quarta-feira, 5 de dezembro de 2012


SYLVIA PLATH – DIÁRIOS
SENSIBILIDADE TRÊMULA
 
Chega uma época em que todos os seus canais de expressão ficam bloqueados, como se entupissem de cera. Você se senta no quarto, sentindo uma dor pungente no corpo, que trava a garganta e se contrai perigosamente no canal lacrimal atrás do olho. Uma palavra, um gesto, e tudo que está retido dentro de você – ressentimentos moídos, inveja gangrenosa, desejos supérfluos – frustrados – tudo isso explode para fora de você em lágrimas de uma fúria impotente – soluços constrangedores, um choro que não é endereçado a ninguém em particular. Nenhum ombro a amparará, nenhuma voz dirá: “Calma, calma. Durma que vai passar”. Não, em sua nova e horrível independência você sente a perigosa dor premonitória a crescer na insônia e nervos à flor da pele, sente que as apostas contra você são altas nesta mão e continuam a aumentar. Você precisa de uma válvula de escape, mas as saídas estão bloqueadas. Passa dia e noite numa prisão escura entorpecente que você criou para si. E, neste dia, parece que vai explodir, arrebentar, se não der um jeito de abrir o imenso reservatório de mágoas que a sufoca e se livrar delas. (...)

Você rilha os dentes, desprezando-se por tanta sensibilidade trêmula, sem saber direito como os seres humanos suportam a dor de ter sua individualidade esmagada impiedosamente sob uma estrutura ditatorial – da indústria, do estado ou de uma instituição – pela vida toda. E aqui você agoniza por míseras semanas de sua vida. Liberdade, estar solta e por sua conta a aguardam logo adiante, no calendário. A vida inteira não se perdeu... E talvez algo de bom esteja brotando discretamente, no anonimato da escuridão, enquanto isso. (...)

Deitada nua na cama com as janelas abertas, sentia o vento salgado soprando em meu corpo bronzeado, o odor fresco vespertino da grama recém-cortada e a vibração das ondas a estourar no final da rua. E, deus, pelos vapores de amônia faça com que a mente em estado de letárgico abandono desperte num tranco e adquira consciência aguda e trêmula – há a corrente de luz, a extensa faixa azul prateada, o brilho prateado oriental da luz sobre a água do mar.

 

In: PLATH, Sylvia. Diários, 1950-1962. São Paulo: Globo, 2004. P. 104-5.

segunda-feira, 26 de novembro de 2012


Fotografia Selvagem

(Jean Baudrillard)

 

As fotos mais bonitas são as tiradas dos selvagens, no lugar onde vivem. Porque o selvagem sempre encara a morte, encara a objetiva exatamente como encara a morte. Ele não é cabotino nem indiferente. Sabe posar, enfrenta. Sua vitória está em transformar uma operação técnica num face-a-face com a morte. É isso que os torna objetos fotográficos tão fortes, tão intensos. Quando a objetiva não capta essa pose, essa obscenidade provocante do objeto diante da morte, quando o objeto torna-se cúmplice da objetiva e o fotógrafo também se torna subjetivo, então acaba o grande jogo fotográfico. O exotismo morre. Hoje é muito difícil encontrar um sujeito, ou até um objeto, que não seja cúmplice da objetiva.

O único segredo para a maioria é não saber como eles vivem. Esse segredo lhes dá a auréola de um certo mistério, de certa selvageria, que a foto, se for boa, capta. Captar nos rostos esse ar de ingenuidade e de destino que trai o fato de eles não saberem quem são, de não saberem como vivem. Esse ar de impotência e de estupefação que é completamente falho na raça mundana, esperta, ligada, introspectiva, que vive no seu próprio sabor e, por isso, sem segredo. Para esses, a foto é impiedosa.

Só há foto daquilo que é violado, surpreendido, desvelado, revelado contra a vontade, daquilo que nunca deveria ser representado porque não tem imagem nem consciência de si próprio. O selvagem, ou o que há de selvagem em nós, não se reflete. Ele é selvagemente estranho a si mesmo. As mulheres mais sedutoras são as mais estranhas a elas mesmas (Marylin). A boa fotografia não representa nada; capta essa não-representatividade, a alteriade do que é estranho em si mesmo (ao desejo e à consciência de si), o exotismo radical do objeto.

Os objetos, como os primitivos, têm uma vantagem fotogênica sobre nós: estão liberados da psicologia e da introspecção. Conservam, portanto, toda a sua sedução diante da objetiva.

A fotografia é nosso exorcismo. A sociedade primitiva tinha suas máscaras, a sociedade burguesa seus espelhos, nós temos nossas imagens.

(Baudrillard – A transparência do mal – P. 159-60)

HEIDEGGER E FREUD

CONTRA OS SANTOS DA INFLAÇÃO:

de ontem como de hoje

 

