quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

SILVIANO SANTIAGO: 
ENTREVISTA HISTÓRICA


Jardel, Mário Alex, Jaílson e Silviano Santiago
Grande Hotel, Ouro Preto- 1992


        A entrevista com o escritor, professor e crítico literário Silviano Santiago, no Grande Hotel de Ouro Preto, no dia 29 de abril de 1992, foi realizada para o Jornal Reviraarte (Jornal de Arte e Educação do Instituto de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal de Ouro Preto, s/n).
A entrevista aconteceu no momento da participação de Silviano Santiago como palestrante no seminário “Minas e as Utopias”. Sua palestra foi publicada em SANTIAGO, Silviano. “Utopia e democracia”. In: ANDRÉS, Aparecida (Org.). Utopias: sentidos Minas margens. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1993.
As perguntas foram formuladas em conjunto, sendo que uma ou outra intervenção não haviam sido programadas, decorrendo do “calor” da entrevista.

Silviano Santiago, o que o levou, no seu romance Em Liberdade, a recuperar a figura de Graciliano Ramos, que é um escritor-preso-político?

SILVIANO SANTIAGO: Para falar a verdade, o romance está escrito quase que de trás para frente. A minha primeira ideia foi a de fazer um trabalho sobre Cláudio Manuel da Costa. E a ideia de fazer um trabalho sobre Cláudio Manuel da Costa adveio do fato de eu não conseguir trabalhar muito bem os problemas da realidade imediata sem uma mediação simbólica ou sem uma mediação metafórica.
Quer dizer, eu comecei a bolar este romance por volta de 1975 quando houve o célebre caso [Vladimir] Herzog, como vocês sabem, ele foi dado como suicida, mas na realidade ele foi assassinado pelas forças de repressão. E as leituras que eu tinha em torno da Inconfidência Mineira, e em particular de um primeiro Auto da Devassa, que foi feito às pressas pelos juízes do Rio de Janeiro, eu tinha descoberto nesses textos que havia uma história, por assim dizer, mal contada. E essa história mal contada ela acaba sendo bem contada nos Autos da Devassa, nos clássicos. Então, o que eu percebia nessa leitura é que tudo indicava que Claudio Manuel da Costa não era suicida, que ele tinha sido assassinado e dado como suicida. Então, era a maneira que eu tinha encontrado para falar do caso Herzog e ao mesmo tempo dando uma dimensão simbólica a ele, porque o que eu queria fazer era uma grande reflexão sobre os sistemas totalitários ou ditatoriais no Brasil. Então, eu percebi que estava unindo Herzog a Cláudio Manuel da Costa, quer dizer, Herzog, de maneira simbólica, e Cláudio Manuel da Costa através de uma leitura que eu acho que na época era inédita e acho que ainda continua um pouco inédita da situação de Cláudio Manuel da Costa em Vila Rica. E, de repente, me veio a ideia de que estava faltando um outro período dos anos 30, quer dizer, a Ditadura Vargas.
Então, nesse sentido, me veio a figura de Graciliano Ramos, quer dizer, Graciliano Ramos surgiu no final, ele não surge no início. E quando me veio a ideia de Graciliano Ramos, eu consegui atar três períodos históricos bem nítidos e nestes períodos históricos nítidos também três figuras de intelectuais bastante nítidas.
Aí então foi um pouco de loucura, porque no caso de Claudio Manuel da Costa eu pensava criar um romance a partir de um manuscrito que eu tinha descoberto vindo fazer uma pesquisa na Casa dos Contos e esse manuscrito era o manuscrito de Cláudio Manuel da Costa. Falso obviamente, porque ele nunca deixou nenhum manuscrito. Então, a ideia do manuscrito e de um manuscrito falso, ele não é de Graciliano Ramos, é de Cláudio Manuel da Costa, mas ao ler as partes finais, senão me engano agora, não são as partes finais, ao ler a introdução do Ricardo Ramos, se não me engano, ele disse que Graciliano Ramos não chegou a terminar Memórias do Cárcere, se não me engano, vai ser difícil para eu lembrar todos os detalhes, isso eu escrevi em 1981. Mas eu lembro que dava sempre uma impressão de que o livro o Memórias do Cárcere... [não captado pelo gravador] transpõe a porta da prisão. Então, eu pensei assim: se eu quiser ser falso e inteiramente falso eu tenho também de escrever uma coisa que ele tinha dificuldade em pensar, que ele não queria pensar possivelmente que é exatamente o que acontece com você quando você transpõe as portas da prisão, quando você está em liberdade e você é obrigado a reconstruir a sua vida a partir do zero, que é então um pouco a experiência do livro.
Então, eu joguei para a segunda parte a história do Cláudio Manuel da Costa. E fica de maneira extremamente simbólica o caso Herzog, porque o discurso, só para lhe dar um exemplo, há diversos exemplos, o discurso, por exemplo, do padre ao enterrar o Cláudio Manuel da Costa é a fala do cardeal Arns ao enterrar Herzog. Aí eu comecei a fazer um jogo assim de textos para que as pessoas pudessem eventualmente ver uma certa circularidade e sobretudo o que o livro era na época: é um panorama das repressões e os regimes ditatoriais no Brasil.





No seu livro Em Liberdade, há uma epígrafe de Otto Maria Carpeaux sobre Graciliano Ramos: “Vou construir o meu Graciliano Ramos”. Você coloca...

SILVIANO SANTIAGO: É uma epígrafe verdadeira. [risos]

Eu queria que você falasse sobre o que é ficção e o que é realidade dentro dessa obra, numa perspectiva bem ampla. E outra coisa: qual a importância de se recuperar Graciliano Ramos hoje [1992], sabendo desde já que esse ano se comemora o seu centenário?

