Se seu funcionamento equivalesse a sua ambição, teríamos uma obra tão brilhante quanto foi considerada, e seu autor mereceria o rótulo — dado invariavelmente por estrangeiros — de melhor autor da França atual. No entanto, embora muito acima de seus companheiros de alta vendagem, Houellebecq nivela por baixo os grandes mestres da contemporaneidade, quando a eles comparado.
Duas perguntas surgem, afinal: de que maneira o romance falha e por que o autor é supervalorizado?
Dentre acertos notáveis, o romancista subestima seus leitores ao moldar um texto predominantemente auto-explicativo, com páginas e páginas de informações imprescindíveis sobre arte e história, geralmente encaixadas de forma inorgânica ao personagem que as enuncia, como é característico de livros juvenis, ou de autoria de Dan Brown. O que não metaforiza a era da informação alienada, mas é tão somente um fator gratuito.
Outro problema é sua retórica insuficientemente madura para concatenar tantos âmbitos do conhecimento humano sem cair na generalização ingênua e pouco convincente. Erros que, por exemplo, W. G. Sebald não comete, ao se deparar com casos semelhantes em seu último romance.

Houellebecq vai ao mercado

A França hoje é vista de forma simplista, em associação ao liberalismo sexual e a decadência da Europa. Sua última figura pública de maior influência resolveu assediar uma camareira. Por transferência, também não se espera muito de sua literatura. Além disso, a dúzia de autores que nos são traduzidos passam primeiro pelo julgo anglófono. Na Wikipédia em inglês, e não no francês, há uma página dedicada ao movimento literário do “depressionismo francês”, em que apenas Houellebecq é citado. A revista americana TheNew Yorker considerou Marie Darrieussecq como uma das maiores promessas da jovem literatura européia por ser a “metamorfose erótica de sua geração”. A mesma revista dedicou uma matéria bem mais longa e elogiosa a Paulo Coelho.
O autor brasileiro também figura, junto a Houellebecq, nas edições norte-americana e britânica dos 501 grandes escritores e 1001 livros para ler antes de morrer. Dadas as devidas proporções de qualidade, o pessimismo de um e o misticismo de outro são vistos de forma igualmente exótica. O filtro do sucesso comercial funciona para a crítica estrangeira exatamente como para a decisão do autor francês de escrever um romance sobre arte contemporânea citando apenas os dois artistas que dominam — e não “dividem” — o mercado.
Precisamente como todo o resto dos artistas plásticos de hoje, seu conterrâneo mais jovem Mathias Énard, autor de um romance de quinhentas páginas e uma única frase de título La zone, considerado por alguns franceses como “o romance da década, senão do século”, é excluído automaticamente da disputa pelo trivial rótulo de maior autor francês por três motivos simples: sua vendagem é muito mais baixa, sua dificuldade de leitura bem maior e, em países como o Brasil, sua obra, vários anos após seu lançamento, ainda não foi traduzida.
Dois meses depois, O mapa e o território vence o Goncourt.


É crítico literário e tradutor de obras de Charles Dickens, entre outros. Vive no Rio de Janeiro (RJ).  

Publicado em: http://rascunho.gazetadopovo.com.br/anatomia-de-uma-lavagem-cerebral/

sexta-feira, 1 de março de 2013


NAPOLEÃO por Jacques-Louis DAVID

David- Napoleão cruzando os Alpes (1801)


Poucos soldados ou estadistas foram tão apoiados pela propaganda da arte quanto Napoleão Bonaparte. Ainda que ele próprio não o tenha, talvez, iniciado, Napoleão certamente ajudou a consumar o culto da personalidade em todo o seu romântico poder. Das suas muitas imagens, nenhuma é tão poderosa quanto Napoleão cruzando os Alpes, de David.
O quadro é uma obra-prima da técnica clássica e emoção romântica. Isso não é um mero paradoxo. O desenvolvimento da teoria clássica teve lugar, no decurso do século XVIII, no espírito de homens que foram todos intensamente subjetivos. Napoleão é visto exortando seu exército ao esforço ingente de atravessar os Alpes. Aparentemente, é uma jornada inviável, que foi empreendida pela primeira vez em 218 a.C. pelo general cartaginês Aníbal. Justamente por parecer impossível, é também uma jornada romântica, e coloca homem e natureza frente a frente.
O rosto tenso e sombrio de Napoleão revela os perigos da marcha. Atrás da cabeça do general, alçam-se os Alpes, apresentando ao esforço humano a violenta e implacável oposição das forças da natureza. Esse conflito é, para o artista e para seu modelo, uma declaração acerca da dignidade do homem e da grandeza da determinação heróica. Um herói antigo, Aníbal Barca, é recordado na façanha do imperador francês. Napoleão levou ao auge o culto da personalidade, coroando-se a si mesmo imperador com os louros da vitória, para não ficar devendo seu poder a nenhuma autoridade senão à sua própria. Nos desfiles triunfais de Roma antiga, um homem era empregado para ficar ao lado do general vitorioso, recordando-lhe que era apenas humano. Napoleão não viu necessidade de tais precauções. Ele era, a seus próprios olhos e aos de seus seguidores, um novo Marte, o deus da guerra. No quadro de David, o deus cavalga rumo à vitória inevitável.
O artista aprendera o que retratar obedecendo às regras que governam a proporção e disposição do corpo humano. Homens de gosto reconhecem tais regras e julgaram as obras de arte segundo sua conformidade a essas mesmas regras. Mas, para nós, um dos muitos aspectos fascinantes da arte desse período consiste em discernir como se manifesta a tensão entre as regras gerais, que se aplicavam a todas as obras, e a imaginação artística. Quando a individualidade é mais fortemente marcada em uma obra de arte, quando o artista expressou algo importante para si mesmo, a tensão dramática entre a regra ideal e a criação do indivíduo pode dizer-nos muito sobre o modo como esses artistas trabalharam e ao que eles mais prontamente reagiram no mundo em que viviam.


In: JONES, Stephen. A arte do século XVIII. São Paulo: Circulo do livro, 1989. (Col. História da arte da Universidade de Cambridge)