Naturalmente a filosofia da angústia de Heidegger também vive da disposição da crise generalizada dos anos vinte. O mal-estar da civilização – o ensaio de Freud sob esse título apareceu em 1929- estava muito difundido. A ensaística da concepção de mundo daqueles anos estava marcada pelo sentimento de desconforto de um mundo que naufragava, estava invertido ou estranho.
Os diagnósticos eram sombrios e inúmeras as terapias oferecidas. Buscava-se curar o todo enfermo em um ponto só. Como na política de Weimar, o centro democrático foi esmagado pelo extremismo dos que queriam mudança total, também na filosofia de crise daqueles anos preponderava a fuga para soluções extremas. Elas tinham diversos nomes: “proletariado”, “inconsciente”, “alma”, “sagrado”, “povo”, etc.
Naquela ocasião Carl Christian Bry examinou o mercado das filosofias de controle da crise em seu livro Religiões disfarçadas, Best-seller dos anos vinte. Quando o livro apareceu, dois anos antes de Ser e Tempo, de Heidegger, grassava um fanático anti-semitismo e pensamentos sobre a raça, começava a “bolchevização” no partido comunista alemão, Hitler escrevia Mein Kempf, em Landsberg, milhões buscavam salvação em seitas – ocultismo, vegetarianismo, nudismo, teo-antroposofia, havia muitas promessas de redenção e ofertas de orientação. O trauma da desvalorização monetária fizera crescer os negócios dos santos da inflação. Tudo pode se tornar “religião disfarçada”, dizia Bry, desde que se torne “monomaniacamente” o princípio único de interpretação e salvação.
Bry encontrou um critério surpreendentemente simples para a diferença entre religião e religião sucedânea. Uma religião de verdade educa por temor ao inexplicável do mundo. Na luz da fé, o mundo se torna maior, também mais obscuro, pois preserva seus mistérios, e o ser humano compreende-se como parte disso. Permanece incerto quanto a si mesmo. Para o monomaníaco da “religião disfarçada”, porém, o mundo encolhe. “Ele encontra em tudo e em cada coisa apenas a confirmação de sua opinião”, que defende com o ardor da fé contra o mundo e contra suas próprias dúvidas.

Ser e Tempo, de Heidegger, fazia parte dessa disposição de crise, mas distinguia-se do gênero em questão porque ali não se oferecia terapia. Em 1929 Freud introduzia seu diagnóstico sobre O Mal-Estar na Civilização com as palavras: “Assim falta-me o ânimo para aparecer diante dos meus semelhantes como profeta, e aceito a acusação de que não sei trazer-lhes consolo, pois no fundo é o que todos pedem”. Essas palavras também servem para o empreendimento heideggeriano. Também ele pensa a partir da experiência do mal-estar e nega-se a aparecer como profeta e “trazer consolo”.


In: SAFRANSKI, Rüdiger. Heidegger: um mestre da Alemanha entre o bem e o mal. São Paulo: Geração Editorial, 2000. p. 193-4
Leituras indicadas:
 
 
 
 
 

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Arthur Rimbaud
 
Gustav Klimt
 
 
Minhas pequenas namoradas

Um líquido molhado lava
O céu cor de uvas:
Sob a árvore broto que baba,
Seus guarda-chuvas


Brancos de luas particulares
Das marcas airosas,
Choquem as suas joelheiras,
Minhas feiosas!


Nos amávamos naquela época
Feiosa azul!
Comíamos ovos quentes
E capim do sul!


Uma noite me chamaste poeta,
Loira feia:
Vem aqui receber o chicote
De mão cheia;


Vomitei tua brilhantina
Feiosa preta;
Você cortaria minha mandolina
Com tua careta.


Puá! minha saliva ressecada,
Ruiva feiosa
Ainda infecciona a sacada
Do teu seio rosa!


Ó minhas pequenas namoradas,
Como vos odeio!
Coloquem algum recheio
Em vosso seio!


Pisoteiem os meus restos
De sentimento;
Opa! Sejam bailarinas
Por um momento!...


Suas omoplatas desparafusam,
Ó meus amores!
Uma estrela a seus rins mancos
Girem horrores!


E é pra estas ninharias
Que tenho rimado!
Queria quebrar suas bacias
Por terem amado!


Monte insípido de estrelas vadias
Limpem os cantos!
Vocês morrerão em Deus, chapadas
De vis encantos!


Sob as luas particulares
Das marcas airosas,
Choquem as suas joelheiras,
Minhas feiosas!



 
Rainer Maria Rilke
 
O Fruto

Subia, algo subia, ali, do chão,
quieto, no caule calmo, algo subia,
até que se fez flama em floração
clara e calou sua harmonia.
Floresceu, sem cessar, todo um verão
na árvore obstinada, noite e dia,
e se soube futura doação
diante do espaço que o acolhia.
E quando, enfim, se arredondou, oval,
na plenitude de sua alegria,
dentro da mesma casca que o encobria
volveu ao centro original.

(Tradução: Augusto de Campos)

Vênus e Adônis de Shakespeare
 

Por Rafael Antonio Blanco




Como a maioria de seus contemporâneos, Shakespeare aparentemente não considerava a escrita de peças como uma atividade literária elegante. Ele devia saber que era bom em fazê-las, e ele certamente se tornou famoso em seus dias como um dramaturgo, mas ele não fez grandes esforços para a publicação de suas peças. Nós não temos prefácios literários para as peças, nem indicação que Shakespeare as via impressas. Escrever para o teatro era antes como escrever para filmes nos dias de hoje: um empreendimento lucrativo e mesmo glamoroso, mas subliterário. Quando Ben Jonson trouxe a tona suas Obras coletadas (a maioria peças) durante sua época, ele foi debochado por sua pretensão.

A escrita de sonetos e outras poesias “sérias”, pelo contrário, era convencionalmente uma aposta para a verdadeira fama literária. A epístola introdutória de Shakespeare para seu Vênus e Adônis trai o entusiasmo por reconhecimento. Diferentemente, ele busca o patrocínio do Conde de Southampton, com esperança de prestígio literário assim como suporte financeiro. Ele fala de Vênus e Adônis como “o primeiro herdeiro da minha invenção”, pois de fato ele não havia escrito nenhum peça anteriormente, e promete a Southampton um “trabalho de escultor” que apareceria em breve. Vênus e Adônis, em 1593 e O Rapto de Lucrécia em 1594 foram, de fato, as primeiras publicações de Shakespeare. Ambas foram cuidadosamente e corretamente impressas. Elas foram provavelmente compostas entre junho de 1592 e maio de 1594, um período em que os teatros estavam fechados por conta da peste. A crença de Shakespeare na importância dos poemas para sua carreira literária é confirmada por relatos de seus contemporâneos. Richard Barnfield seleciona-os como as obras que provavelmente mais asseguram um lugar para Shakespeare no “imortal livro da fama.” Francis Meres, em seu Palladis Tamia: Wit´s Treasury exclamou em 1598 que “a doce arguciosa alma de Ovídio vive na doce língua de mel de Shakespeare: testemunha seu Vênus e Adônis, sua Lucrécia, seus sonetos açucarados entre seus amigos privados, etc.” Gabriel Harvey, apesar de preferir Lucrécia e Hamlet como mais prazerosos para “o tipo sábio”, concedeu que “o tipo mais jovem tira muito prazer do Vênus e Adônis de Shakespeare.” John Weever e ainda outros adicionaram outros testemunhos à extraordinária reputação dos poemas não-dramáticos de Shakespeare.

