quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

ANDY WARHOL: O Esnobismo Maquinal - por Jean Baudrillard



Conferência Pronunciada no Centro Georges Pompidou,
Paris, em 10 de setembro de 1990.

     

        Existe uma extrema dificuldade em se falar de Warhol porque, no fundo, não há nada o que dizer, e porque, além disso, isto mesmo já foi dito, ao longo de suas entrevistas e de seu diário, sem retóricas, sem ironias e sem exegese, pelo próprio Warhol. Aos comentaristas, se lhes resta algo por fazer, cumpre repetir substancialmente que não há nada por dizer. Ou dizê-lo, em todo caso, de uma maneira inutilmente complicada. Porque só Warhol pode refratar a insignificâncias de suas imagens, de seus gestos e de seus feitos mediante a insignificância de seu discurso; e isso ele o tem feito maravilhosamente bem.
       Levando isto em conta, já não importa que luz se projete sobre o objeto Warhol, sobre o efeito Warhol, porque sempre persistirá um resto definitivamente enigmático, que o exclue do paradigma da arte e da história da arte.
      O enígma é sempre o de um objeto que se oferece com uma transparência total e que, em consequência, não se deixa naturalizar por um discurso crítico ou estético. O enigma é o de um objeto superficial e artificial, um artefato que consegue preservar sua artificialidade (e bem sabido é que o artificial na arte é precisamente o que se opõe à crítica de arte). Todos os artefatos modernos, industriais, rosto de Marylin, lata de Campbell ou cadeira elétrica, tendem a converter-se ante o espectador em naturais: de tão banais que são. Agora, o mistério destes artefatos de Warhol, tanto como o mistério de sua glória, rebaixadas estupidamente a um efeito de moda ou de publicidade, não possui outro segredo senão a artificialidade pura. A artificialidade que se desprende de toda significação natural, sensual, para adquirir uma intensidade espectral, vazia de sentido, como é a do fetiche.
      A aura de Warhol é a do simulacro incondicional. Para mim. Warhol é um mutante.
      O domínio dos artefatos ultrapassa amplamente, em geral, o reino da arte. O reino da arte e da estética é de uma gestão convencional da ilusão, o território de uma convenção que circunscreve os fenômenos delirantes da ilusão: que cerca a ilusão enquanto fenômeno extremo. A estética brinda o sujeito com um certo domínio sobre a ordem do mundo, lhe oferece uma forma de sublimação da ilusão total do mundo que de outro modo nos aniquilaria. Sobre esta ilusão total do mundo, outras culturas tem aceitado sua crueldade e tem tratado de afrontá-la mediante equilíbrios superficiais. Porém, nossas culturas, as culturas modernas, já não acreditam nessa ilusão mediante a forma cultivada, dócil, do simulacro que é a forma estética.
      Em minha opinião, Warhol é a ilustração deste simulacro incondicional, contra a regra do jogo da arte e, portanto, contra a convenção estética de nossa cultura.
      Warhol é o primeiro que introduz ao mundo do fetichismo moderno o fetichismo transestético, a de uma imagem sem qualidade e de uma presença sem desejo.


      O fetiche, o objeto fetiche, bem se sabe, não tem valor; ou melhor: possui um valor absoluto, independente do juízo de valor. Vive do êxtase do valor. Cada imagem de Warhol é assim por sua vez insignificante e de um valor absoluto; trata-se de uma figura que tem eliminado todo o desejo de trancendência e só tem reservado lugar para a imanência da imagem. É,  neste sentido, artificial. Por que o natural em arte é que exista um sujeito para expressar-se, um sujeito encarregado de transformar o mundo real em sua imagem. Porém, um momento: as imagens de Warhol não são banais porque supostamente refletem um mundo banal, mas porque são resultado de uma ausência de toda pretensão de interpretação por parte do sujeito. São, diríamos, resultado da elevação da imagem à figuração pura; figuração sem transfiguração.


