terça-feira, 2 de setembro de 2014

Heidegger visita a peça “Recordações do tempo em que tinha boca”

Heidegger visita a peça “Recordações do tempo em que tinha boca”, de Aguinaldo de Souza


Por Jardel Dias Cavalcanti

A morte enquanto indagação filosófica foi o tema da instigante peça “Recordações do tempo em que tinha boca”, sob direção de Aguinaldo de Souza, apresentada no Filo (Festival Internacional de Londrina).
Livremente inspirada no cinema de Charles Chaplin e no livro “Intermitências da morte”, de José Saramago, a peça faz do corpo o principal instrumento de comunicação. Os recursos cênicos são mínimos justamente por isso, para que a mímica nos transporte para uma situação absurda, a da relação do homem com sua mais terrível e única certeza: a morte.
Não podemos deixar de pensar na filosofia de Heidegger durante a apresentação da peça. Para o filósofo alemão, o homem é um ser jogado no mundo, abandonado à sua precariedade, perdido e mergulhado na angústia de sua finitude. Seu próprio ser é indefinido, sendo sua convivência com os outros e com as coisas incerta e precária. Na busca por apoio, encontra apenas a terrível certeza de que a morte é inalienável. Imprevisível, mas certa, a morte é assustadora. Quando chega, é implacável e inadiável na destruição do Ser. Portanto, para Heidegger, o homem é um ser-para-a-morte.
A peça de Agnaldo de Souza trafega nesta certeza. Os atores vivem ou em situação de repetição absurda de seus gestos, como um Godot a espera de nada, ou em momentos de desequilíbrio e impossibilidade de afirmar qualquer razão para a vida. A cena mais dramática nesse sentido é a da atriz passando de um sapato de salto alto a outro, se calçando num desequilíbrio permanente.
Outro momento forte da peça é quando a lista de mortos anunciada é constituída de nomes de pessoas da própria plateia.  Esta estratégia aproxima a angústia da morte de todos, destruindo o distanciamento que a condição de espectador possibilita. O riso amarelo da plateia revela o resultado positivo da estratégia.
Voltando ao corpo dos atores: eles falam mais do que tudo. Lucas, Paula e Tainara chaplinianamente tornam nossas ações cotidianas desprovidas de heroísmo, calcadas em repetições sem sentido, desprovidas do sublime. Comer, passar o dia nas redes sociais, se enfeitar. Estratégias para a fuga da certeza inabalável da morte? De nada adianta, é o que a sôfrega e caricata representação de nossos gestos pelos atores nos comunica a cada segundo da peça.

O teatro nos devolve a autenticidade da vida. Como dizia o próprio Heidegger, “a linguagem é a morada do ser”. É na linguagem que as coisas ganham sentido, lugar da abertura das possibilidades para o restabelecimento do ser autêntico, aquele que nos manteria preparado para a própria morte.



quarta-feira, 2 de abril de 2014

Paulo Sérgio Talarico

DUAS SÉRIES:
porteiras e fogões

Por RONALD POLITO


1.

Há mais de uma década, Paulo Sérgio Talarico tem frequentado a tópica por excelência recorrente das artes-plásticas em Minas Gerais: a representação de suas montanhas, fazendas, campos e cidades do interior, reais ou não, em paisagens rurais ou cenas urbanas que remetem a lugares reconhecíveis ou puramente imaginados. Se essas representações apontam uma leitura particular da tópica, o que aqui não será abordado, elas de qualquer modo se balizam pelos elementos consagrados na área.
            Não é o caso de duas séries que têm se firmado no campo de suas pinturas. Refiro-me aos quadros de pequenas dimensões que nos apresentam, de um lado, porteiras em estradas rurais e, de outro, fogões de lenha. Uma opção por isolar uma parte capaz de representar o todo. A força de uma tentativa desse tipo será tanto maior quanto mais intensa for sua capacidade de magnetizar, atrair para si os diversos atributos do todo a que quer se referir. É esse, me parece, o caso dessas duas figurações: os fogões e as porteiras.
            Talarico está pisando em terreno novo. Desconheço, nas representações e tópicas sobre Minas Gerais, obras de artes-plásticas que nos apresentem esses elementos isolados de seus contextos. Trata-se, assim, de um movimento mais imprevisível, de invenção de novos recortes capazes de apresentar do outro modo esse imaginário rural e da vida no interior agrário.
            Dizer que fogões e porteiras remetem a Minas Gerais é, no fundo, um reducionismo, aqui só compreensível por sabermos de dados biográficos do autor e pela semelhança que as imagens guardam com objetos do mundo real e presentes nessa parte do território brasileiro. Mas é possível, naturalmente, não se ater a essa moldura e tomar essas figurações como representações de uma realidade mais ampla, a do país. Ou mesmo de todos os países agrícolas e periféricos no cortejo mundial, quando essas imagens alcançam latitudes antes impensadas.


