segunda-feira, 26 de outubro de 2015


A Metamorfose” – 100 years old today.
Gerald Thomas – Folha de S Paulo
GREGOR SAMSA FAZ CEM ANOS HOJE
Kafka é uma confusão. É todo Austro-Húngaro que é o todo Tcheco e que é todo Eslavo e que é todo uma Praga. Praga mesmo! Praga dessas que as pessoas rogam para si mesmas ou contra as outras, de guetos a guetos povoados por judeus miseravelmente tristes ou ciganos horrivelmente deprimidos, todos imersos numa “Mittle-Europa” e seus eternos e intermináveis conflitos étnicos onde um bairro fala alemão e execra o que fala turco que execra o que fala albanês e assim por diante. No meio disso tudo, um magrelo chamado Franz Kafka.
Era 1915, uma época quase igual a de agora. Claro, havia uma Primeira Grande Guerra Mundial em andamento, mas de resto, quase tudo igual. Hordas de refugiados pegando embarcações pra lá e pra cá. Hordas tentando marchar para fora das zonas de conflito e morrendo nos trilhos, morrendo nos campos, morrendo de fome e de ódio e morrendo porque eram de uma raça e não de outra, morrendo porque acreditavam num deus e não no outro. A coisa gira mas muda pouco.
Kafka escreveu A Metamorfose porque não aguentava mais o emprego como corretor de seguros e o horrendo ritual de ter que temer o chefe, o Chefe dos Chefes, os Chefes invisíveis e os absurdos horários estipulados por essas entidades. O céu eternamente cinza, as roupas cinzas, as peles mais que cinzas, tudo sempre frio e antipático e anti-semítico e a Europa naquele estado de que ninguém aguenta mais.
Kafka deu um BASTA ! “CHEGA! Não aguento mais a vida de humano, porra!”. Pronto. Foi isso. Ao contrario de “Cotidiano”, de Chico Buarque (Todo dia ela faz tudo sempre igual/ Me sacode as seis horas da manhã/Me sorri um sorriso pontual/E me beija com a boca de hortelã), o personagem de A Metamorfose teve uma über crise, mandou o mundo dos humanos a merda e transformou-se num repugnante verme.
Franz Kafka odiava seu pai, odiava sua vida, odiava a si próprio. Pode-se enxergar o “kafkianismo” em varias etapas da nossa sociedade quando ela se torna insuportável, sufocante, burocrática e aterrorizante. Talvez o personagem “Joseph K” de O Processo, em que ele é preso por crimes que não cometeu e não consegue provar sua inocência, morrendo no final, ou na mais que cruelColonia Penal, em que o condenado sofre torturas na própria carne com maquinas gravando em sua pele os crimes que havia cometido.
Kafka é o mais genial dos autor de todos os tempos. E não é difícil explicar por que.
Dependendo em que idioma você o le, Kafka é o único autor que transcende a natureza humana até a mais baixa e nojenta condição de verme, logo na primeira pagina. Ele consegue isso em uma só pagina.
Tive contato com A Metamorfose aos nove anos de idade, ou um pouco depois. Meu pai lia para mim, em alemão. Não é a toa que eu nunca mais consegui dormir desde então. Décadas mais tarde, já sentado na Biblioteca do Museu Britanico, li-o em inglês, fiz comparações, sai puto (como sempre saio quando os tradutores traem os autores) e fui “kafkear lá pela Great Russell Street.
Vinte anos para a frente e me deparo com a proposta de montar a minha Trilogia Kafka. Caramba! E agora? Bete Coelho, Daniela Thomas, Luiz Damasceno e a ‘troupe’ da Cia de Ópera Seca ali sentados diante do enorme desafio. Tres adaptações que sairiam do Brasil, viriam para Nova York e iriam terminar justamente em Viena.