      Na visão mística, a iluminação do menor detalhe provém da intuição divina que o esclarece, vem do pressentimento de uma transcendência que o habita. Para nós, ao contrário, a exatidão desconcertante do mundo é provocada pelo pressentimento de uma essência em fuga, de uma verdade que já não está. Aquela exatidão que nos assombra é  o efeito de uma percepção minuciosa do simulacro midiático e industrial. Tal é Warhol e suas hipóstasis seriais da imagem, da forma pura e vazia da imagem, de sua iconografia extática e insignificante. E esta é, por sua vez, nossa nova mística e a antimística absoluta, no sentido em que cada detalhe com respeito ao mundo, cada imagem, guarda seu caráter iniciático, porém iniciático de nada.
      Esta transmissão fetichista dos signos e das imagens é o que separa Warhol de Duchamp e de todos os seus predecessores na revolução moderna da arte. Porque Duchamp, Dada, os Surrealistas e todos os que têm trabalhado para reconstruir a representação e em fazer trincar a obra de arte, todos formam parte  de uma vanguarda e procedem, de uma forma ou de outra, da utopia crítica.
      Já Warhol não pertence a nenhuma vanguarda nem a nenhuma utopia. E se presta contas a utopia, o faz porque em lugar de situá-la, como os outros, ao amparo de um tempo diferente, ele se instala diretamente no coração da utopia, ou seja no coração de nenhuma parte. Ele se identifica com esta “nenhuma parte” que é a definição da utopia, e é ele, por sua vez, esse lugar nulo - é assim como transpassar todo o espaço da vanguarda para ir lá onde ela queria ir; ou seja, a nenhuma parte-. Porém enquanto ela se reservava a inversão da arte e da estética, ele queima as etapas e consuma de uma vez o ciclo da estética. É deste modo, afinal, que nos liberta da arte e de sua utopia crítica.


      A arte moderna havia ido bastante longe na desconstrução de seu objeto, porém é Warhol quem foi mais longe na redução do sujeito da arte, na anulação do artista. É ele quem tem levado à suas maiores consequências o desinvestimento do ato criador. Centra-se aqui, poderia se dizer, seu esnobismo, porém é um esnobismo que nos alivia de toda afetação da arte. Precisamente porque é um esnobismo maquinal. Picabia, Duchamp, por exemplo, introduzem a máquina no quadro ou no mecanismo da pintura, porém a máquina se encontra contudo ali como mecanicicdade surrealista; no fundo, portanto, como função crítica (inclusive o readymade responde todavia a isto) não como maquinidade. Warhol, ao contrário, se identifica pura e simplesmente com o maquinal tal como se tem identificado com o ”nenhuma parte” da utopia, a fim de propagá-la e de propagar-se ele mesmo como realidade automática do mundo moderno.
      Há aqui um verdadeiro esnobismo: o maquinal integrado. E é isto o que confere às suas imagens uma potência contagiosa, enquanto no outros artistas, inclusive quando sublinham a mecânica da banalidade, suas obras continuam sendo objetos singulares. No entanto, estes artistas não se têm convertido em autênticas máquinas, em autênticos snobes, não são mais que artistas. Suas obras se situam a meio caminho do artifício; do artefato incondicional. Têm perdido, eles também, o segredo da representação porém não extraem as consequências dessa espécie de suicídio que o esnobismo maquinal implica.
      Com Warhol se cumpre a pretensão minimal de ser, a estratégia minimal dos fins e dos meios.

O NADA É PERFEITO PORQUE NÃO SE OPÕE A NADA
      Tudo em Warhol é fictício: o objeto é fictício porque já não pertence ao sujeito, mas somente ao desejo do objeto. A imagem é fictícia porque não corresponde a uma exigência estética, senão ao único desejo de imagem (e as imagens de Warhol se desejam e se engendram umas nas outras porque não existe outro destino para a imagem que a imagem). Carecem de significação própria já não estando alienadas. Neste sentido, o estágio do fetichismo, o estágio do simulacro incondicional, constitue um nível ulterior, superior ao da alienação. Warhol é assim o primeiro artista desalienado, transportado ao estádio do fetichismo radical.