SILVIANO SANTIAGO: Você tem duas perguntas. Então vamos à primeira. A primeira é o seguinte: é que a minha tentativa nessa época era de escrever o que eu chamei de uma prosa-limite. O que é uma prosa-limite?
Uma prosa limite a meu ver seria uma tentativa de fazer um texto que aparentemente era autobiográfico, mas que no fundo era biográfico. Quer dizer, em outras palavras, eu fingia o estilo de Graciliano Ramos porque eu acreditava que fingindo o estilo de Graciliano eu me aproximava muito mais de uma biografia dele do que se eu mantivesse um discurso impessoal, objetivo, para poder descrever aquilo que estava acontecendo. É algo semelhante ao que se passa na história. De certa forma, quando você busca a testemunha, ou quando você está fazendo história, você de certa maneira parafraseia o documento, ou se aproxima do documento, ou absorve até mesmo o estilo do documento e assim por diante. Então esse foi o primeiro aspecto.
O segundo aspecto importante para mim é que eu tinha descoberto em virtude de também ser crítico literário, que uma das coisas mais interessantes no texto modernista é que é muito difícil definir até onde ele é ficção e até onde ele é autobiografia. O caso célebre que eu dou sempre como exemplo, é o caso de José Lins do Rego.
Ele escreveu Menino do Engenho na década de 30, e escreveu pouco antes de falecer, Meus Verdes Anos, que é uma autobiografia. Se você ler Meus Verdes Anos e ler Menino de Engenho você vai ver que é praticamente o mesmo livro. Então, porque José Lins do Rego teve necessidade de escrever no final da vida Meus Verdes Anos? É exatamente para dizer que na obra dele a fronteira entre a ficção e a memória não era uma fronteira muito forte, era uma fronteira extremamente delicada e talvez até mesmo com over laps tanto de um lado quanto do outro. A mesma coisa, se você quiser, posso dar inúmeros exemplos, no caso de Oswald de Andrade, se você ler Miramar e ler Sob as Ordens da Mamãe você vai ver que são praticamente livros idênticos. Sob as Ordens da Mamãe – Memória. Miramar – romance. Há quando muito uma diferença de estilo. Mas os fatos narrados, a perspectiva é mais ou menos a mesma. Então isso era outra coisa que eu queria levar até às últimas consequências: o fato de que entre ficção e memória as fronteiras são muito fluídas.
E a terceira ideia, o terceiro ponto dessa prosa-limite, ela adviria do fato de que talvez seja uma das primeiras tentativas, ou talvez a primeira tentativa de uma literatura pós-moderna no Brasil.
Então, o que eu tentei fazer é: em lugar de usar o procedimento clássico dos modernistas, que era paródia, onde você sempre tem uma distância irônica, escárnio em relação a outro texto, quer dizer, eu tratei o texto de Graciliano com um certo carinho, porque é um pastiche, é uma admiração, ao mesmo tempo em que ele me informa eu não gostaria de ser tão informado por ele. Quer dizer, é isso que eu chamaria de uma atitude pós-moderna de minha parte, quer dizer, eu não posso dizer que eu vivo a mesma condição que viveram os modernistas. Porque os modernistas viveram com uma tradição que deixaram muito a desejar – daí a paródia “minha terra tem palmeiras”, “minha terra tem palmares”. A tradição, para os modernistas, quer dizer, a tradição de uma literatura brasileira para os modernistas era muito pobre, era o Romantismo, era o Parnasianismo, era o Simbolismo, que não eram grandes produções literárias.
Então, eles podiam rir, podiam se divertir em cima daquela tradição. Agora para mim é impossível, porque eu tenho uma grande admiração por Drummond, eu tenho uma grande admiração por Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, e assim sucessivamente. Então foi a maneira como eu consegui tratar de uma maneira decente isso que me informa me informa mas contra o qual eu queria me rebelar de certa maneira dando uma visão de Graciliano Ramos. Daí meu “vou construir meu Graciliano Ramos”, que talvez seja mais idealizada do que a visão que ele próprio dava de si mesmo. Entende? Por quê? Porque eu achava que a vida de Graciliano Ramos tinha situações tão extraordinárias, aqui vai um pouco de petulância de minha parte, mas você sabe, se você é escritor você tem de ser petulante. [Risos] Eu achava que tinha determinados momentos da vida dele que ele não soube agarrar com a riqueza que esses momentos requeriam, o que é, por exemplo, a questão da liberdade.
Eu acho que tem coisas nele extraordinárias nesse sentido, mas ele nunca falou sobre isso. Ora, era uma situação desagradabilíssima, ele tinha quatro filhos, maior miséria. Esses dados todos são verdadeiros. Eu fiz muita pesquisa para escrever o livro, é óbvio. Mas, agora, a pesquisa é assim: ele sai da prisão em tal hora, em tal dia ele vai para a casa de José Lins do Rego, etc., etc. Agora, o que ele conversou com José Lins não tem maneira de eu saber. Aí é: todo construção. É aí que eu vou levantando questões que a meu ver extraordinárias e que eu tive a petulância de tentar imaginar para ele, não imaginar para ele, de tentar descrevê-las, eu acho que imaginar para ele está incorreto, de tentar escrevê-las como ele as teria escrito. Aí está a petulância, aí está o exagero.
Então, é nesse sentido que há uma construção de Graciliano Ramos que não é minha, que não é dele. E essa construção de Graciliano Ramos ela foi possível. E aí eu remato esse terceiro ponto, porque esse livro é muito importante na minha vida pessoal, inclusive no meu trato com meus sentimentos, no trato até com meu estar no mundo. Porque eu tinha muita vergonha de ser escritor quando estava num ambiente de professores e tinha muita vergonha de ser professor quando estava num ambiente de escritores. E aí eu descobri que tinha uma originalidade que nenhum outro escritor brasileiro tinha que era de ser também crítico literário e que devia colocar isso a serviço de minha criação. Quer dizer, se os outros não eram críticos o problema era deles não era meu. Então, era o primeiro momento em que eu não tenho vergonha de sendo escritor ser crítico literário e de sendo romancista ou vice-versa, sendo crítico não ter vergonha de ser escritor. E é um livro que só poderia ter sido escrito por um crítico, porque a maneira como eu alimento os personagens não é aleatória, tem um lado obviamente da minha imaginação, etc., mas não é aleatória. José Lins é totalmente alimentado pela leitura que eu tenho de José Lins. Existe, por exemplo, um determinado momento em que existe uma crítica de Rubem Braga a Jorge Amado. Essa crítica ela existe e foi publicada numa revista, em que eu não me lembro do nome agora, em 1937. O que eu fiz foi simplesmente tornar diálogo as ideias de Jorge Amado.



[não captado pelo gravador]
Não. Eu peguei umas folhas enormes e quadriculei essas folhas com as datas. Eu sabia que ele tinha saído da prisão no dia 11, entende, mas eu não sabia, eu sabia que era na terça-feira ou quarta, eu tive que ir então, no calendário do ano. Então eu coloquei segunda, terça, quarta etc. Eu fiz uma folhinha, quadriculei a folha e comecei a ler jornais e revistas. Então eu alimentei o livro. O livro não é pura imaginação, quer dizer, se eu falo em um determinado momento que a mulher de José Lins e a mulher de Graciliano foram ver o filme La Garçon, é porque o filme La Garçon estava sendo exibido naquele dia no Rio de Janeiro e havia uma crítica no jornal, eu saquei qual era a crítica, etc. então eu alimentei a conversa um pouco através disso. Então, dessa forma, depois desses quadrados todos montados eu procurei ver quais eram os quadrados que tinham rentabilidade dramática. Porque tinha dias em que não havia nada. Aí eu falei: não vou por nada nesse dia. Entende? Aí outros dias tinham coisas interessantes aí eu punha. Ele vai a São Paulo: eu olhei o que aconteceu quando ele ia a São Paulo. Aí aconteceram casos extraordinários. Que é o primeiro dia da pensão. Aí na segunda parte aconteceu uma coisa extraordinária. Eu anotava também se fazia sol ou se fazia chuva. Então, de repente nesse dia chovia, e aí me veio a ideia, que depois ficou muito bonita, o livro. Mas foi inconsciente, de ele entrar no quarto e começar a fechar as janelas do quarto da pensão porque chovia, e na medida em que ele vai fechando as janelas ele reconstrói simbolicamente a prisão para ele. Então, o livro é todo feito dessa maneira. Tem um lado aleatório, imaginação, etc., mas tem um lado de pesquisa, por exemplo, algumas piadas que existem no livro, por exemplo, essa piada de Oswald de Andrade sobre o Duque de Windsor, se não me engano, que ele trocou um bom trono por uma matrona, é uma nota aí e tal, isso era um piada da revista O Careta ou Fom-Fom, eu não vou lembrar agora. Eu peguei piadas, eu peguei coisas e fui articulando essas coisas com os dados, pesquisando dados que eu tinha a respeito de Graciliano Ramos, porque eu fiz questão de não entrevistar ninguém, porque eu achei eticamente reprovável, então não entrevistei nem filho nem filha, tudo que está aí foi coisas que eu descobri nas minhas leituras ou de jornal ou de revistas ou de livros ou o que seja. Quer dizer, é tudo então um trabalho em cima de textos, não tem nenhum depoimento pessoal, ninguém pode dizer: Ah! Você abusou da minha confiança, você veio aqui em casa conversar comigo e de repente você usou isso que eu te digo tão confidencial. Nada disso, quer dizer, tudo é a partir de documentos, agora, obviamente, os diálogos, eu imaginava que tipo de situação dramática estava sendo criada. Por exemplo, você está hospedado numa casa que não é sua, etc., que diálogo pode haver entre as duas mulheres, ou que diálogo pode haver entre os dois romancistas e coisas desse gênero.