Por que será que complicam tanto algo que, na verdade, é tão simples? Saco! Die Verwandlung nada mais é do que A Transformação, pombas. Por que então misturar Ovídio com leves insinuações Homéricas no meio? Pra quê? Pra que transformar um “verme” num besouro (ou barata), se verme é um termo alegórico que se aplica a humanos quando se sentem o ‘fim da picada’?
Seja como for, o que ficou na história é que Gregor Samsa é uma barata. Melhor para mim, pois o pôster do espetáculo acabou sendo o corpo de uma barata tendo um bico de pena como cabeça. E isso mata a charada: a barata que escreve. Mas a sintaxe está errada pois perpetuei o erro e mantive a ideia da barata ou besouro quando o “BASTA, PORRA! NAO SOU MAIS UM DE VOCES !!!!!, o berro de independência de Gregor, está mesmo mais para um desses vermes que se arrastam e deixam uma gosma, do que para a ideia de barata.
A Metamorfose é um romance miseravelmente triste em que o autor não se esconde atrás de nada. É Kafka ali o tempo todo. E quando, quase no final do livro, o pai irritado de Gregor, joga uma maçã nele para afugentá-lo, a fruta gruda nas costas do bicho e apodrece nele, nas costas dele. Esse é um dos momentos mais tristes do livro e é nesse momento que conseguimos ouvir a tosse de Franz Kafka e enxergar o seu repúdio em estar vivo. Vivo e, no entanto, morto. Morto e, no entanto, não morto o suficiente para ser declarado um “falecido”.
A Metamorfose, mais do que qualquer outro livro de Kafka, ou mais do que qualquer outro livro na história da literatura, é um testamento de que a única forma de comunicação entre seres humanos é através da extrema crueldade, da tortura mental e da dor física. A escrita de Kafka nos faz ranger os dentes, mesmo que se leia esse livro pela vigésima vez e no quinto idioma. E é também, além de tudo, o maior tratado de que nascemos e estamos aqui, mas não sabemos por quê. E a única forma de provarmos que estamos vivos é carimbando diariamente um livro que reza que a única forma de existência é através da desistência, é através da constatação de que os portões se fecham para nós, que nossas luzes se apagam e que aquela imensa dor que sentimos, essa puta dor, só tenderá a piorar a cada dia, pior e pior, e cada vez pior até que consigamos atingir a transformação final, ou seja, a Metamorfose.
Gerald Thomas,
Autor e diretor teatral.

quinta-feira, 16 de julho de 2015

A VIDA HUMANA NÃO TEM SENTIDO

ilustração de Gerald Thomas


            Então, nossos ancestrais medievais eram felizes porque encontravam sentido na vida em ilusões coletivas sobre a vida após a morte? Sim. Contanto que ninguém destruísse suas fantasias, por que não?
Até onde sabemos, de um ponto de vista puramente científico, a vida humana não tem sentido algum. Os humanos são resultado de processos evolutivos cegos que atuam sem propósito ou objetivo. Nossas ações não são parte de um plano cósmico divino, e, se o planeta Terra explodisse amanhã, o universo provavelmente seguiria em frente como de costume. Até onde podemos afirmar no presente momento, a subjetividade humana não faria falta. Portanto, qualquer significado que as pessoas atribuem à própria vida é apenas uma ilusão. Os sentidos sobrenaturais que os medievais encontravam em sua vida eram não mais ilusórios do que os sentidos humanistas, nacionalistas e capitalistas que as pessoas de hoje encontram. O cientista que afirma que sua vida tem sentido porque ele contribui para um aumento do conhecimento humano, o soldado que declara que sua vida tem sentido porque ele luta para defender sua terra natal e o empreendedor que encontra sentido em construir uma nova empresa são não menos iludidos do que seus semelhantes medievais que encontram sentido lendo as Escrituras, participando de uma Cruzada ou construindo uma nova catedral.
Então, talvez a felicidade seja sincronizar nossas ilusões pessoais de sentido com as ilusões coletivas predominantes. Contando que minha narrativa pessoal esteja alinhada com as narrativas das pessoas à minha volta, posso me convencer de que minha vida tem sentido e encontrar felicidade nessa convicção.
(In: HARARI, Yuval Noah. SAPIENS: uma breve história da humanidade. Porto Alegre: LPM, 2015.)