2.

As porteiras ou cancelas são como que uma conclusão lógica, uma redução ao mínimo, do que já vinha se manifestando nas paisagens montanhosas do autor. Em diversas paisagens, bem como nas landscapes (que são um subconjunto dessa tópica), que nos apresentam especificamente recortes rurais e semirrurais, tornou-se notória a presença de grandes porteiras em primeiro plano que, geralmente, servem como moldura a partir da qual o espectador descortina, por trás delas, a circunstância geralmente bucólica que resguardam. Como moldura dentro da moldura, elas funcionam como lente de aumento, como seleção e recorte privilegiador do que é mais importante a ser reconhecido. Diga-se, ainda, que não são porteiras, por vezes de currais, eventualmente presentes em representações de casas-grandes mineiras que incorporam seu entorno, pátios e pomares. São porteiras de estradas de chão, demarcando limites de propriedades, povoados, definindo território. E, aos poucos, elas foram se autonomizando até que surgiram como o elemento a ser destacado.


Sem título. Acrílica sobre tela, 40 x 10 cm (detalhe). [2002].

            Cercar, dividir, resguardar, preservar: silenciosas e fechadas, essas porteiras servem para barrar o observador inoportuno, o invasor do que deve se manter na privacidade. Apenas uma grande casa à direita indica a ocupação humana, nenhum bicho, nenhuma flor. Casa recolhida e preservada pelas montanhas e pelo céu que a cercam. Montanhas e céu em profunda harmonia. Numa pintura que é também desenho (principalmente dos repertórios dos quadrinhos) nos delineados e simula se aquarelar nas vegetações, tipos de técnica e linguagem que o autor há décadas vem transferindo para a tela. Essa opção sobrecarrega a cena com uma dimensão infantil, lúdica, acentuando o que uma imagem pode conter de ilustração.
            Este é um tipo diferente de locus amoenus: desprovido de fontes, de ninfas, do repertório usual, põe em seu lugar apenas porteiras, montanhas, casinhas, o vocabulário reduzido aos naïf. E as dimensões pequenas dos trabalhos igualmente são adequadas ao tema.

elementos mais primários, capturado por um lirismo que lança mão dos rabiscos da infância. As cores quentes, vivas, a superfície homogeneamente ensolarada, na maioria das imagens, confirmam essa organização em torno do básico, por pouco



Sem título. Acrílica sobre louça, 20 cm/d. 2010. Coleção Henrique Teixeira.

            Por vezes, a orientação de cores é outra. Como no caso desse quadro em tons terrosos, quase monocromático, como se citasse o sépia de certas fotografias envelhecidas ou transmutasse em desbotamento o que o tempo fez com a pequena vila apresentada num fim de tarde.



Sem título. Acrílica sobre cartão reciclado, 30 x 20 cm. [2002]. Coleção Valéria Jucá.

            A vila repousa em absoluto silêncio, nenhum movimento. Nada está sendo ou será construído aí, ela está pronta e acabada. E a porteira é sólida, três pranchas largas em mourões pesados. O "mesmo" lugar recebeu nova apresentação, agora se colorindo um pouco mais,  mas o tom de desolação, de vida parada, permanece intacto.

Sem título. Acrílica sobre cartão reciclado, 40 x 30 cm. [2002].