Jean-Paul Sartre no livro O que é literatura exime o poeta de ser engajado politicamente mas o romancista não. Você acha que o escritor tem de ser engajado? Que a obra dele tenha que refletir a realidade social?

SILVIANO SANTIAGO: Olha, o problema é o seguinte: o que me incomoda quando se usa a palavra engajada, e quando se usa a palavra com relação a um determinado Sartre. O que me incomoda, é que esse engajamento antes de ser uma reflexão do escritor sobre a sociedade, sobre a História ou sobre o tempo em que ele vivia, era um engajamento pragmático, quer dizer, é isso que me incomoda.

Partidário?

SILVIANO SANTIAGO: É. Partidário, programático, onde até mesmo se pode adivinhar um pouco os caminhos que aquela ficção ou que aquele poema pode tomar. Se você ler Rosa do Povo de [Carlos] Drummond que é um livro a meu ver que está envelhecendo muito porque é um livro previsível, você já obviamente depois de uma certa malandragem, você tendo lido um pouco de literatura da época, etc., você começa a ver que as coisas começam a ser um pouco previsíveis, que de repente um poema de Drummond que aparentemente não era nada engajado, aparentemente diz muito mais do que um poema que é abertamente engajado. Então eu acho que esta questão precisa ser tratada com certo carinho. Ela não pode ser tratada, em outras palavras, de uma maneira grosseira. Então, antes de qualquer coisa eu diria isso: engajado sim, comprometido com o seu tempo sim, comprometido com as ideias libertárias sim, e assim por diante. Mas, vamos ver isso com cuidado.
Por quê? Porque eu acho que o compromisso do escritor, pelo menos do grande escritor, eu acho que eu não sou um grande escritor, porque eu não consigo chegar a este ponto, eu acho que o compromisso do escritor é com a liberdade absoluta. É isso que torna um livro uma obra de arte. Eu acho que eu não consigo chegar a essa liberdade absoluta. Exatamente porque os textos que nós escrevemos nos últimos trinta anos são textos por demais solicitados pelos fatos e pelos acontecimentos. Então, isso de certa maneira que é ao mesmo tempo bom, ao mesmo tempo positivo, porque você está respondendo, você está de certa maneira combatendo, você está tornando a literatura útil, socialmente, politicamente, etc. Por outro lado retira da literatura esta capacidade que ela tem de transcender o seu próprio tempo. Quer dizer, então, a imagem que me ocorre, e a melhor imagem que eu encontrei para explicar o que eu estou querendo falar para vocês é uma Faca só lâmina de João Cabral de Mello Neto.
Quando você pensa sobre o que é uma faca só lâmina é uma faca sem o cabo. Então, quando você conseguir essa faca só lâmina, ela corta, agora você é que vai ter que construir o cabo dela. Ela não vai te dar o cabo e se você não construir o cabo dela você vai se machucar, se ferir, ela não vai ter utilidade para você, ela não vai ter função para você. Então, é isso que eu entendo por engajado, é a capacidade que terá o leitor ou a capacidade que terá aquela obra de dar ao leitor a possibilidade de um cabo para que aquela lâmina seja eficaz, ela seja eficiente, etc. Mas eu dar o cabo para você, em outras palavras, eu fazer obra de proselitismo político, isso não é engajamento para mim. Eu acho que isso é uma produção intelectual que pode ter o seu valor e tem o seu valor, por exemplo, em todas as questões das minorias, por exemplo as minorias sexuais ou minorias étnicas. Quer dizer, você tem um tipo de produção intelectual que é muito útil e que é muito importante. Você ter uma literatura homossexual, você ter uma literatura de mulheres que é extremamente importante a meu ver. Agora, antes de chamar isso de literatura, eu chamaria de uma produção intelectual muito importante. Eu não quero também que todo mundo escreva literatura. As formas de produção intelectual são variadas, são múltiplas, são infinitas. Você pode, de repente, ter uma produção intelectual mais engajada nesse sentido sartreano e que pode ser importante, porque a gente sabe que a homossexualidade, a questão feminina, a questão do negro ou a questão do índio elas tem barreiras enormes numa sociedade como a brasileira.
Então, é bom que haja também algumas pessoas que tenham uma produção intelectual voltada para isso, com cabo. Agora, isso para mim não é literatura. Literatura para mim é este outro exercício, da liberdade absoluta, de você poder fazer o que você bem entende, de você poder construir a perfeição. Eu gosto muito de uma passagem de uma peça de [Samuel] Beckett, sempre me encantou, que é um alfaiate que acaba de fazer as calças assim [Silviano ergue as mão como se estivesse segurando uma calça no ar] e diz: “veja que perfeição”, e depois manda o espectador olhar para o mundo e aí ele diz: “veja que caos”. Entende? É essa perfeição que Deus não conseguiu criando o mundo, é essa perfeição que torna a obra de arte extraordinária. Agora, essa perfeição você só pode conseguir com liberdade absoluta. Caso contrário a coisa fica um pouco manca, pode ser mais eficaz no seu tempo, pode ser mais popular no seu tempo mas ela não tem isso que exatamente a gente não sabe explicar muito bem, não é, que é o que torna aquele texto transcendente e a razão pela qual eu ainda continuo lendo Shakespeare, a razão pela qual nós continuamos a ler Machado de Assis e ele ser um autor tão atual quanto o mais atual dos autores que você achar que é atual. É isso que eu entendo por engajamento. Essa capacidade de falar sobre o homem em sociedade, sobre o homem em convívio, sobre a condição humana em suma, da maneira mais rica, mais complexa, mas energética possível. É isso que eu acho importante: que a obra de arte transmite uma energia inesgotável. É como se fosse uma tomada de luz onde houvesse sempre luz. Qualquer pessoa que enfiasse qualquer aparelho ali teria sempre força. É o que Nietzsche chama de força. É essa força textual que faz com que um texto seja uma obra prima e não simplesmente um outro texto ou mais um texto.