YUVAL NOAH HARARI, é doutor em história pela Universidade de Oxford e professor da Universidade Hebraíca de Jerusalém.

sexta-feira, 3 de abril de 2015

Antonin Artaud
O Homem-Árvore
(Carta a Pierre Loeb)



O tempo em que o homem era uma árvore sem órgãos nem função,
mas de vontade
e árvore de vontade que anda,
voltará.
Existiu, e voltará.
Porque a grande mentira foi fazer do homem um organismo,
ingestão, assimilação,
incubação, excreção,
o que existia criou toda uma ordem de funções latentes e que escapam
ao domínio da vontade decisora,
a vontade que em cada instante decide de si;
porque assim era a árvore humana que anda,
uma vontade que decide a cada instante de si,
sem funções ocultas, subjacentes, que o inconsciente rege.
Do que somos e queremos na verdade pouco resta,
um pó ínfimo sobrenada, e o resto, Pierre Loeb, o que é?
Um organismo de engolir, pesado na sua carne,
e que defeca e em cujo campo,
como um irisado distante,
um arco-íris de reconciliação com deus,
sobrenadam,
nadam os átomos perdidos,
as idéias, acidentes e acasos no total de um corpo inteiro.
Quem foi Baudelaire?
Quem foram Edgar Poe, Nietzsche, Gérard de Nerval?
Corpos que comeram, digeriram, dormiram,
ressonaram uma vez por noite,
cagaram entre 25 e 30 000 vezes,
e em face de 30 ou 40 000 refeições,
40 mil sonos, 40 mil roncos,
40 mil bocas acres e azedas ao despertar,
tem cada qual de apresentar 50 poemas,
o que realmente não é de mais,
e o equilíbrio entre a produção mágica e a produção automática
está muito longe de ser mantido,
está todo ele desfeito,
mas a realidade humana, Pierre Loeb, não é isto.
Nós somos os 50 poemas,
o resto não somos nós,
mas o nada que nos veste, se ri, para começar, de nós.
Um organismo de engolir vive de nós a seguir.
Ora, este nada nada é,
não é qualquer coisa mas alguns.
Quero dizer alguns homens.
Animais sem vontade nem pensamento próprio,
ou seja, sem dor própria,
que em si não aceitam vontade de uma dor própria
e para forma de viver mais não encontraram que falsificar a humanidade.
E da árvore-corpo, mas vontade pura que éramos,
fizeram este alambique de merda,
esta barrica de destilação fecal,
causa de peste e de todas as doenças
e deste lado de híbrida fraqueza,
de tara congênita, que caracteriza o homem nato.
Um dia o homem era virulento,
só era nervos elétricos,
chamas de um fósforo perpetuamente aceso,
mas isto passou à fábula porque os animais lá nasceram,
os animais, essas deficiências de um magnetismo inato,
essa cova de oco entre dois foles de força
que não eram, eram nada e passaram a ser qualquer coisa,
e a vida mágica do homem caiu,
caiu do seu rochedo com ímã
e a inspiração que era o fundo
passou a ser o acaso, o acidente, a raridade, a excelência,
talvez excelência
mas à frente de um tal acervo de horrores,
que mais valia nunca ter nascido.
Não era o estado de paraíso,
era o estado-manobra, – operário,
o trabalho sem rebarbas, sem perdas,
numa indescritível raridade.
Mas esse estado por que não continuou?
Pelas razões que levam o organismo de animal,
que foi feito para e por animais
e desde há séculos lhe aconteceu, a explodir.
Exatamente pelas mesmas razões.
Mais fatais umas do que outras.
Mais fatal a explosão do organismo dos animais
que a do trabalho único
no esforço dessa vontade única
e muito impossível de encontrar.
Porque realmente o homem-árvore,
o homem sem função nem órgãos que lhe justifiquem a humanidade,
esse homem prosseguiu sob a capa do ilusório do outro,
a capa ilusória do outro,
prosseguiu na sua vontade mas oculta,
sem compromissos nem contacto com o outro.
E quem caiu foi quem quis cercá-lo e imitá-lo
mas logo depois com muita força,
estilo bomba,
irá revelar a sua inanidade.
Porque devia criar-se um crivo
entre o primeiro dos homens-árvores
e os outros,
mas aos outros foi preciso o tempo,
séculos de tempo
para os homens que tinham começado
ganharem o seu corpo
como aquele que não começou
e não parou de ganhar o seu corpo mas no vazio,
e não havia lá ninguém,
e lá não havia começo.
E então?
Então.
Então as deficiências nasceram
entre o homem e o labor árido que era bloquear também o nada.
Em breve esse trabalho será concluído.
E a carapaça terá de ceder.
A carapaça do mundo presente.
Levantada sobre as mutilações digestivas
de um corpo esquartelado em dez mil guerras
e pela dor, e a doença, e a miséria,
e a penúria de gêneros, objetos e substâncias de primeira necessidade.
Os que sustentam a ordem do lucro
das instituições sociais e burguesas,
que nunca trabalharam
mas grão a grão amealharam o bem roubado
desde há bilhões de anos
e conservado em certas cavernas de forças
defendidas pela humanidade inteira,
com algumas tantas exceções
vão ver-se obrigados a gastar as energias
nessa coisa que é combater,
vão lá poder deixar de combater,
pois no fim da guerra e esta agora, apocalíptica,
que há-de vir,
está a sua cremação eterna.
Por isto mesmo eu julgo
que o conflito entre a América e a Rússia,
reforçado ele seja a bombas atômicas,
pouco vai ser
ao lado e em face do outro conflito
que vai repentinamente estalar
entre quem preserva uma digestiva humanidade, por um lado,
e por outro o homem de vontade pura
e os seus muito raros aderentes e sequazes mas com a sempiterna força por si.