Como o comentário puritano de Gabriel Harvey à Vênus e Adônis sugere, esse poema foi considerado amatório e até obsceno. Ele espelha uma corrente em voga na época de poesia erótica ovidiana, como exemplificado por Thomas Lodge em Scilla Metamorphosis, de 1589 (na qual uma ninfa amorosa corteja um relutante homem jovem), e por Christopher Marlowe em Hero e Leander. Este último poema, inconcluso por causa da morte de Marlowe em 1593 e publicado em 1598 com uma continuação por George Chapman, era evidentemente circulado em manuscrito, assim como muitos poemas sofisticados desse tipo, incluindo os sonetos de Shakespeare. Shakespeare pode ter sido influenciado pelo tom de ironia cômica, indiferença e graça sensual de Marlowe. Ele pode também ter lido Endymion and Phoebe de Michael Drayton (publicado em 1595, mas escrito anteriormente), no qual a tradição erótica é um tanto quanto idealizada numa alegoria moral. Mais importante, entretanto, é que Shakespeare conhecia Ovídio, tanto no original quanto na tradução para o inglês de Golding (1567). Ele parece ter combinado três fábulas místicas das Metamorphoses. O contorno narrativo é encontra na busca de Vênus por Adônis (Livro 10), mas a tímida relutância do jovem homem relembra mais Hermaphroditus (Livro 4) e Narciso (Livro 3). Hermaphroditus alega à juventude como sua razão por desejar escapar das garras da ninfa da água Salmacis e então é transformado com ela num corpo único contendo ambos os sexos; Narciso evita a ninfa Echo pela paixão por si mesmo. Shakespeare assim desenhou um retrato composto do acanhamento masculino, um tema que ele iria explorar mais nos sonetos. Esse tema era adequado a um homem nobre a juventude e as perspectivas de Southampton. Em tom ele era também bem apropriado para a aristocracia e a intelectualidade que lia esse tipo de poesia. Shakespeare aqui apontava para uma audiência mais refinada do que aquela que ele escrevia peças, apesar de que sua audiência teatral devia ser geralmente inteligente. As qualidades de ornamento de Vênus e Adônis devem ser julgadas no contexto elegante de uma audiência sofisticada.

O poema é, entre outras coisas, a realização de difíceis técnicas poéticas estilizadas. A história ela mesma é relativamente sem eventos, e os personagens são estáticos. Ao longo de dois terços do poema, muito pouco ocorre mais do que uma série de envolvimentos amorosos, dos quais Adônis fracamente tenta se libertar. Mesmo sua luta subsequente com o javali e sua violenta morte são ocasiões para pathos retóricos em vez de uma vívida descrição narrativa. A história é essencialmente um quadro. Similarmente, nós não devemos profundidade psicológica ou autodescoberta significativa. As convenções dos versos amatórios não encorajam um sério interesse no personagem. Vênus e Adônis são porta-vozes de atitudes contrastantes diante do amor. Eles debatem um tópico cortês favorito no estilo de John Lyly. Ambos apelam para a sabedoria convencional e falam em sentenças, ou pronunciamentos aforismáticos. Vênus, por exemplo, alerta Adônis da necessidade de precaução ao perseguir o javali, opina que “O perigo planeja mudança; a argúcia espera com medo” (linha 690). Adônis suplicando o seu despreparo para o amor, cita analogias de triviais: “Nenhum pescador exceto o girino imaturo reprime / A suave ameixa cai; o verde crava rápido” (linhas 526-7). No âmago, seus argumentos são usualmente convencionais. Vênus encoraja a filosofia do carpe diem de se apegar ao momento do prazer. “Faça uso do tempo, não deixe a vantagem escorregar; / A beleza dentro de si não deve ser desperdiçada” (linhas 129-30). Ela reforça sua reivindicação com o apelo para a “lei da natureza”, de acordo com a a obrigação de todas as coisas vivas serem obrigadas a reproduzirem-se; somente ao se reproduzirem os humanos podem conquistar o tempo e a morte. Ainda, por mais perto que essa posição possa estar do tema maior dos sonetos, ela não se dá sem ser disputada. Adônis acusa vigorosamente que Vênus está apenas racionalizando seu desejo: “Ó, desculpa estranha. / Quando a razão se prostitui para o abuso do desejo!” (linhas 791-2). Seu pleito por mais tempo para amadurecer e provar sua masculinidade é entendível, por mais que sorrimos em sua inabilidade de excitar pelas lisonjas de Vênus. Assim, nenhum competidor ganha o argumento. Vênus é provada correta em seu medo que Adônis seja morto pelo javali que ele caça, mas a rejeição de Adônis do desejo ocioso por atividades masculinas afirma a ideia convencional da masculinidade que requer a carne de alguma espada fálica. O debate é, num sentido, um engenhosamente elaborado exercício literário, ainda que ele também permita à reflexão sobre pontos de vistas contrastantes do amor sensual e espiritual, absurdo e magnificente, engraçado e sério.