No caderno Ideias/Ensaios de 1992 do Jornal do Brasil o escritor e crítico Ferreira Gullar discute a questão da arte, do novo na arte. Resumidamente, ele colocou que o novo é passageiro, é uma coisa efêmera de certa forma. Por exemplo, essa coisa de arte que se diz pós-moderna. Ele pega, por exemplo, a Eneida de Virgílio: ela está no tempo. Então é o velho-novo e vice-versa. A minha pergunta, já que você disse que vê seu livro Em Liberdade como uma forma de arte pós-moderna, é a seguinte: o que é a pós-modernidade para você?

SILVIANO SANTIAGO: Eu não li o texto do [Ferreira] Gullar porque eu estava viajando. Então eu tenho que acreditar no que você disse. Vou tentar responder por partes. Eu estou respondendo a sua pergunta e não a do [Ferreira] Gullar. Da mesma maneira que eu disse que havia necessidade de um tratamento não grosseiro da questão do engajamento eu acho também que não se pode tratar de maneira grosseira o novo. E o [Ferreira] Gullar ultimamente anda tratando de maneira grosseira a questão do novo. Talvez até mesmo por questões político-literárias. Uma certa disputa de poder literário com os irmãos Campos [Haroldo de Campos e Augusto de Campos] a respeito do concretismo e o neoconcretismo etc. Eu não quero entrar por aí. Eu acho que isso é uma maneira grosseira de tratar o problema. A questão do novo, ela se complicou a meu ver na pós-modernidade. Aqui eu caminho mais para sua pergunta do que propriamente para o que o Gullar disse, porque eu li o artigo, e ficaria meio ridículo.
A questão da pós-modernidade se complicou um pouco na medida em que, eu tentei explicar para vocês, porque há um tratamento diferente da tradição. É esse que é o dado importante a meu ver na pós-modernidade. É que a tradição ela era nitidamente abandonada, ela era nitidamente desprezada. Por isso que na crítica inglesa se chamou auto-modernismo, que nós chamamos vanguarda ou modernismo etc., ele era altamente desprezado. Então, você vê que este desprezo enorme pela tradição, quer dizer, você teria que sempre fazer o novo pelo novo. Não há dúvida nenhuma de que esse fazer o novo pelo novo possa cair numa determinada ideologia do novo pelo novo. Que você acredita que simplesmente porque você está... sei lá... em lugar de escrever poemas me folha de papel está escrevendo poemas no muro que aquele poema é bom. Eu acho que você tem o direito de escrever poemas no muro. Agora, dizer que ele é bom só porque você o escreveu no muro... aí começa o equívoco. Então, é preciso ver essa questão com uma certa delicadeza. Então o que é importante a meu ver, e aí é uma questão do nosso tempo e que muitos críticos estão evitando tocar e que é um problema capital é que na medida em que a produção literária hoje é veiculada pelo livro, hoje e sempre, desde Gutemberg, mais e mais pelo livro e o livro fazendo parte da indústria cultural e essas indústrias dando ao livro a qualidade também de mercadoria. Então, nesse sentido nós temos o livro numa sociedade de consumo. Essa é que é uma questão complicada a meu ver: o que é o livro na sociedade de consumo?
Então, você vai ver de um lado um determinado balizamento que é o best-seller. O best-seller é o compromisso do livro e do escritor com a sociedade de consumo. Então, você tem o caso do Paulo Coelho que é o caso bastante óbvio, você tem o caso de inúmeros escritores franceses e norte-americanos, porque essa situação já estava lá muito antes de estar aqui para nós. Então, você tem esse caso. E no outro lado, você tem a possibilidade, e é isso que é a grande dificuldade hoje de você fazer uma obra-prima, onde você teria liberdade absoluta. Esses dois balizamentos é que a meu ver são o grande desafio para o escritor brasileiro contemporâneo. Não interessa se poeta, se romancista, não interessa se nem mesmo historiador. E o grande dilema a meu ver é esse: onde você se situa dentro desse arco que é enorme e extremamente complexo. Se você quiser ter uma liberdade total, tudo indica que você terá poucos leitores. E na medida em que você terá pouquíssimo leitores você não terá editores e tudo indica que você viverá a situação de um Sousândrade, por exemplo, de ser descoberto depois de morto e de ter uma reputação e de ser reconhecido até como figura humana muito depois da sua vida. Você vai ter isso e ao mesmo tempo, você terá uma coisa que a gente detectava no Brasil mas a gente nunca tratou muito bem, que são os Coelho Neto da vida, os Humberto de Campos, que foram pessoas que tiveram sucesso extraordinário no início do século XX e que hoje [1992] ninguém se interessa pelas obras deles. Alberto Oliveira, o príncipe dos poetas, saía dando concertos pelo Brasil inteiro, não sei se sabiam, nos cinemas, ele lia poesias e cobrava, cobrava na leitura de poesia. Cobrava-se naquela época por conferência e cobrava-se caríssimo, quer dizer, Coelho Neto ia e fazia uma conferência no cinema da cidade e se pagava ingresso como se pagava para assistir um filme. Quer dizer, ele fazia dinheiro com aquilo. Esse é o problema a meu ver que está aqui, junto da gente e a gente vai ter de começar a resolvê-lo. Agora, não existe uma fórmula para isso. Você tem Rubem Fonseca, por exemplo, para dar um exemplo mais significativo dessa situação, porque ele ao mesmo tempo está vendendo muito bem e ao mesmo tempo ele tem uma boa qualidade. Você tem o Rubem Fonseca que tem altos e baixos, por quê? Porque ele está entre esses dois vetores. Ele não sabe o que fazer. Ele quer vender e quer se profissionalizar. Ele acha que é uma luta importante hoje no Brasil de que o escritor se torne um profissional. Mas ao mesmo tempo ele quer ser um grande escritor. Então, ele fica nesse choque, uma briga interna entre uma coisa e outra. Como é que entra a questão do novo aí? Este é que é o problema. Quer dizer, você já não pode fazer uma obra do novo pelo novo. Porque o novo pelo novo trás uma certa radicalidade e aí é onde eu acho que a crítica do novo pelo novo peca um pouco se ela for grosseira. Porque ela trás em si uma certa radicalidade que vai contra os tempos. Que até pode desmanchar os tempos de uma maneira mais precisa, de uma maneira mais aguda, de uma maneira mais nítida, entende? Agora, isso terá o seu custo evidentemente. E o custo é que essa obra possivelmente terá leitores, quer dizer, até nós descobrimos, que é outro dão que eu acho importante trazer nessa nossa conversa, nós descobrimos uma coisa, que o autor modernista pouco se preocupou com seu leitor. Eu tentei fazer um levantamento de Macunaíma. A primeira edição, se não me engano, é de 1927, com 800 exemplares. A segunda edição de Macunaíma - olha se um autor pode viver dessa forma! - é 10 anos ou 12 anos depois, com apenas dois mil exemplares. E a terceira edição, que é de 1943, 3 mil exemplares. Quer dizer, num espaço de praticamente 20 anos apenas três mil livros dessa obra prima circularam no Brasil. O que não é nada. Agora, no entanto, Mário de Andrade era legitimado como um grande romancista. Por quê? Porque ele era legitimado pelos seus pares. Essa é também um problema que a gente ainda não enfrentou. Quais as formas de legitimidade da qualidade hoje? A legitimidade para os modernistas eu sei como ela foi. O caso do [Carlos] Drummond é fantástico! Alguma Poesia sai em mil exemplares, primeiro livro dele. O segundo livro dele Brejo das Almas, 500 exemplares. O terceiro livro dele Sentimento do Mundo, que é quando ele começa a ter reputação de bom poeta, 250 exemplares. Quer dizer, no lugar do Drummond se tornar um poeta mais e mais conhecido, mais e mais forte e a vendagem ser maior pelo contrário, decresce. Então, quer dizer, era um processo de legitimação através dessa relação com os pares, pela crítica literária dos pares. Que leu Sentimento do Mundo? E temos o caso do João Cabral de Mello Neto. João Cabral só com Morte e Vida Severina é que ele teve uma tiragem razoável. Ele imprimiu todos os seus primeiros livros numa imprensa manual em Barcelona e eram 250 exemplares que ele mandava para os amigos e, no entanto, já desde aquela época ele era considerado um dos maiores poetas brasileiros. Então, essa é uma coisa que nós ainda não descobrimos hoje: como é que vamos poder separar o joio do trigo? Como é que vamos discernir o que é melhor do que é pior, o que é mais interessante do que menos interessante. São questões em aberto. Hoje é que nós descobrimos qual foi o jogo dos modernistas - eles próprios - acho que faziam isso sem saber.