·         ARTAUD, Antonin. Eu, Antonin Artaud. Lisboa: Hiena Editora, 1988, p. 105-110

sábado, 21 de março de 2015

Andy Warhol - Flower Power




Em 1964 na Feira de Arte de Nova York World, o arquiteto Phillip Johnson pediu a 10 artistas fazerem obras de tamanhos grandes para decorar a fachada do Pavilhão dos Estados, um monumento que Johnson tinha projetado como uma celebração do progresso humano. 
Robert Indiana, Roy Lichtenstein, James Rosenquist, e Robert Rauschenberg estavam entre os artistas pop selecionados. Andy Warhol foi um outro contribuinte. No entanto, a obra " OsTreze Homens Mais Procurados" de Warhol, que mostrava fotos em serigrafia de verdadeiros criminosos, foi censurada e coberta com tinta prata, e nunca vista pelo público. 
Foi neste evento o catalisador a transição de Warhol de criminosos para florais. A flor, um símbolo da fragilidade e pureza, é a antítese da violência cega associada com o crime. O historiador de arte Michael Lobel explora eloquentemente esta colisão de temas na obra de Warhol em seu ensaio "Andy Warhol Flores"; um acompanhamento adequado para a pesquisa abrangente das 'Flores deWarhol' pinturas mostradas na Eykyn Maclean em 2012 . 
As pinturas de flores de Warhol, criadas entre 1964 e 1965, foram inicialmente inspiradas em uma fotografia de diversas flores de hibisco tomadas por Patricia Caulfield, posteriormente, a editora executivo da revista Modern Photography. 
O folheto desdobrável retratava um novo sistema de processamento de cores da Kodak de como manipular a cor. Warhol se apropriou da imagem recortada, copiada, aumentou o contraste, e feita em um formato quadrado, que significava que os quadros poderiam ser vistos de qualquer orientação.
 Uma coleção dessas pinturas foi o foco da primeira exposição de Warhol na prestigiada na Galeria Leo Castelli, no final de 1964, e sinalizou sua ascensão ao mundo da arte. Na Eykyn Maclean, os visitantes tiverm a oportunidade de se deleitar com a paleta de cores vibrantes de Warhol e a sensibilidade gráfica corajosa, um tanto fugaz, de dois anos obsessão floral de Warhol por estas.