A pessoa do narrador é central para a ambivalência do debate. Ele, também, fala em sentenças, e seus aforismos parecem simpatizar com ambos os competidores. Em certos momentos, ele afirma a irresistível força do amor: “Que embora a rosa tenha espinhos, ainda assim ela é colhida” (linha 574). Em outros momentos, ele ri de Vênus por sua vacilação de humor: “Tua felicidade e desgosto são ambos extremos. / Desespero e esperança fazem de ti ridícula” (linhas 987-8). Como a pessoa usual de Ovídio, o falante aqui está ao mesmo tempo intrigado e entretido pelo amor, compelido a considerar seu poder e ainda ter consciência de suas absurdidades. O resultado é uma característica mistura ovidiana entre ironia e pathos. A ironia é especialmente evidente nos prazerosos toques cômicos que minam a potencial seriedade da ação: Vênus como uma amazonas puxando Adônis para fora de sua montaria e prendendo-o debaixo de um braço, amuado e corado; o cavalo de Adônis perseguindo uma égua no cia deixando Adônis para defender-se por si mesmo; Vênus desmaiando ao pensar no javali e puxando Adônis para cima dela, “na enumeração do amor / O campeão dela montado para o encontro quente” (linhas 595-6). Esses dispositivos distanciam-nos da ação e criam uma atmosfera de elegante senão sensual entretenimento. O poema é também banhado o rico pathos da emoção sensual. A angústia de Vênus sobre a morte de Adônis é muito genuína. A sensualidade irá saciar-se sem o humor irônico, enquanto o humor parecerá frívolo sem o pathos.

O poema insinua uma alegoria moral, na maneira da mitologização ovidiana. Vênus representa a si mesma como deusa, não somente da paixão erótica, mas também do amor eterno conquistando o tempo e a morte. Porque Adônis perversamente recusa esse ideal, Vênus conclui que a beleza humana deve perecer e que a felicidade humana deve ser sujeita ao infortúnio. Ainda essa leitura é somente uma parte do argumento e é contradita por uma sugestão oposta que Adônis é o princípio racional tentando sem sucesso governar o desejo humano (o javali e o cavalo incontrolável de Adônis). Essas contradições, que derivam da estrutura do poema como um debate e também do Neoplatonismo do Renascimento, confirmam nossa impressão que a alegoria não é o verdadeiro “significado” do poema mas é parte de uma visão ambígua do amor como ambos exaltado e mundano, um mistério que nós nunca compreenderemos em termos simples. A alegoria eleva a seriedade, adicionando dignidade poética ao que pode de outra forma parecer ser um equilibrado poema erótico. Não devemos minimizar a provocação sexual ou falharmos em reconhecer nosso próprio prazer erótico nele. Os encontros repetitivos de Vênus com Adônis tomam a forma de posições ingenuamente variadas, terminando num abraço de coito, apesar de que sem consumação. Os papeis passivos de Adônis convidam o leitor masculino a fantasiar a si mesmo no lugar de Adônis, sendo seduzido pela deusa da beleza. A famosa passagem comparando o corpo de Vênus a um parque de bichos com “fontes do prazer”, “doces traseiros de grama”, e “montes roliços elevados” (linhas 229-40) é gráfico através do uso da ambiguidade sem ser pornográfico. O poema é igualmente explícito em seu “banquete” dos cinco sentidos (linhas 433-50). Este é o “desobediente” Ovídio de Ars Amatoria.

O poema de Shakespeare é um bordado de floreios, de “presunção” ou similares engenhosamente forjados, de digressões construídas habilmente, como as narrativas do cavalo de Adônis, e de simbolismo colorido. As imagens geralmente são retiradas da natureza (águias, pássaros que caem em redes, lobos, bagas) ou conotam algo ardente, flamejante e brilhante (tochas, joias). As cores dominantes são o vermelho do sol nascente ou da face corada de Adônis ou a insígnia de Marte, o branco de uma mão de alabastro ou da roupa de cama fresca ou a angústia “cinzenta-pálida”. Ironicamente, também, a boca espumosa-branca do javali está manchada com vermelho, e o sangue vermelho de Adônis mancha seu “habitual lírio branco”. A flor de Adônis, a anêmona, é vermelha-roxa e branca. Uma antítese similarmente equilibrada permeia as figuras retóricas do poema, como na repetição simétrica de palavras em frases gramaticalmente paralelas (parison), ou em frases de igual duração (isocolon), ou em ordem inversa (antimetabole), ou no começo e término de uma linha (eponalepsis), e assim por diante. Essas pirotecnias podem parecer à primeira vista mecânicas, mas elas também, têm um lugar numa obra de arte que celebra ambos o exótico e o espiritual no amor. A decoração tem sua função própria e não servir apenas para o embelezamento por si só. Em todos os eventos, Shakespeare criou uma variação poética poderosa sobre um mito antigo que é, ao mesmo tempo, uma obra retoricamente gigantesca.

 

quinta-feira, 22 de novembro de 2012


Bruno Schulz:

The Mythologization of Reality

In: (Bruno Schulz, "Mityzacja rzeczywistosci", Republika marzen. Warszawa: Chimera, 1993: 49-50. Translated by John M. Bates)

 

The essence of reality is meaning. That which has no meaning is not real for us. Every fragment of reality lives due to the fact that it partakes of some sort of universal meaning. The old cosmogonies expressed this in the maxim 'in the beginning was the Word'. The unnamed does not exist for us. To name something means to include it in some universal meaning. The isolated, mosaic-type word is a later product, is the result of technique. The original word was an hallucination circling the light of meaning, was the great universal totality. The word in its colloquial, present-day meaning is now only a fragment, a rudiment of some former, all-encompassing, integral mythology. For that reason, it retains within it a tendency to grow again, to regenerate, to become complete in its full meaning. The life of the word resides in the fact that it tenses and strains to produce a thousand associations, like the quartered body of the snake of legend, whose separate pieces sought each other in the dark. The thousandfold yet integral organism of the word was torn into individual phrases, into letters, into colloquial speech and in this new form, applied to practical needs, it has come down to us as an organ of understanding. The life of the word and its development have been set on new tracks, on the tracks of practical life, and subjected to new notions of correctness. But when in some way the injunctions of practice relax their strictures, when the word, released from such coercion, is left to its own devices and restored to its own laws, then a regression takes place within it, a backflow, and the word then returns to its former connections and becomes again complete in meaning - and this tendency of the word to return to its nursery, its yearning to revert to its origins, to its verbal homeland, we term poetry.