            Como síntese da tópica, redução máxima, a tela seguinte é uma das melhores realizações do conjunto, cuja meta parece ser o estado de contemplação onírica. Nela apenas a porteira e a cerca indicam claramente a presença e a posse humana, afora os pastos. E o pequeno monte à direita oculta, antes que a curva da estrada suma, tudo o que nossa imaginação pode supor por trás dele, incluindo o vazio. O local ameno guarda suas fraturas, seu desgaste. Mas a degradação se encontra paralisada, o que permite a figuração amistosa, uma promessa de paz, que aparentemente não nos pertence, ainda que possamos experimentá-la do lado de cá porteira.



Sem título. Acrílica sobre tela, 40 x 20 cm. [2002]. Coleção Adalberto Queiroz.

            Esta última tela, a de melhor realização das que conheço com as porteiras, com exceção da tela com tons terrosos, abandona os traços de algum modo mais juvenis das que reproduzi. E repete praticamente todos os elementos da anterior, mas com outra abordagem. As cores aqui se aprofundam, algo outonal ou mesmo invernal está presente. E se nas anteriores os delineados as aproximam de certos padrões de ilustração, nessa o resultado é diverso, precisamente porque eles deixam de ter essa propriedade ilustrativa ao adquirir mais substância. São contornos grossos, demarcando grandes volumes de terra ou vegetação apenas sugeridos, talvez caulim no barranco branco, que se espalha pelo chão. Eles intensificam com certo expressionismo as escolhas cromáticas rebaixadas desses volumes da tela, algo melancólicas ou frias. E os movimentos sinuosos e velozes de barrancos, matas e porteira conferem alguma intempestividade à atmosfera.


Sem título. Acrílica sobre cartão reciclado, 45 x 35 cm. 2006. Coleção Helô Barbosa.

3.

Os quadros com os fogões de lenha e suas cozinhas são mais radicais. As porteiras foram um recorte inteligente, mas de um repertório dado. No caso dos fogões de lenha a operação é mais conceitual, alegórica, imprevista. É importante notar o quanto é pequena nossa iconografia dos pobres e envergonhados interiores de casas-grandes e outras moradas rurais, o que talvez "justifique" sua pouca frequentação. Mais ainda se contrastada com a grande quantidade de representações de fazendas do país, com seus pomares, cercas e criações, em telas, aquarelas, desenhos e gravuras.
            Como objeto imaginado capaz de atrair outros, o fogão de lenha aqui ocupa o centro para se apresentar a moradia, a habitação, de forma despojada, às claras. Outros cômodos da casa seriam talvez redutores: a sala de visitas com sua sociabilidade interessada, os quartos e sua intimidade supostamente indevassável... A cozinha é onde todos se encontram, onde as hierarquias estão mais afrouxadas, e é incontornável.
            Casas, cozinhas e fogões são, no entanto, mais determináveis. A escolha é pela cozinha espaçosa, com quase sempre o mesmo grande fogão de fazenda, a janela dando para o pasto extenso, o dia ensolarado e homogêneo lá fora, os interiores em amarelo algo melancólico, com o observador situado no cenário. Esses são os elementos usuais.


Sem título. Acrílica sobre cartão reciclado, 40 x 30 cm. [2002].

            As linguiças penduradas, as galinhas complementam uma cena típica do interior do Brasil. Mas essa atmosfera pode ser perturbada por presenças menos comuns. No caso, o quadro do possível casal da casa, que seria mais de se supor em outro lugar.

Sem título. Acrílica sobre tela, 70 x 50 cm. 2013. Coleção Helô Barbosa.

            Essa mesma organização geral pode ser notada em outros trabalhos. O seguinte é particularmente perspicaz com a utilização da almofada de uma porta ou janela, da mesma natureza das que estão pintadas na própria imagem, como suporte, tornando a "tela" tridimensional. Note-se que esse material vendo sendo usado há muito tempo por Talarico, modo de forçar os limites entre dentro e fora e entre duas e três dimensões. O efeito ótico é de inversão, a cozinha passa a estar "encaixada" num cenário que apresenta o teto e as três paredes em torno. Mas também de duplicação, porque a perspectiva pintura é diversa da e concorre com a perspectiva sugerida pelo facetamento, desestabilizando a posição do observador em seu interior. Outra vez, a presença de quadros nas paredes, que aqui replicam confirmativamente o "quadro" que a janela emoldura, e que informam sobre um padrão de uso, um ambiente cultural e um ideal de natureza.

Sem título. Acrílica sobre almofada de porta, 95 x 25 cm. 2010.