No seu caso, onde termina o crítico literário e onde entra o romancista? São duas figuras diferentes? Elas se fundem?

SILVIANO SANTIAGO: Foi a resposta que eu dei para o Em Liberdade. Eu resolvi o impasse, o dilema que está tematizado no Em Liberdade por um dado muito importante na minha obra que é um tratamento constante através de estruturas esquizofrênicas isso é muito constante no que eu faço. Você tem estruturas esquizofrênicas, mas espere, uma estrutura esquizofrênica não quer dizer que você seja dois embora você seja dois. Mas é a capacidade de você trabalhar isto. Essas estruturas esquizofrênicas é que dão uma certa graça ao meu texto. Eu acho. Isso em Graciliano Ramos é o tempo todo e toda hora você vê ele se dividindo. A própria frase às vezes se divide. É uma coisa que eu aprendi com Graciliano Ramos, é uma coisa fascinante em Graciliano, é que cada frase dele é nítida, você compreende, ela é precisa, você entende. Na hora que você coloca duas frases dele juntas, uma seguida da outra, a coisa começa a se confundir. E na hora que você tenta ler um parágrafo, é brabo você dar sentido a esse parágrafo. Existe uma técnica dele, é o que eu estou chamando de estruturas esquizofrênicas, é que as frases dele, elas se combinam de maneira linear, existe como um abismo obriga a interpretação. Este abismo exige a presença do leitor e ao mesmo tempo este abismo é que cria isso que eu estou chamando de estruturas esquizofrênicas, em que as frases, elas se combinam como uma composição que a gente faz para a escola, onde uma frase tem que seguir a outra, senão a professora vem e diz: olha, a continuidade não está boa, acrescente uma frase aqui para a continuidade ficar melhor, quer dizer, então é um texto que é muito curioso, porque nele cada frase é límpida e ao mesmo tempo é um texto descontinuo. É um texto que você não lê com muita facilidade.


Tem algumas partes que eu lembro. Na página 70 da segunda edição de Em Liberdade tem uma frase existencialista que te faz refletir, depois você cai num outro texto completamente poético. Você termina aqui dizendo: “[...] é procurando a vida que se enfrenta a morte. Não é se resguardando da morte que vivemos”. Aí depois tem o texto “Sem data”: “O amor não é o bastante”. Muda. Essa descontinuidade que vai cair no texto da frente.

SILVIANO SANTIAGO: E aí é exatamente que eu invento o “Sem data” porque senão você teria uma continuidade. Às vezes eu até ponho uma nota: “Acredito que esse texto se encaixa aqui. Mas eu não tenho certeza se ele se encaixaria aqui pois ele está sem data”. São coisas que eu faço muito, às vezes é no nível da composição, às vezes é no nível da estrutura. Aí eu acho que tudo é possível... mais isso é um traço muito comum. Eu acho que advém do fato de eu ser muito curioso. Eu nunca me contentei em ser uma coisa só. Eu acho que se eu quisesse eu poderia ser só professor, não vejo nada de errado nisso, mas é que eu acho que é por um lado esquizofrenia, por outro ansiedade, de querer chegar a algo mais, de querer ter alguma coisa mais. E nesse sentido então eu fui obrigado a me diversificar, eu fui levado a me diversificar e eu acho que essa diversificação é muito saudável. Para falar a verdade, para mim mesmo, ela está ficando cada vez mais saudável. Quer dizer, o texto que eu fiz hoje [Para o Seminário “Minas e as Utopias”] por exemplo, é um texto que eu não teria feito há dez anos atrás. É um texto que eu nunca misturaria um depoimento com reflexão teórica. Mas hoje, por exemplo, eu faço isso com menos medo, por assim dizer, com menos receio. Eu acho que está aí uma graça, uma ousadia, e tem de novo a escritura esquizofrênica. Você pega o início do texto e é a memória que me dita.

Aí está a petulância também!