Poetry is the short-circuiting of meaning between words, the impetuous regeneration of primordial myth.

When we employ commonplace words, we forget that they are fragments of ancient and eternal stories, that, like barbarians, we are building our homes out of fragments of sculptures and the statues of the gods. Our most sober concepts and definitions are distant offshoots of myths and ancient stories. There is not even one of our ideas that is not derived from mythology, a mythology that has been transformed, mutilated, remoulded. The spirit's first and foremost function is to tell stories and to make up 'tales'. The driving force of human knowledge is the conviction that at the end of its investigations, it will discover the ultimate meaning of the world. It seeks this meaning on the heights and scaffolding of its artificial mounds. But the elements which it uses in construction have been used once before, have come from forgotten and shattered 'stories'. Poetry re-cognizes the lost meanings, restores words to their proper place, and links them according to their ancient denotations. In the hands of the poet, the word, as it were, comes to its senses about its essential meaning, it flourishes and develops spontaneously in keeping with its own laws, and regains its integrity. For that reason, every kind of poetry is an act of mythologization and tends to create myths about the world. The mythologization of the world has not yet ended. The process has merely been restrained by the development of knowledge, has been pushed into a side channel, where it lives without understanding its true meaning. But knowledge, too, is nothing more than the construction of myths about the world, since myth resides in its very foundations and we cannot escape beyond myth. Poetry arrives at the meaning of the world anticipando, deductively, on the basis of great and daring short-cuts and approximations. Knowledge tends to the same inductively, methodically, taking the entire material of experience into account. At bottom, both one and the other have the same aim.

The human spirit is tireless in its glossing of life with the aid of myths, in its 'making sense' of reality. The word itself, left to its own devices, gravitates towards meaning. Meaning is the element which bears humanity into the process of reality. It is an absolute given. It cannot be derived from other givens. Why something should appear meaningful to us is impossible to define. The process of making sense of the world is closely connected with the word. Speech is the metaphysical organ of man. And yet over time the word grows rigid, becomes immobilized, ceases to be the conductor of new meanings. The poet restores conductivity to words through new short-circuits, which arise out of their fusions. The image is also an offshoot of the original word, the word which was not yet a sign, but a myth, a story, or a meaning.

At present we consider the word to be merely a shadow of reality, its reflection. But the reverse would be more accurate: reality is but a shadow of the word. Philosophy is really philology, the creative exploration of the word.

Mallarmé - Manet
 

terça-feira, 6 de novembro de 2012


ARTE SEM CENTRO
Vladimir Saflate
(professor livre-docente do Departamento de filosofia da USP).

"Ave sarjeta" - Ana Carolina Lucca


Se, no final do século 19, alguém se perguntasse sobre os lugares nos quais se decidia silenciosamente os novos caminhos das artes visuais, dificilmente ele acertaria. Pois dificilmente alguém imaginaria que devesse voltar os olhos para uma ilha perdida no meio da Oceania, para uma cabana rústica isolada nos campos do sul da França e para uma pequena vila nos arredores de Paris. No entanto, era lá que Paul Gauguin, Paul Cézanne e Vincent van Gogh trabalhavam na reconstrução da linguagem da pintura.

Em um dos momentos maiores de redefinição das artes visuais no Ocidente, foi necessário sair do centro para que algo de fato ocorresse. Foi necessário estar na periferia.

Não se tratava de alguma forma de necessidade patológica de isolamento ou de procura pela força pretensamente revigorante da natureza intocada.

Estar fora do centro era importante porque acontecimentos normalmente ocorrem em contextos de deslocamento, em locais onde uma certa indiferença criadora em relação aos padrões da linguagem torna-se possível.

Atualmente, vários voltam seus olhos para as periferias do mundo a fim de encontrar linguagens artísticas em reconstrução.

Outros desconfiam destas procuras, vendo nelas apenas uma forma de projeção que visa compensar, através da idealização de "novos sujeitos", nossas expectativas criativas frustradas. Um pouco como se procurássemos nas periferias aqueles que, no lugar dos proletários integrados ao sistema capitalista, pudessem nos guiar em direção à realização de uma filosofia da história pensada como redenção revolucionária criadora.

No entanto, não precisamos acreditar em tal filosofia da história para aprendermos a olhar para além de nossos muros. Basta darmos um passo a mais em relação à época de Gauguin, Cézanne, Van Gogh e admitirmos uma teoria da contingência que suspende a própria distinção entre centro e periferia para dizer: "Um acontecimento é aquilo que pode vir de qualquer lugar".

Marina Ioe

Girassóis - Van Gogh


Uma revolta política que perpassa nossa época como um vírus pode começar em uma pequena cidade da Tunísia. Uma experiência literária verdadeira pode estar em gestação na periferia de São Paulo.

Esta dimensão de "lugar qualquer" que um acontecimento é capaz de produzir nos lembra que o pior pecado é não acreditar nos agenciamentos contingentes.

Temos de estar preparados para que eles ocorram em qualquer lugar.

O primeiro passo para isto é mostrar, por ações concretas, que abandonamos de vez a distinção entre centro e periferia. Hoje, a inteligência sempre vem de um "lugar qualquer".

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Nota: texto publicado na Folha de São Paulo 06/11/2012

sexta-feira, 2 de novembro de 2012


Stravinski e Giacometti

Stravinski por Giacometti
 

Robert Craft: Como foi que Giacometti veio a fazer desenhos de você?