            Na tela seguinte, fazem-se mais presentes elementos incomuns. os candelabros com as velas ao lado do fogão, o espelho refletindo a vela e a cadeira com braços atrás do fogão, como se pertencessem a outro ambiente doméstico. Também a taça causa certa surpresa, pois não é usual como são o queijo curado na beirada do fogão, o bule e a caneca ou leiteira. Uma cozinha, então, que reúne elementos de outros cômodos, sintetizando toda a casa que possui traços de requinte aristocrático e frugalidade, e de novo estamos posicionados dentro dela, olhando o fogão de perto e de cima, e parece que estamos sozinhos. Em todos os trabalhos, a mesma ausência, nenhum ser humano, exceto o observador, com poucos elementos que suponham alguém ter estado ali presente há pouco tempo ou que venha novamente estar, a taça apenas. As mesas, quando há, estão bem arrumadas, sem vestígios de uso, os fogões e espaços trazem poucos alimentos e se encontram arrumados, em repouso e alheios a nossa curiosidade.


Sem título. Acrílica sobre tela, 70 x 50 cm. 2012. Coleção Leila Bara.

            O fogão de lenha parece ser, então, uma espécie de natureza-morta, por vezes até ladeada por arranjos florais, outras naturezas-mortas na cena, e também entra em atividade, tornando a presença humana mais próxima.



Sem título. Acrílica sobre tela, 70 x 50 cm. 2013. Coleção Cláudia Soares.

            A natureza-morta em primeiro plano, citando Van Gogh, bem como as outras em terceiro plano, mundanas, da roça, desencantadas de seus atributos usuais de requinte, mas revelando uma cozinha festiva ou mesmo alegre, não conseguem nos desviar do principal, as panelas no fogão tosco, ensebado, desses cimentados e pintados com muito pó xadrez. Mas com forno. E sempre a cadeira e a mesa, numa cozinha espaçosa onde cabe muita gente.


Sem título. Acrílica sobre tela, 70 x 50 cm. 2012. Coleção Faustino Teixeira.

            Um território amigável, com a lenha acesa, o coador de pano a postos, o céu da paisagem incorporado ao espaço interior, nas janelas, no jarro da mesa e nela própria, os quadros na parede aumentando a intimidade da circunstância. E o cão se aquecendo torna tudo ainda mais hospitaleiro, convidativo.


4.

Duas séries que dialogam com as tradições das paisagens e das representações rurais, tentando sintetizá-las a partir de elementos aglutinadores, capazes de pôr em ação um conjunto de referências. A reuni-las, o tom intimista, a posição contemplativa do observador, o silêncio, a falta de movimento, a luz diurna clara e homogênea, a linha negra do desenho definindo as regiões das cores, a presença humana por suas obras. Nas porteiras, o sistema de posse retificado, o paraíso meio decaído, privado e isolado. Talvez por isso mais convidativo à divagação do olhar. Nos fogões a lenha, a sociabilidade manifesta, a cozinha como centro da casa, lugar para o encontro e a conversa, a feitura dos alimentos e sua partilha, do íntimo e do coletivo reunidos. Do conjunto, ao qual se agregam outras séries do autor, sobressaem o desejo de apresentar os ambientes naturais e rurais como possibilidades do espairecimento, de devaneio bucólico, de convívio afável. E por meio de figuras reduzidas ao mínimo (porteira, casa, montanha; fogão, janela, mesa), exacerbado por sua estilização de desenho. Curiosa operação de redefinir e reposicionar os dados que pertencem a um imaginário coletivo, a vida nas montanhas em pequenas comunidades e em estado de isolamento, encontrando alguns elementos capazes de remeter a essa combinação particular de relações históricas, sociais, culturais e afetos da memória. Eles se alimentam de nossas vivências da infância, reais ou imaginárias, e propõem recortes imaginativos das circunstâncias da vida interiorana, que correspondem às suas melhores condições diante de um entorno ameaçador.