SILVIANO SANTIAGO: Também [risos] depois de um outro determinado momento a memória já não me diz mais nada porque ela já não me ajuda a compreender hoje. Por quê? Porque houve uma tal explosão no mundo que não adianta eu querer me valer da minha memória, eu vou ter de pensar agora as coisas quase a partir do zero. A queda do Muro de Berlim, o esfacelamento da União Soviética em pequenas nações, o retorno do nacionalismo. A gente acreditava que a Alemanha nazista tinha acabado. Eu estou vindo da Alemanha recentemente, e o preconceito racial está nas ruas. Você pega o Le Pen na França com 15% de votos. Para a França não é brincadeira não gente, porque lá tem muitos partidos: 15% é uma taxa muito alta. Então, essa coisa: você pensa que de repente as coisas estão resolvidas, que o nazismo estava para sempre enterrado, etc., e você vê a insurgência dessas coisas todas no mesmo instante. Foi o que eu tentei apreender hoje. A solução mais fácil a gente já sabe: é começar uma nova ditadura. Começa a haver caos, começa a haver confusão, etc. mas a minha proposta é exatamente de uma democracia em que a gente está trabalhando com categorias muito precárias, contingências. Mas a gente não trabalha dessa maneira, a gente está abrindo um espaço para o retorno de uma ditadura. Então é esse lance que eu acho hoje muito importante: é que a memória ajuda a gente até certo ponto. A tradição ajuda a gente até certo ponto. Eu também não vou negar a tradição. Mas ela ajuda até certo ponto. Mas a partir de um determinado ponto tem que ser a construção do novo. Agora essa construção do novo ela é complicada hoje. Ela não se dá da mesma maneira como se dava quando havia os manifestos de vanguarda, ou quando mesmo havia o Manifesto da Poesia Concreta, que você tinha uma determinada certeza. Eu comecei também escrevendo poesia também, em 1958-60, eu tinha lido o manifesto, o plano piloto da poesia concreta e aquilo me dava uma certa segurança, uma certeza de que se eu seguisse aquilo eu estaria fazendo uma boa poesia. Assim como eu acredito que os dadaístas seguindo mais ou menos os manifestos acreditavam estar fazendo boa poesia, os futuristas e assim sucessivamente. Hoje não há possibilidade de você escrever um manifesto, não há, você vai ter que inventar sua própria poética e aí é um outro dado a respeito, a meu ver, da pós-modernidade, que é muito importante para mim, o fato de eu ser crítico também, é que a obra literária tem que trazer sua própria poética dentro de si. No caso da poesia concreta você tinha um poema e tinha uma poética que era os manifestos etc. Agora nesse livro aí [refere-se à Em Liberdade] você vai tendo uma reflexão sobre literatura brasileira, sobre o escritor brasileiro, sobre o que é literatura nordestina, sobre o que é Inconfidência Mineira, sobre o que é escrever durante a Inconfidência Mineira e assim sucessivamente. Então, ela vai criando sua própria poética. E em outro romance que eu escrevi Stella Manhattan, eu paro em um determinado momento e faço um longo capítulo que se chama “O Narrador”. Aquela história estava contada de maneira muito fácil, como quase que não tivesse narrador. E aí eu escrevo quem é o narrador daquele livro, fecho e continuo a escrever a historinha. Por quê? Porque eu tinha de refletir sobre aquilo que estava fazendo. Porque aquilo podia se dado como um narrador onisciente, um narrador impessoal. Eu estou comprometido com aquela obra então o narrador está muito próximo de mim, tá muito mais próximo de mim do que da história que ele está contanto.

[pergunta não captada pelo gravador]

SILVIANO SANTIAGO: Aí são processos muito complexos. Em primeiro lugar você ter essa situação que eu já tentei descrever de você ser extremamente popular na sua época e no entanto não ser legitimado. Segundo lugar, você pode ser completamente desconhecido na sua época e ser legitimado a posteriori. E você pode construir também os próprios elementos da sua legitimação. Por exemplo, eu gosto muito de ler as correspondências dos modernistas porque eu acho que é nas correspondências que eles estavam se legitimando. Porque na correspondência de [Carlos] Drummond para Mário de Andrade, ele estava dizendo: “Olha acabei de ler o seu livro tal, eu estou achando isso etc. Olha aqui estão alguns poeminhas meus você poderia dar uma lida”. Aí Mário de Andrade sempre crítica, vira e diz: “não gostei de tal poema porque você diz ‘vou à cidade’, não tem sentido ‘vou à cidade’, todas as questões de coloquialismo hoje é capital para nós, então é: vou na cidade”. Coisas assim.
É nesse jogo entre eles que foi, a meu ver, uma das formas de legitimação. Hoje a meu ver, uma das formas de legitimação é você ter uma poética embutida no seu próprio texto trazendo uma poética dentro do seu próprio texto e esse texto sendo criticado por dentro ele vai também ser criticado por fora, mas ele já é criticado por dentro, você mesmo, com seu próprio texto, com os limites dele, com as facilidades dele, com os jogos dele. A meu ver, então, você está escrevendo uma obra mais forte hoje em dia. É só para te dizer que não há uma regra para o novo, o que você precisa é detectar que se nós queremos uma sociedade democrática, se nós queremos, de certa maneira, uma história plural, se nós queremos uma concepção de poder que não seja totalitário. A gente vai detectar que o texto chamado manifesto traz regras, não sei se vocês leram o Manifesto Futurista: como fazer uma frase, qual é a sintaxe, qual é... Entende? Ou se você ler o Manifesto da Poesia Concreta. A poesia concreta simplesmente decidiu que estava dado por terminado o ciclo do verbo. Tudo bem, o Sr. acha que está dado por terminado o ciclo do verso, eu tenho grande admiração por isso, mas que isso seja uma regra, aí pronto.


Aí acaba com a liberdade absoluta.

SILVIANO SANTIAGO: Entende? Acaba com a liberdade absoluta. Então você está vendo que a própria ideia de manifesto hoje não faz sentido, é anacrônica a ideia de manifesto hoje. Quer dizer, se vocês quiserem lançar um manifesto da poesia mineira vai ficar anacrônico, extremamente anacrônico, provinciano, atrasado. E, no entanto, você pode estar querendo dizer que está lançando o novo através de um manifesto. Então, nós vivemos hoje, repito, eu acho que a gente vive uns tempos por um lado muito chatos, insuportáveis, mas por outro lado a gente está vivendo um tempo também muito interessante, porque de novo nós estamos tendo a oportunidade de construir, assim como os próprios modernistas tiveram a possibilidade de construir.
Quando você pega o livro Pau Brasil do Oswald de Andrade, quando ele tem a coragem de dedicar o livro assim: “para Blaise Cendras no momento da descoberta do Brasil”. Quer dizer, cometer esse anacronismo, a gente está sabendo que ele não está escrevendo aquele livro no momento da descoberta do Brasil, agora esse anacronismo, a gente está sabendo que ele tem sentido. Não é um anacronismo gratuito. Você pode até ler da primeira vez e achar que é uma bobagem. Esse livro foi escrito em 1924, não foi escrito em 1500, esse anacronismo tem sentido. É que o modernismo é uma segunda descoberta do Brasil. Houve uma descoberta do Brasil que foi a de Pedro Álvares Cabral e a colonização portuguesa, horrorosa etc. Agora o cidadão livre brasileiro, o intelectual brasileiro ele opta por redescobrir o Brasil na Europa, que é o grande movimento de Oswald de Andrade, ele descobre o Brasil na praça de Clichê que é o ovo de Colombo. Tá lá no Paulo Prado, ele chama a atenção. É o ovo de Colombo você descobrir o Brasil na praça de Clichê, é muito importante. Por quê? O grande perigo de 1922, e a gente se esquece, é que se estava comemorando os cem anos da Independência do Brasil e havia ainda o ufanismo e nacionalismo muito forte no Brasil, e que depois vai aparecer no grupo Ânta e vai aparecer no grupo Integralista, no grupo Curupira e assim sucessivamente. Então naquele momento a maneira como você vai lutar contra forças retrógradas era fazendo um elogio da Europa. O que você não poderia fazer em 1500 ou 1700 ou, sobretudo em 1792. Em 1792 eu nunca faria um elogio da Europa mas em 1924 eu faço um elogio da Europa. Por quê? Porque eu quero atualizar o saber brasileiro, segundo meridiano da melhor literatura. Então aí você comete um anacronismo de propósito. Um anacronismo que vai dizer muita coisa vai ser extremamente rico. Então é a segunda descoberta do Brasil, não é a primeira não. E esta descoberta, repito, é uma descoberta pelo qual todos nós passamos, que é a descoberta de uma outra literatura, de uma outra cultura, de uma outra sociedade, e assim por diante. Porque senão nós nos reduzimos ao provincianismo, nos reduzimos a nacionalismos estreitos, a essa coisa toda.