Igor Stravinski: Ele tinha feito cinco ou seis esboços a partir de fotografias, antes de me encontrar, e não gostou. Depois, sentado bem perto de mim, fez uma série completa, trabalhando muito depressa, dedicando apenas alguns minutos a cada desenho. Diz que em escultura também dá a obra por terminada muito rapidamente mas que antes faz, às vezes vagarosamente, por longos períodos, centenas de estudos preparatórios, que são abandonados.

Desenhava com um lápis muito duro, e apagava as linhas com borracha, de vez em quando. E sempre murmurando: “Non... impossiblie... je ne peux pas... um tête violente... je n´ai pas de talent... je ne peux pas...”.

Ele me surpreendeu a primeira vez que veio, porque eu esperava um Giacometti alto e magro. Disse-me que acabava de escapar de um fabricante de automóveis o qual lhe oferecera uma soma considerável para afirmar que carros e esculturas são a mesma coisa, isto é, belos objetos. De fato, um dos tópicos favoritos de Giacometti era a diferença entre uma escultura e um objeto. “Os homens a andar na rua em diversas direções não são objetos no espaço. A escultura é uma matière transformada em expressão, expressão na qual a natureza conta menos que o estilo. A escultura é expressão no espaço, o que quer dizer que nunca pode ser completa: ser completa é ser estática. Todos os bustos são ridículos; o corpo inteiro é o único assunto da escultura”.
 
Giacometti
 
Sua conversa sobre escultores era, algumas vezes, surpreendente. Gostava de Pigalle, achava-o o maio escultor de dix-huitième, especialmente no monumento em memória da Maréchale de Saxe, em Estrasburgo. Preferia de longe o rejeitado Voltaire nu, de Pigalle, ao famoso Voltaire oficial de Houdon “por causa de seu maior nervosismo”.
 
Voltaire nu - Pigalle
 
Voltaire - Houdon
 
Para ele, Canova não era realmente um escultor, enquanto Rodin foi o “último grande escultor, da mesma linha de Donatello (não o Rodin de Balzac ou dos Bourgeois de Calais, naturalmente).” Brancusi não era absolutamente escultor, disse ele, mas um “fazedor de objetos”.
 
Perseu - Canova
 
Brancusi
 

Eu gosto da obra de Giacometti – tenho na minha sala de jantar uma de suas pinturas “cheias-de-espaço-escultural” e sinto afeição por ele, por seu próprio “nervosismo”. Gosto de sua maneira de ser, numa estória que me contou. Tinha grande admiração por Klee e, uma vez, no fim da década de 30, quando ambos os artistas moravam na suíça, ele finalmente decidiu ir visitá-lo. Caminhou da estação até o que julgava ser a casa de Klee – na encosta de uma montanha a certa distância da cidade – mas quando chegou, descobriu que Klee não morava ali, mas muito mais adiante para o alto da montanha. “Perdi toda a coragem e não fui – só tinha de ir até aquele ponto”.
 
O fantasma - Klee
 
NOTA: Texto do livro "Conversas com Stravinski". SP: Perspectiva, 1984. pp. 74-5

Ballet de Londrina dança Petruchka

(Por Jardel Dias Cavalcanti)
 
 

Em Petruchka, balé estreado em 1911, já se observa a ousadia com que Stravinski tratava as construções harmônicas, superpondo tonalidades em franco desacordo, não relacionadas entre si, e fazendo as combinações rítmicas mais inesperadas, abrindo caminho para uma série de experimentações politonais e polirrítmicas que já anunciavam A Sagração da Primavera.

A história da peça é a da marionete Petruchka, que corteja uma encantadora bailarina que o prefere a um Mouro lindamente vestido. O Mouro enciumado acabará matando seu rival, cujo espectro ameaçador aparecerá no fim.

Parece que Leonardo Ramos, o coreógrafo do Ballet de Londrina, encontra na música de Stravinski elementos que dialogam diretamente com suas pesquisas (não deve ser à toa que criou coreografias tanto para A Sagração da Primavera quanto para Petruchka).

          A obra de Stravinski é executa por pianos martelados, de forma elíptica e brutal, com timbres rudes. Enfrentando essas novas possibilidades sonoras, o que o Ballet de Londrina tem feito é conseguir ampliar os limites do gesto, dentro de princípios completamente novos.
         A música de Stravinski obriga os bailarinos a contorções inacreditáveis, suscitando a impressão de algo decomposto que rompe as habituais forças de equilíbrio típicas nos balés mais conservadores. Cesuras musicais exigem do corpo a mesma desmedida feitura de movimentos. E a coreografia, no seu sentido de conjunto, também acompanha esses cortes e desmedidos musicais.
 


A composição coreográfica de Petruchka pelo Ballet de Londrina se realiza não através de um desenvolvimento corporal coerente, mas em virtude dos hiatos que a música trás e, consequentemente, a marcam. O excitante dessa coreografia é justamente, por isso, a aguda tensão entre os elementos que querem se concretizar e na promoção de sua rápida dissolução. O que se relaciona com a ideia de um boneco que ganha vida somente para cair na agonia do amor.

O escamoteamento da narrativa coerente traduz-se num mal fait engenhoso. Esses “descuidos calculados” são parte de uma tradição radical em arte, absolutamente legítimos, onde os contornos borrados desmentem todo o caráter compacto da configuração da imagem. A criação é pensada como algo não inteiramente domada, mas obliquamente viva; por isso, o desrespeito ao bien fait dos modelos engessados.
 
 

A coreografia de Leonardo Ramos renuncia a fazer de si mesma a imagem compacta de uma realização acabada, com acentos temporais previsíveis. Ao contrário, a energia física é empregada na experiência de uma coreografia hostil ao que é convencionalmente esperado. Os gestos vazios de plenitude são mais expressivos que a coerente construção de gestos domados pela formatação. A obra se organiza na formulação de sua decomposição, não na composição de uma organização.