Ronald Polito

março de 2014

quarta-feira, 19 de março de 2014


GALINHADA PARA TALARICO
Ronald Polito



            As galinhas entraram em nossas vidas muito antes que pudéssemos imaginar. Bichos de nossa intimidade, desde sempre na Arca, dispensam apresentações. De minha parte, creio que elas passaram a pertencer definitivamente a meu imaginário quando eu tinha uns quinze anos de idade e era leitor da revista Mad. Num daqueles números antológicos, um cartum com galinhas, que suponho de Don Martin, tornou-se para mim uma lembrança permanente ao longo da vida. Nele podíamos ver duas enormes galinhas nas salas de um museu observando telas clássicas, tipo Rubens ou Rafael, com um pé semierguido, a cabeça levemente inclinada, contemplando, e bem interrogativas. Uma cena que valia por tomos e tomos de sociologia da arte. Se não era de Don Martin, nenhum problema, mas se citei o cartunista brilhante foi para indicar uma das influências mais importantes e permanentes que Paulo Sérgio Talarico recebeu em sua formação, não apenas pelo traço, como também pelo humor.

E a galinha é um desses assuntos que parecem estar necessariamente ligados ao cômico, ao satírico, ao ridículo, mesmo que isso não esgote suas representações. Digo isso pensando na iconografia e em como a galinha surgiu e se destacou. Geralmente ocupou uma posição coadjuvante em cenas rurais e semirrurais da pintura da época moderna e novecentista. Entre outros bichos, figurava compondo o cenário do quintal ou terreiro. Ou poderia estar pendurada ou sobre uma mesa, morta com outras aves e caças, em outro gênero de pintura (por exemplo, em telas de Gustave Caillebotte). Mas, aos poucos, elas passam a ser apresentadas isoladamente, chocando ou ciscando, em pequenos bandos, ao lado de galos, sozinhas ou com a ninhada, em miniaturas ou telas a óleo de pequenas dimensões, próprias ao tema. Pode-se imaginar a surpresa que essas pinturas provocaram na época, talvez semelhante à estupefação congênita das próprias galinhas, pois foi necessário um longo percurso de deslocamento de valor do representável para que se chegasse ao consumo das imagens de cada um dos animais. De qualquer modo, o que temos nessas pinturas é uma tentativa de conferir certa gravidade às galinhas, bichos domesticados captados em pouco ou nenhum movimento, com um enquadramento e tratamento de cor e luz acadêmicos.

            Uma galinha, contudo, não tem nuances. É muito fácil saber o que é e o que não é uma galinha. Não há como sustentar durante muito tempo uma apropriação épica ou trágica de uma galinha. Exceto nessas espécies de memento mori que são as telas lúgubres com bichos mortos em cozinhas, fadadas ao sucesso contemporâneo, em que a escatologia, o bizarro e o feio estão entronizados. Ou queimando-as vivas em praça pública, como fez Cildo Meireles em 1970.

            Mas, logo em seguida, nós podemos vê-las situadas em seu território por excelência, que é o do cômico e suas derivações. Evidentemente, este é um investimento de sentido nosso. As próprias galinhas não são assim ou assado (sem trocadilho). São nossas construções do que seja o risível, o ridículo, o absurdo, o irônico, o patético etc. que escolhem no mundo sensível aqueles elementos capazes de apresentá-las. E as galinhas encontraram seu próprio elemento quando se viram representadas em um sem-número de trabalhos de cartuns, das histórias em quadrinhos, das charges, dos desenhos animados. Este é um universo, se comparado à galáxia da pintura. O que de melhor as galinhas podem nos dar talvez seja nos fazer rir.

            Essa é a opção de Talarico, que há muito tempo se apoderou das galinhas como um de seus temas mais recorrentes. Ele também fez diversos galos, mas aqui só vou tratar delas. Sozinhas ou em bandos, com suas crias, em pequenos suportes diversos como telas, almofadas de janelas e portas de demolição, pratos, cubos, em desenhos em papel, cartão, cerâmica, em pinturas, o artista flagra o bicho de diversas perspectivas, geralmente cômicas, mas não apenas, pois há um lirismo delicado em suas obras.


Acrílica sobre cartão reciclado, 45 x 30 cm. 2012.