Fonte: http://gabineted.blogspot.com.br/2014/03/andy-warhol-flower-power_2.html

sexta-feira, 13 de março de 2015

ARTHUR SCHOPENHAUER
“A coisa-em-si”, de Kant e “a Idéia”, de Platão


A doutrina de Kant é, no essencial, o seguinte: “Espaço, tempo e causalidade não são determinações da coisa-em-si, mas pertencem somente ao seu fenômeno, pois eles não passam de meras formas do nosso conhecimento. Ora, como toda pluralidade, nascer e perecer só são possíveis por meio do tempo, espaço e causalidade; segue-se daí que aqueles cabem exclusivamente ao fenômeno, de modo algum à coisa-em-si. Todavia, como nosso conhecimento é condicionado por aquelas formas, a experiência inteira é apenas conhecimento do fenômeno, não da coisa-em-si. Mesmo ao nosso próprio eu se aplica o que foi dito, e nós o conhecemos somente como fenômeno, não segundo o que possa ser em si”.
Platão, por sua vez, diz algo assim: “As coisas deste mundo, que nossos sentidos percebem, não possuem nenhum ser verdadeiro: elas sempre vêm-a-se, mas nunca são. Têm apenas um ser relativo; todas juntas somente o são em e através de sua relação uma para com a outra. Pode-se, por conseguinte, igualmente nomear seu inteiro ser-aí também não ser. Em consequência, elas também não são objeto de uma experiência propriamente dita, pois tal experiência só pode haver daquilo que é em e para si, sempre da mesma maneira. As coisas deste mundo, ao contrário, são apenas objeto de uma opinião ocasionada pela sensação, assunção baseada em percepção não comprovada conceitualmente (Platão, Timeu, 28a). Enquanto nos limitamos à sua percepção, assemelhamo-nos a homens que estariam sentados presos numa caverna escura, tão bem atados que nãopoderiam girar a cabeça, de modo que nada veriam a não ser as sombras projetadas na parede à sua frente de coisas reais que seriam carregadas entre eles e um fogo ardente atrás deles; sim, cada um veria inclusive aos outros e a si mesmo apenas como sombra na parede à frente. Sua sabedoria, então, consistiria em predizer aquela sucessão de sombras, apreendida da experiência. Ao contrário, só as imagens arquetípicas reais daquelas sombras, as Idéias eternas, formas arquetípicas de todas as coisas, é que podem ser ditas verdadeiras, pois elas sempre são, entretanto nunca vêm-a-ser nem perecem. A elas não convém pluralidade alguma,pois todas, conforme sua essência, são unas, na medida em que cada uma delas é a imagem arquetípica, cujas cópias ou sombras são todas as coisas isoladas e efêmeras da mesma espécie e de igual nome. A elas também não convém nascer e perecer algum, nem mudança; pois são verdadeiramente, nunca vindo-a-ser nem sucumbindo como suas cópias que desvanecem (nessas duas determinações negativas, entretanto, está necessariamente contido como pressuposto que tempo, espaço e causalidade não possuem significação alguma nem validade para as Idéias; elas não existem neles). Apenas delas, por conseguinte, há um conhecimento propriamente dito, pois o objeto de tal conhecimento só pode ser o que sempre é e em qualquer consideração, portanto o que é em si mesmo e imutável, não o que é, mas depois também não é, dependendo de como o vê”. Eis a doutrina de Platão.
            Vê-se nitidamente que o sentido íntimo das duas doutrinas é exatamente o mesmo. Ambas declaram o mundo visível, o mundo da experiência, um mero fenômeno, que em si é nulo, e possui significação e realidade emprestada apenas mediante o que nele se expressa. Este que nele se expressa é, portanto, o oposto do fenômeno: para Kant, a coisa-em-si; para Platão, a Idéia. Apenas a estas conferem ambos o ser verdadeiro, recusam-lhes por completo, todavia, todas as formas de fenômeno, inclusive a mais simples e universal.
            Para que isso fique completamente claro e corrente, quero explicitá-lo com um exemplo. Pensemos num cavalo diante de nós. Então perguntemos: o que é isso?
Platão diria: “Esse animal não tem nenhuma existência verdadeira, mas apenas uma aparente, um constante vir-a-ser, uma existência relativa, que tanto se pode chamar de não-ser quanto de ser. Verdadeiramente é apenas a Idéia, que se estampa naquele cavalo, ou o cavalo em si mesmo, que não depende de nada, mas é em e para si, nunca veio a ser, nunca se extinguindo, mas sempre da mesma maneira. Enquanto reconhecemos nesse cavalo sua Idéia, é por completo indiferente e sem importância se temos aqui e agora diante de nós esse cavalo ou seu ancestral que viveu há milhares de anos; também é indiferente se ele se encontra aqui ou num lugar distante, se ele se oferece desta ou daquela maneira, nesta ou naquela posição, ação, ou se, finalmente, ele é esse ou algum outro cavalo. Todas essas coisas são nulas, e tais diferenças significam algo apenas em relação ao fenômeno. Unicamente a Idéia do cavalo possui ser verdadeiro e é objeto de conhecimento real. Assim diz Platão.
Agora deixemos Kant falar: “Esse cavalo é um fenômeno no tempo, no espaço e na causalidade, que, por sua vez, são as condições a priori completas da experiência possível, presentes em nossa faculdade de conhecimento, não determinações da coisa-em-si[1]. Por consequência, esse cavalo, tal qual o percebemos neste determinado tempo, neste dado lugar, como vindo-a-ser no encadeamento da experiência – isto é, na cadeia de causas e efeitos, e em virtude disso necessariamente indivíduo que perece -, não é coisa-em-si, mas um fenômeno valido apenas em relação ao nosso conhecimento. Para saber o que ele pode ser em si, por conseguinte independente de todas as determinações encontradas no tempo, no espaço e na causalidade, seria preciso outro modo de conhecimento além daquele que unicamente é possível pelos sentidos e pelo entendimento”.