Eu estou curioso com seu novo romance Uma História de Família. Dá para você adiantar um pouco.

SILVIANO SANTIAGO: Uma das coisas que é característica minha é que eu não consigo repetir um livro. Cada livro meu é diferente do outro que, aliás, é um traço de Graciliano Ramos. Se você ler Caetés é diferente de São Bernardo, de Vidas Secas, que é diferente de Angústia, e assim sucessivamente. Então... Em Liberdade é extremamente diferente de Stella Mahattan, que é extremamente diferente de O Olhar, e que é extremamente diferente de Uma História de Família. Uma História de Família para mim ainda é muito difícil falar sobre ele porque ainda eu não conheço muito bem, eu acabei de escrevê-lo. Eu posso falar sobre os motivos que me levaram a escrevê-lo. Foram vários os motivos. Um dos motivos mais importantes é uma constatação um pouco minha e de todo mundo hoje que é a perda da noção do sentido de família. Eu acho que ela não deve ser tratada apenas como perda de sentido. Eu sempre gosto de fazer esses jogos. Qual é o sentido que a família tem no momento em que ela perde o sentido? Essa pergunta que eu fiz para mim mesmo. E aí eu descobri o primeiro dado que foi muito importante para mim, é que não há possibilidade de se escrever a história de uma família. O [romance] como Thomas Mann escreveu, evolução da família, dos avós, dos pais, dos filhos, etc. Porque exatamente isto não faz mais sentido hoje. A única coisa que temos possibilidade hoje é de escrever histórias de famílias. Porque a própria noção de família se encontra fragilizada. Então, foi esse o ponto inicial e a partir daí então eu bolei que o narrador tentaria fazer, no sentido de Foucault, uma arqueologia da família, ou seja, quais os elementos dentro da família com quem ele manteria hoje um diálogo? Essa que é a família no momento em que ela perde o sentido. Quais são aqueles? Então ele descobre que ele poderia manter diálogos com o tio que era louco. Mas só que era um diálogo impossível. Primeiro, porque o tio era louco e era surdo. Entende? Já na época era impossível, agora muito mais porque ele já morreu. Então é esse diálogo quase impossível que ele tenta manter com esse tio surdo. E ao querer manter esse diálogo ele vai tratando de determinadas questões e aí o livro vai se tornando altamente simbólico.
Aí de novo essas questões que eu gosto, não gosto que seja uma coisa direta. Ele vai se tornando altamente simbólico de duas situações ao meu entender extrema na década de noventa, que é a experiência da morte e da loucura. Então, o livro é basicamente sobre a morte e a loucura, quer dizer, quando a gente fala de morte na década de noventa é um livro direta ou indiretamente sobre a AIDS. Quando olho meu livro de endereços e em cada letra eu já cortei pelo menos cinco nomes, essa é uma experiência atroz. Qualquer pessoa que tem uma sensibilidade está vivendo isso de maneira atroz. E obviamente a gente sabe que isso conduz à loucura, isto conduz a um desespero muito grande. Como se você não tivesse mais nada em que se agarrar a não ser se agarrar na morte. É esse lado que eu tento tratar no livro. Eu tento tratar no livro da experiência da morte e da loucura. Uma coisa positiva, que isso não é só negativo, existe uma positividade nisso. Existe uma certa experiência quando você se aproxima disso, que é uma experiência muito difícil de ser escrita, mas que é altamente enriquecedora. Eu me lembro de uma frase do Mário de Andrade, que é muito importante para mim, quando ele diz: “a própria dor é uma felicidade”. Foi uma frase muito importante para mim. De novo essas estruturas esquizofrênicas etc. O que o Mário de Andrade estava querendo dizer com isso, a meu ver é uma leitura de Nietzsche, é que mesmo no momento em que a vida diz não você deve dizer sim à ela. É o que Nietzsche vai chamar em um de seus livros de um duplo sim à vida. É o sentimento trágico. No momento da maior dor, você aquela dor não para transformá-la em ressentimento, você trata aquela dor como uma forma de enriquecimento da sua personalidade, do seu ser, da sua riqueza de ser humano. Então isso é uma forma de se chegar à felicidade, de você chegar a uma alegria que é um conceito muito importante em Nietzsche. É esse sentimento então que eu procuro encontrar nesse tio porque a lembrança mais forte que eu tenho dele, obviamente se você o ver realisticamente é que ele ria o tempo todo. Então, eu tento apreender aquele riso dele. É essa tentativa de apreender essa alegria que ele tinha, entende?, era a pessoa mais abjeta da casa, eu cheguei a vê-lo acorrentado numa árvore, que ele tinha crises horrorosas, coisas desse gênero. E no entanto, era uma pessoa que transmitia alegria numa casa pesadíssima, uma casa fúnebre. Porque o outro lado trágico dessa coisa toda é que eu perdi minha mãe com um ano e meio, é uma situação muito confusa, porque era uma casa onde eu não podia me sentir muito bem. Meu tio estava ali, minha avó estava ali etc. Mas no entanto, naquela casa eu não me sentia muito bem. Havia uma alegria que não estava na minha vó, que não estava nos outros tios, mas que estava naquele tio, que era dado como o menos interessante do grupo. Quer dizer, é esse trabalho todo de arqueologia que eu tento fazer. Mas é claro que depois eu vou fazer mil ironias em torno disso, mas isso vai alongar demais a conversa, porque o narrador acaba sendo a pessoa que menos conhece a família. Aí é uma brincadeira que eu faço com os modernistas. Porque o intelectual modernista ele era muito pretensioso nesse sentido, não petulante, pretensioso. É que ele acreditava que ele era o elemento da família que melhor poderia compreender a família. José Lins do Rego, Oswald de Andrade etc. E a brincadeira que eu faço é que o intelectual é aquele que menos compreende os mecanismos da família. Então ele recebe um amigo da família e esta carta reexplica toda a família para ele e aí é o grande jogo do livro. É que o narrador vai gradativamente perdendo a voz e no final ele não consegue narrar mais e o livro termina. Quer dizer não consegue mais narrar a história de família e aí a história termina.


Samuel Beckett tem uma frase, que eu acho memorável, ele fala assim: “Cumpre agora falar de mim. Estou a um passo do meu silêncio”.