      Depois da lógica revolucionária da alienação, a lógica fetichista do simulacro, a lógica radical do fetichismo. É Warhol o primeiro que encarna esta mutação formal das imagens. É isto o que lhe tem valido uma forma particular de fascinação que nos arrasta mais que o fetiche, uma aura fetichista que se una à singularidade do vazio.
      Os fetiches têm vida própria. Comunicam-se segundo a onipotência do pensamento; com a rapidez do sonho. Enquanto que os signos mantêm entre si uma relação diferenciada, os fetiches (as imagens, os objetos fetiches) desenvolvem uma imediata reação em cadeia. E isto é assim porque eles possuem uma substância mental indiferente tal como se comprova no fetichismo dos objetos de moda, cuja transmissão é irreal e instantânea devido à sua falta de sentido. Mesmo as idéias podem gozar deste modo de transmissão irreal e instantânea: basta fetichizá-las.
      Neste estágio de maquinação, de auto-maquinação que é o esnobismo de Warhol, não se produz crises no espaço crítico, mas um espaço paradóxico. O espaço crítico é o da presença respectiva do sujeito e do objeto, do artista e do mundo; todo ele na perspectiva de uma transformaçao do mundo governada pela potência simbólica. O espaço paradógico é o da presença do sujeito e do objeto, do artista e do mundo; todo ele na perspectiva de uma transformação do mundo governada pela potência simbólica. O espaço paradóxico surge, ao contrário, de uma fuga respectiva do sujeito e do objeto até alguma coisa muito mais enigmática. Para fazer-se uma idéia, pode-se pensar na situação atual das ciências avançadas no qual a objetividade do objeto e a posição crítica do sujeito desaparecem simultâneamente e de onde a única realidade do sujeito se resume a seus caminhos sobre uma tabela de cálculo. Este espaço novo de incerteza nas ciências é também um espaço paradógico. É deste ângulo que se deve analizar Warhol e, sem dúvida, também o paradoxo de toda arte atual.



Não existe um universo real por trás das imagens, como tão pouco o há por trás das luzes que refletem as trajetórias das partículas - não há sujeito Warhol por trás do efeito Warhol -. Existe uma superfície de aparição, de figuração, uma superfície virtual que, no estado atual das coisas, é o mais original que se pode obter (o mais “verdadeiro”?) tanto em matéria de ciência como em matéria de arte (não existe quiçá outra arte, nem existe por acaso outra ciência que uma ciência paradógica?). O status virtual, incerto, paradóxico da imagem é hoje seu status ideal, como o status do objeto sobre a luz da ciência. (A arte e a ciência, quer se queira ou não, se converteram em luzes).
      É preciso, portanto, terminar com o julgamento de intenções que se tem feito a dezenas de anos à Pop Art e a Warhol. A inacabável discussão ideológica sobre seu valor crítico ou não crítico, sobre sua cumplicidade com o sistema dos meios ou com o sistema capitalista, etc. É indubitável que não existe denuncia no universo de Warhol posto que não existe sequer enunciado propiamente falando. É, sem dúvida, isto o que lhe outorga força.
      É preservando esta indiferença das imagens a respeito do mundo que se protege, paradoxalmente, sua virulência e sua intensividade.
      Paradoxo de uma imagem sem objeto ao qual falta o imaginário do sujeito.
      Esta é a razão pela qual Warhol não forma parte da história da arte e forma parte da história do mundo, simplesmente - de nosso mundo-. Não representa nosso mundo; é um simples fragmento desse mundo, um fragmento em estado puro.
      Conclusão. Pode-se ocasionalmente apreciar a beleza, ou depreciar a nulidade deste ou daquele lenço de Warhol. A beleza se encontra em todas as partes e também nele, de alguma maneira, à primeira vista. Porém, o essencial para mim é a evidência da máquina Warhol, desta extraordinária máquina de filtrar o mundo em sua evidência material.

 (Paris, Centre Georges Pompidou, 10 de setembro de 1990)


Nenhum comentário:

Postar um comentário