Transcrito por Jardel Dias Cavalcanti de: SCHOPENHAUER, Arthur. Metafísica do Belo. Tradução e notas de Jair Barbosa.São Paulo: Ed. da Unesp, 2003. P.31-37.





[1] - Na verdade, Kant, na Crítica da razão pura, diz que espaço e tempo são formas puras a priori da sensibilidade, pela qual os objetos nos são dados. Esta é, pois, a receptividade do conhecimento. A ela se acrescenta a espontaneidade do conhecimento, o entendimento com doze categorias radicadas nele originariamente, dentre as quais a causalidade. Daí, para o conhecimento de um objeto, ser necessário o somatório de intuições e conceitos. Intuições sem conceitos são cegas, e conceitos sem intuições são vazios. Quer dizer, Schopenhauer reduz as dozes categorias de Kant à de causalidade, e, à diferença dele, aloca-a junto com o espaço e o tempo no entendimento, para constituírem o chamado princípio de razão. Nessa interpretação, por conseguinte, Schopenhauer já adotou Kant a sua própria filosofia antes de mais uma vez adaptá-lo a seu Platão. 

quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

BRASSAÏ - fotógrafo underground:


BRASSAÏ - fotógrafo underground:

Brassaï, o fotógrafo da Paris underground, era fascinado pelas pessoas notívagas que pertencem a um mundo de prazer, amor, vício, crime, drogas. Um mundo secreto, suspeito, fechado aos não iniciados. Brassaï, além de fotografar bordéis e casas de ópio, que ele considerava representarem a face mais viva e autêntica da cidade, também fotografou um grupo de artistas com quem compartilhava alguns valores.


Seus escritores favoritos, Stendhal, Dostoieviski e Nietzsche, dizia Brassaï, eram apaixonados pelos proscritos que viviam longe das convenções. Eles admiravam seu orgulho, sua força, sua coragem, seu desdém pela morte. Dostoievski venerava criminosos de verdade, acrescentava Brassaï. Ladrões, assassinos, condenados - seus próprios companheiros de prisão. Esses criminosos, rejeitados pela sociedade, se tornaram seus mentores, sua doutrina de vida tornaram-se seu ideal. Dostoieviski conscientemente adotou o código dos presos: viver a vida segundo as próprias paixões, criar as próprias leis!

Também Sartre, amigo de Brassaï, sentia atração similar por lugares sórdidos e jovens duvidosos, e sua rejeição dos valores de classe média, seu fascínio pelo ladrão Jean Genet e sua arte acarretavam comparações com o código de condenados de Dostoievski.