            Ela acaba de fazer seu primeiro movimento para seguir em frente, esticando o pescoço, e para por um segundo, o que sempre parece uma falha de funcionamento, uma isquemia cerebral intermitente. Nesse exato instante, o artista a paralisa em sua aparente hesitação. A cabeça diminuta em relação ao corpo agigantado parece ampliar sua ignorância sobre para onde vai, ressaltada no olho esbugalhado mirando um ponto muito acima do observador. Uma galinha-botero. Poderosa, no entanto, meio como uma desconjuntada ou obsoleta máquina de guerra, ela empurra com as costas o céu e pisa firme o chão pouco animador que tenta desestabilizá-la, apropriando-se de todo o espaço: entre o céu e a terra há uma galinha.

            Em seus movimentos quase mecânicos, reduzidos, na pobreza de sua expressão corporal escorregadia (talvez por isso exitosamente incorporável a performances), com seu pé meio que esquecido erguido no ar, seu par de olhos vitrificados e distantes, a crista como que autômata e sempre nervosa, a galinha é a própria materialização das incontáveis dúvidas, geralmente estúpidas, em que podemos perder grande parte de nossa existência. Ela titubeia entre hipóteses, destinos, que supõe existirem. Ela nunca sabe para onde vai, nunca sabe se vai, nunca sabe-se.

Lápis sobre papel. [1998]. Coleção do autor.

            Com sua operosidade restrita, que é sempre a mesma, o afazer cotidiano de ciscar, ciscar, ciscar horas a fio, a galinhada nos humaniza, presos ao pasto cotidiano, quando deixamos de prestar atenção até em nós mesmos.


Acrílica sobre cartão, 100 x 80 cm. 2011. Coleção Cristina Couto Guerra.

            E com a falta de cerimônia ou ingenuidade típica de quem nunca se imagina notado, elas se esquecem da vida apontando com garbo seus rabos para o alto, a galinha branca com pernas deselegantemente bem abertas, no centro do quadro, para você que a está vendo. Esse centro onde se encontra a maior parte do alimento e que está coberto por seu corpo, cujo centro é seu rabo... O trabalho, portanto, não é sutil, mas pode passar despercebido. Como o pescoço pelado roxo da galinha com crista bem vermelha em primeiro plano. E tão senhoras, grandes galinhas poedeiras criadas soltas.


Acrílica sobre cartão reciclado, 35 x 25 cm. 2000. Coleção Helô Barbosa.

            Esta galinha d’angola, tão satisfeita de si, para e posa lateralmente para ser flagrada, certa de sua beleza exótica, a distinção de suas penas nesse lado do Atlântico. Seu olho e bico produzem um sorriso ambíguo como o de Mona Lisa?



Acrílica e tinta de parede sobre cartão reciclado, 40 x 30 cm. 2000. Coleção Helô Barbosa.

            Essas três nos conduzem a um lugar mais conhecido. Estamos com certeza em um terreno humano, já que estamos falando de galinhas. Que são muito falantes. A imagem é do tipo que nos leva a um sorriso à socapa. A vermelha, tão convencida de si, alteada, apenas acabou seu comentário com ares de ingenuidade, mas falsa porque é má atriz, sendo claramente questionada pela galinha do centro, que, por uma leve confusão ótica provocada por seu rabo, parece por um instante estar com a mão na cintura. A observação dela parece contundente, que dispensaria qualquer comentário a mais. Mas há: o golpe de misericórdia é dado pela galinha do fundo, que passa ao largo e sibilinamente acrescenta outra observação crítica.

            Galinhas têm mil e uma utilidades. Por exemplo: esta definitivamente humanizada como gorda galinha-sarney dos ovos de ouro, com o grande ovo do Congresso partido ao meio, oferecido. A cabeça ovo parece insistir no poder da reprodutibilidade dos ovos, calma e diligentemente chocados com bastante brilho, que recobre inclusive suas penas e rabo, mesmo sob um céu não muito amistoso. E, à diferença da fábula, essa galinha não tem dono.

Desenho e Photoshop. Charge no Jornal do Sol (Porto Seguro, 2004).

Esta chester um pouquinho acima do peso, poedeira, apresenta ao público curiosíssimo seu ovo-troféu, motivo de todo o orgulho de sua pose e fisionomia


Sem título. Desenho. [2000]. Coleção do autor.

            As galinhas também têm sido exploradas em outros suportes, como dito. Um deles é a cerâmica, no caso, o haku. No gênero da pintura de pratos, Talarico optou por utilizar esse prato “disforme”, “oriental”, de pequenas dimensões e espessura, no qual grava seus desenhos que depois são queimados. A forma inusual combina com a temática um tanto inesperada: uma galinha passeando com suas crias, vigilante.