Esse comportamento é um ritual que serve para superar a frieza da padronização; com movimentos sincopados irregulares anuncia-se ao espectador a possibilidade de agonizar junto ao périplo de Petruchka.
A força da coreografia alimenta-se justamente da explosão de gestos que prescindem do pré-estabelecido, como uma criança que desmonta brinquedos, intercalando seus destroços às imagens de sua imaginação, para recriá-los de forma não convencional.



Mais uma vez Leonardo Ramos nos mostra que somente a ousadia de corpos prontos para a radicalidade e para a constante inovação dissolve a lógica medíocre de uma arte acomodada. Quem ganha é o espectador, que tem, com isso, a possibilidade plena de mergulhar no reino da sensibilidade, lugar por excelência da experiência da liberdade que só grande a arte pode possibilitar. Com a dança, a imaginação se coloca no lugar onde a função do irreal vem seduzir ou inquietar despertando o ser adormecido em seus automatismos.
 

 

Anotação:
Sobre ‘Petrouchka’
O amor pode parecer tão perfeito que é capaz de enganar aos que acreditam que, aonde existe amor existe vida. Ilusão. Desejos inconfessos, vaidade, ciúme e, por que não, a ruína habitam os corações. Aos que se lançam nessa tentativa de ser feliz, esperando e confiando nos sentimentos alheios, o risco da decepção é grande. O Ballet de Londrina leva às últimas consequências em Petrouchka, a enganosa teia da paixão não correspondida, alimentada pelo amor a si próprio.
 

domingo, 28 de outubro de 2012

FEMEN:
poesia e corpos radicais na contemporaneidade


A melhor poesia feminina atual está sendo criada coletivamente pelo grupo pós-feminista ucraniano Femen. Além da criação coletiva, usa como suporte de suas palavras o próprio corpo feminino, levando ao seu limite lógico a política e a poética dos gêneros. Com isso, tensiona todas as questões que aborda, e aborda todas as questões que quer tensionar, numa radicalidade rara em tempos de poesia irrelevante, regressiva (que o diga o galo da alva) e “alumbrada”.
A foto abaixo mostra um poema semiótico poderoso, em que, para identificar exploração sexual, escravidão e fascismo, usa-se a suástica na forma de dois SS entrelaçados, um da palavra “sex”, outro da palavra “slavery”, criando a síntese verbal-visual “sex slavery [is nazi]”, que é por sua vez reduplicada e explicitada na expressão “is fascism”. Tudo isso formando a moldura negra de um belo e alvo seio feminino, cuja forma se projeta à frente da planura das palavras, não em oferta de si mesmo, mas oferecendo a estimulação do desejo como forma de tensionar a própria mensagem que centraliza. Equilibrando o peso visual desse conjunto de palavras e carne, localizado à esquerda do tórax, uma águia nazista dominando o orbe, o mundo, está desenhada à direita, enquanto tudo é encimado por um rosto anguloso e cerrado de Valquíria loura de olhos claros, a perfeita tradução da mulher ariana, travestida, porém, sexual e politicamente, numa caricatura de Adolf Hitler.
Há uma forte evocação da arte radical do período de Weimar, época de dadaísmo, teatro expressionista e cubo-futurismo, e também do punk dos anos 1970 (Sex Pistols e cia):



A pauta temática do Femen não é, no entanto, politicamente correta, ou seja, não se limita à moldura do aceitável pela etiqueta feminista-esquerdista. Assim, promoveu uma recente manifestação anti-islâmica, por identificar, necessariamente, islã e opressão feminina, alvo central do grupo. Neste caso, o “poema” mais forte, eficiente e provocador era um convite aos muçulmanos para que fiquem nus, se desnudem (“Muslim, let´s get naked”), numa clara polissemia, pois tal nudez se refere denotativamente aos corpos mas também, metaforicamente, à crítica, à análise, ao questionamento, ao desarme, além de pôr em xeque o acobertamento do corpo feminino pela incitação a expor o masculino. Ladeiam e completam o convite polissêmico um neologismo contra o extremismo, “Sextremism”, e a afirmação-equação radicalmente anti-islâmica e irredutivelmente pró-liberdade individual de que “My body is my fredoom”:



Somados, a defesa do “sextremism” contra o extremismo, o convite ao desnudamento do islã e a afirmação radical da liberdade corporal (ou da liberdade corporal radical) põem em xeque qualquer discurso que tente relativizar o sexismo, a intolerância e o patriarcalismo islâmicos em nome da “especificidade cultural”, da “herança colonial”, da “política imperial” ou o que seja. Fica implícito (o único elemento implícito, aliás) que para o grupo Femen qualquer defesa do inaceitável é inaceitável. Se restasse alguma dúvida, diz-se simplesmente “não” à sharia, a lei islâmica (ou talvez não tão simplesmente: note-se a linha vermelha, como um vergalhão, que desce do ombro esquerdo para a palavra “sharia”, culpando graficamente a lei islâmica pelo sangue das mulheres brutalizadas, entre outras coisas, por chicotadas [um dos castigos mais comuns avalizados por tal lei]):



Ecumênico, o grupo também ataca a patriarcal Igreja Ortodoxa Russa. Em uma recente visita do Patriarca Cirilo a Kiev, o velho sacerdote, seu líder máximo, cujo nome em russo é Kirill, foi recebido, em suas longas vestes negras cobrindo o corpo inteiro, por belas mulheres seminuas que traziam pintada no tórax uma mensagem simples, clara e, ao mesmo tempo, tanto metonímica (o nome do líder para referir a instituição) quanto paronomástica: “Kill Kirill” (“Matem Cirilo”). Poesia feminina contemporânea é isso. O resto é confeitaria (ou jardinagem: o caráter feminino atrasado da poesia de Dal Farra, de viés doméstico, além de domesticado, coerente com sua visão regressiva da própria poesia, enquanto isso se manifesta em poemas sobre “Vasos com rosas” [p. 80], que “Ensinam (humildes) o pacífico existir”…).



