segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

O SUICÍDIO DO ESCRITOR

Jardel Dias Cavalcanti



Era aproximadamente cinco horas da manhã de um verão tórrido quando Richard Louise acordou com a boca seca, indo até a cozinha atrás de um copo de água, andando ainda sob o efeito do sono pesado. O calor era tanto que decidiu abrir a janela em busca de uma rajada qualquer de vento. Precisava se refrescar, pois acordara suado.
Ao abrir a cortininha que se interpunha entre o vidro da janela e o vento tão esperado, percebeu, do alto do seu segundo andar, lá embaixo, sob a árvore do quintal do vizinho, a movimentação de um rapaz. Ele deitava uma escada sobre o tronco da árvore, voltando-se depois para o chão, de onde pegou uma enorme corda grossa. Subiu pela escada e lançou a corda sobre um dos galhos, possivelmente o mais grosso da árvore. Richard Louise imaginou que ele estava preparando um balanço. Decidiu continuar a observação. Aquilo ativava sua curiosidade. Só se perguntava qual a razão do rapaz fazer isso tão cedo.
Percebeu que não era um balanço o que o rapaz estava fazendo ao ver o nó que ele acabara de dar na corda.  Agora, mais ativado pela curiosidade, colou o rosto na janela, para ter certeza do que ele iria fazer. O rapaz desaparecera por uns minutos, mas voltou imediatamente com um pequeno banco, onde se sentou  munido de uma caneta e um bloco onde começara a escrever alguma coisa. Com certeza uma carta.
Nada do sol aparecer ainda. E a curiosidade de Richard Louise só aumentava. O que estaria escrevendo¿ Porque se mataria tão jovem¿ Sim, agora ele tinha certeza de que o rapaz iria se enforcar. Mas a sua reação não deveria ser de curiosidade, mas a de tomar uma atitude e prontamente descer para tentar convencê-lo a não praticar tal ato ignóbil. No entanto, ficou paralisado na sua posição de observador e, como um verme que roendo uma goiaba saborosa da qual sente enorme prazer em aproveitar cada pedacinho da fruta que vai destruindo, anotou em seu cérebro tudo o que via, cada movimento do rapaz, sua tensão, seu olhar para o além, sua cabeça se curvando sobre si em enorme dor, a aflição de quem sabe que pode parar mas continua numa descida perigosa que não terá mais volta.
Porque pará-lo¿ Não, aquilo era uma experiência excepcional para o observador. Mas havia algo muito além disso. Uma obsessão maior o colocava na posição passiva nessa observação do suicida e nesse desejo de acompanhar minuciosamente seus passos rumo à desgraça total. A sua cabeça vazia, essa folha branca que o perturbava, agora ia se preenchendo de letras, que viravam palavras, que viravam frases, que se tornavam um escrito, que ganhava nome de conto, de história, de novela. Com tudo registrado na cabeça, gozava do espírito preenchido, cheio de ideias, coisas para escrever. Escreveu. Ele saia do limbo, se tornava alguma coisa, um escritor, alguém que publicava um livro, que saia nos jornais, que tinha uma obra, que tinha uma carreira. E nenhuma angústia o perturbava, mesmo sabendo que tudo isso tinha em si, para sempre, o cheiro de um cadáver. Um cadáver que ele ajudou a criar e que recriou na literatura.

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Ilustração do texto: "Retrato do artista". Fabricio Nery (coleção particular: jardel dias cavalcanti)