Sem título. Haku, 18 x 12 cm. 2013. Coleção Ricardo Salomão.

            Outra experiência com desenho sobre cerâmica são esses cones também em raku. No menor, destacamos essa franga de peito estufado, crista ao alto, que parece rir. No maior, o pintinho ciscando/treinando, protegido entre duas galinhas.

Sem título. Haku, 10,5 cm x 4 cm/d; 14,5 cm x 4,5 cm/d. 2013. Coleção particular.

            Mas o trabalho mais surpreendente com o tema das galinhas é um pequeno cubo de madeira com suas facetas pintadas, recentemente realizado. Ele, de certo modo, pertence a uma série de cubos e pequenos mourões de madeira que há anos são transformados em prédios ou casas por Talarico, explorando a tridimensionalidade do suporte e em diálogo com obras de cerâmica mais típicas desse tipo de representação. Mas nos casos das peças de madeira a similitude é alta entre a forma geométrica e as moradias. Não é o que ocorre com o cubo que passo a observar, pois ele se organiza em outros termos.


Sem título. Acrílica sobre madeira, 7 x 7 x7 cm. 2014. Coleção particular.

            A imagem quase reproduz o tamanho original, um cubo com cerca de sete centímetros em cada aresta. Nele Talarico pintou com acrílica a mesma galinha vista por quatro lados e de cima. O cubo é um pedaço de madeira usado, velho, difícil imaginar sua anterior serventia. Mas as marcas de prego não deixam muita dúvida de que teve algum emprego.

            Estamos diante de uma pintura, mas que é também “escultura”. E que não tem frente e verso previsíveis, já que a imagem da galinha de frente não está na posição diametralmente oposta à imagem dela de costas. Ou seja, a observação do objeto pode ser iniciada em qualquer faceta, pois não há um início e um fim previstos. Sem saída ou entrada, leio-a em certa ordem, “dramatizando-a”.


            Pega de surpresa, ela levanta as asas como se respondesse ao comando de “mãos ao alto”, ao mesmo tempo que mantém as pernas abertas e paralelas enquanto é alvejada por dois poderosos disparos, um que atinge levemente seu ombro esquerdo, outro em baixo da asa esquerda, nenhum dos dois letal. Mais que assustada, sua cara denota perplexidade diante do que está acontecendo.


            Ao se virar tentando escapar pé ante pé, tem de enfrentar uma situação sísmica que ameaça fraturá-la. Mas não há mesmo saída. Tentando escapar de foram atrapalhada, vira-se integralmente, dá uma volta de 180 graus, o que é seu primeiro erro fatal.


            É atingida por quatro balaços de espingarda, do tamanho de seu olho, e um passa por cima. Dois tiros são mortais, os outros do rabo ainda lhe permitiriam sobreviver. Numa última tentativa de escape ela se volta de costas, o que é seu segundo e último grande erro e sua pior ideia...


            O disparo derradeiro, as pernas agora um pouco abertas, ela vai arriar, mas se vira ainda para ver a queda e seu alvejador. E diferentemente dos buracos reais das outras facetas do cubo, este buraco negro como que com respingos de sangue em volta foi pintado. O autor assina a morte e põe um ponto final.
            A coda é a parte de cima do cubo.

            Quando nosso olhar fura a tela d’água, mergulha no cubo e descobrimos sua quarta dimensão. A madeira serrada de forma tosca é um mar de ondas provocadas pelo deslocamento do corpo da galinha inesperadamente aquática e submersa, muito focada, como sempre indo sem que saibamos para onde, como uma lontra, ou um caramujo. Existe outra vida, tudo está salvo.

            Há um erotismo provocativo, debochado, nesses rabos levantados, nessas partes pudendas tão à mostra. Que até brinca com a pornografia e a escatologia. E não poderia ser de outro modo, afinal estamos falando de galinhas. E há a contraface disso tudo, o cuidado, o carinho com a cria, e o cotidiano atarefado com encher a barriga. Tudo muito básico, bem próximo da experiência humana diária.

Ronald Polito

março de 2014