O que poderia demonstrar de modo mais cabal e irredutível o completo arcaísmo da igreja do que o contraste entre seus homens sisudos cobertos de preto e a modernidade do corpo seminu de uma mulher de jeans com o tórax grafitado? A publicidade da Benetton, tida como das mais ousadas da mídia mundial, sempre buscou esse efeito, mas na publicidade da Benetton isso nunca passou de um efeito. Aqui, tudo é real. Não por acaso, a igreja também está no centro de uma ação recente de outro grupo feminino eslavo, o coletivo russo Pussy Riot (cujo nome significa algo como “desordem vaginal”). Três de suas integrantes invadiram, em março de 2012, a Catedral de Cristo Salvador em Moscou, em protesto contra as eleições presidenciais russas, que culminaram com a previsível reeleição de Putin. No altar, cantaram um punk rock em que pediam à Virgem Maria para tirar Putin do poder, além de acusar o Patriarca Cirilo (o mesmo Kirill que o Femen quer to kill) de crer mais em Putin do que em Deus (foram presas e condenadas a dois anos de prisão por “desordem e incitação ao ódio religioso”; sim, aqui tudo é real).
A maioria dos membros do Femen, invertendo o uso e o abuso pela mídia e pela publicidade do corpo feminino como instrumento comercial, é de belas mulheres jovens, magras e de cabelos longos, como Sonia Shachko:



Mas o teatro político-poético do grupo vai além. Evocando mais uma vez a linguagem de Weimar e dos Pistols, num protesto contra a organização futebolística europeia, a UEFA, e contra a polícia de Putin (cada aparição do grupo é uma criação semiótica tematicamente dirigida), que o grupo chama de KGB, uma matrona tem a parte de baixo do corpo vestida como um policial, o tórax exposto com dois grandes seios maternais e a cabeça masculinizada de Adolf Hitler, cercada por beldades seminuas cujos rostos estão cobertos por balaclavas das forças especiais, enquanto ostentam longos cacetetes negros. A manifestação, por ocasião da final da Eurocopa em Kiev, de um lado dizia ironicamente para a UEFA respeitar a KGB (“Respect KGB UEFA”), e, de outro, afirmava ambiguamente ser a própria UEFA uma KGB que se acata (outra leitura da mesma frase), pois o grupo considera que a organização não dá importância ao aumento da prostituição e mesmo do tráfico de mulheres associados aos seus grandes eventos internacionais. Em todo caso, havia também um texto não ambíguo: “Fuck KGB”.



O grupo não respeita nenhum tema, logo, aborda todos. As questões do mundo contemporâneo não o intimidam, ao contrário, o incitam. Uma de suas criações mais sinteticamente expressivas explora a outra parte, ou contraparte, de sua marca registrada e constante icônica, os seios nus: ou seja, as calcinhas. Para se manifestar contra a possível proibição, no Brasil (há uma seção brasileira do grupo, que, coerentemente, se internacionalizou), do parto caseiro (não pela mitificação de classe média pseudomoderna do “parto natural”, mas pela liberdade de escolha e corporal feminina), criaram uma cena com mulheres de calcinhas ensanguentadas parindo bonecas, expondo ao mesmo tempo o mênstruo, sempre ocultado (que aparece em falsa e anódina cor azul em todas as propagandas de absorventes), e o que a ele se relaciona diretamente, ou seja, a gestação e o parto, com seus fluidos corpóreos. Ao mesmo tempo, as bonecas servem de suporte à afirmação-equação em duas partes: “Nasci livre”, [logo] “Sou livre”:



Em seguida, com as bonecas dispensadas e as mulheres em pé, as calcinhas ensanguentadas fazem um giro semântico e passam a significar estupro, associadas às palavras “Violação não”. Arte performática é isso, o resto é “conceito”, arte “abstrata”.



A poética do grupo Femen, centrada em palavras que fazem, muitas vezes, um uso poderoso da linguagem propriamente poética (“Kill Kirill”), ou fundem ao corpo uma palavra de ordem, que se torna corpórea e organicamente articulada (“No sharia” pintado em pele feminina), junto ao uso motivado das demais variáveis do suporte, ou seja, o corpo feminino seminu e suas implicações e contradições (apelo sensual e rejeição radical ao sexismo através do “sexismo extremista”, ou “sextremism”, do próprio grupo), é, além disso, criada para e com a mídia, isto é, incorpora, “sequestra” a mídia para sua realização poético-política e para sua divulgação, que se fundem e se confundem, resolvendo assim o eterno problema moderno do divórcio entre o poeta e o público.
A alienação letrada e confeitada de que Dal Farra é apenas um exemplo entre muitos, e que domina a poesia brasileira contemporânea, não é uma inevitabilidade de um tempo de confusão e caducidade cultural e estética, portanto, não tem nessa confusão e nessa caducidade uma defesa ou uma justificativa. Tempos confusos exigem da arte, não devaneios ou alumbramentos regressivos e negacionistas (da confusão cultural e de suas dificuldades), mas clarezas radicais ou radicalismos claros, que usam, contra a gosma do confuso, a cortante fuga para frente. A força poética e política do Femen (no último caso, não quanto aos resultados, mas quanto às tensões e intenções) tornam a poesia de gênero, feminina ou outra, assim como a poesia em geral que hoje se pratica, um rançoso e natimorto neoparnasianismo, poesia de gabinete para gáudio do autor e de seu grupo, imersa em lamúrias pela indiferença do público e pela dureza indiferente do mercado, além de compensatórias autocongratulações intragrupais (incluindo as dos prêmios literários). A essa poesia anêmica, a essas lamúrias lânguidas e a essas congratulações pálidas responde o curto e cortante grito agudo e metálico de uma antiariana valquíria seminua e sextremista: Fuck! Kill Kirill! Kill!

Publicado na íntrega em:
http://sibila.com.br/cultura/a-farra-do-alumbramento-poetico-incluindo-como-fazer-diferente-ou-femen/8207