SILVIANO SANTIAGO: É isso. Aliás, para dizer a verdade, o livro tem 110 páginas, mas no projeto inicial ele teria 150 páginas porque esse narrador ele seria becketiano nas últimas 40 páginas, mas eu o enfraqueci de tal modo que ele teve que silenciar. Então o livro não acabou da maneira que eu queria que acabasse. Mas é um livro muito becketiano. Ele começa a falar de si, descobre que falando de si ele nunca está falando bem de si mas ele continua a falar e ele vai descobrindo que ao falar de si o outro fala dele melhor do que ele próprio e na medida em que ele vai descobrindo isso ele vai se recolhendo ao silêncio, ao desaparecimento, e aí a frase do penúltimo capítulo ser: “fecho-me em copas ou continuo”. E aí ele se fecha em copas, porque não dá para ele continuar aquela narrativa. Eu concordo plenamente com essa frase, ela está muito próxima do meu livro.





De você também?

SILVIANO SANTIAGO: É. Porque isso é outro dado. Por exemplo, esse livro aqui [Em Liberdade] eu diria que é de uma esquerda mais tradicional. Stella Manhattan é uma esquerda mais libertária, é um livro sobre homossexualidade. E esse livro [Uma História de Família], por exemplo, é um livro sobre a possibilidade de escrever num momento em que tudo nos conduz ao silêncio. Então, eu acho que por isso cada livro tem uma estrutura que lhe é própria.
Agora, o lado mais complicado do livro e aí começa uma coisa que eu não sei, que eu entrei no quarto escuro é que ele se passa na cidade onde eu nasci, Formiga, mas Formiga existe como no romance de Kafka. Formiga é um lugar teórico assim como o castelo de Kafka. Porque o romance tinha que se passar no interior. Por que o que me interessava era dar uma visão de Minas. Eu sou neto de imigrantes italianos. É dar uma visão de Minas que não é a do ouro nem a do ferro nem a do sertão, é a visão do imigrante italiano. E então, não podia ser a Formiga tal qual é construída pelo nativo, pelo português que se aclimatou aqui e colonizou aquela região etc. então, a ação do romance se passa quase todo de tensão. E é dessa tensão que a cidade é vista. E é dessa tensão que a cidade é compreendida. Então, é uma Minas... eu acho, eu posso estar enganado mas eu acho que isso nunca foi feita, ver a Minas do imigrante. E aí eu tive que bolar uma coisa que foi muito complicada, obviamente uma grande reflexão sobre a minha família, mas não é uma reflexão sobre isso e aquilo. É que o imigrante enxerga o universo através do que eu chamo de uma ética da vergonha, porque na ética da vergonha você tenta ser o mais transparente possível dentro da cidade. Porque a priori você é estigmatizado como estrangeiro.
No caso do italiano, o [carcamano]. Então, você é obrigado a ter vergonha de todos os seus atos, você é obrigado a vigiar todos os seus atos para que você seja igual a todas as pessoas da terra, e essa vigilância de seus atos vai criando uma ética que eu chamo de uma ética da vergonha que é a ética da culpa, porque ela é católica. O grande jogo do livro é esse que acaba sendo uma grande reflexão sobre a questão da AIDS hoje, entre uma ética da vergonha e uma ética da culpa. Na medida em que você tenta esconder sua sexualidade, reprimir sua sexualidade, não deixar ela aparecer, ou você faz aquilo mas se culpabiliza, se auto-destrói, se auto-flagela etc., então, o livro tenta ser muita coisa ao mesmo tempo. Agora, se ele vai ser isso...


Só uma curiosidade literária. Você leu o último livro de João Gilberto Noll, O Quieto Animal da Esquina?

SILVIANO SANTIAGO: Ah! Claro que li. Mas eu diria que este livro [Uma História de Família] eu o estou escrevendo desde 1976. O problema é o seguinte: eu errei, eu fiz um grande equívoco ao escrever este livro. Eu comecei a investigar tudo sobre Formigas e tudo sobre imigração italiana. Aí eu descobri que era a maior bobagem porque as Ciências Sociais fazem isto muito melhor hoje em dia. Então eu abandonei todo esse material. Eu ia fazer um grande romance de cerca de 400 páginas, meio saga, meio não sei o que. Eu acho que o grande jogo que eu descobri foi que eu tinha que escrever um romance altamente estilizado e aí talvez se aparente com a técnica do João Gilberto Noll que também tem livros estilizados. Ele é um pouco Kafka. As situações são muito poucas, são umas seis ou sete situações. E essas situações, então, são núcleos muito densos de significados e essa densidade é que torna o livro polissêmico. Pelo menos é isso o que eu pretendo, se ele é isso é outro problema. Isso é a minha pretensão: fazer um livro muito polissêmico, porque são situações que a meu ver as Ciências Sociais não conseguem chegar até esse ponto. Ela pode descrever as dificuldades que uma família italiana tem ao se integrar no interior de Minas. Ela pode descrever o caso de uma família etc. Mas eu acho que elas não conseguiriam ordenar o relacionamento humano daquela família com a cidade a partir disso que eu estou chamando de uma ética da vergonha.

Mais uma pergunta para encerrar. Como crítico literário como você vê a produção poética na década de oitenta ou a produção mais contemporânea? E que conselhos você daria a um poeta iniciante?

SILVIANO SANTIAGO: Em primeiro lugar nenhum conselho. O conselho que eu daria é exatamente ler os livros em que se aconselha poetas [risos]. Eu acho que há um fenômeno que me interessa muito na década de oitenta, final de setenta para oitenta, que eu acho que ainda não foi muito estudado. Eu também não estudei, e eu acho muito importante, que mereceria muita atenção por parte de um jovem poeta, isso não é uma receita, mas explica o movimento. Eu acho que no momento em que entrou a abertura, no momento em que a questão da poesia política, engajada naquele sentido sartreano já não tinha mais sentido e que ao mesmo tempo houve um esgotamento natural de uma proposta de vanguarda, tipo poesia concreta, essa coisa toda, eu acho que sem querer os bons poetas jovens fizeram uma coisa genial: começaram a traduzir. Todos, Ana Cristina César, Paulo Henriques Brito, todos eles, eu não citar nomes, basta fazer um levantamento, todos eles fizeram tradução. E aí aconteceu uma coisa a meu ver fascinante, é que houve um enriquecimento da dicção poética brasileira a partir da tradução. Porque exatamente as pessoas estavam traduzindo e estavam retirando do exercício da tradução a potencialidade da língua portuguesa, potencialidade que ficava desconhecida se você não fosse obrigado a transpor construções de outra língua para nossa língua. Eu tenho a absoluta certeza de que Ana Cristina César, se ela não tivesse traduzido Émile Dickson ela não teria a dicção que ela tem. Entende? Para dar alguns exemplos, se Paulo Henriques Brito, alguns que eu conheço melhor, alguns foram até meus alunos, se Paulo Henriques Brito não tivesse traduzido Lawrence Stevens, a poesia dele não seria o que é. Então, houve um aumento potencial da língua portuguesa enquanto instrumento de poesia, que lhes foi dado, muito mais do que a mim, pela tradução. Então, o que eu aconselharia, mas é um conselho absurdo, é que se fizesse tradução. Em primeiro lugar ler muito bem um grande poeta, o que é sempre útil e aconselhável. Se você não ler muito bem aquele grande poeta você não consegue fazer uma boa tradução dele. Em segundo lugar, você é obrigado a pensar a sua concepção de língua portuguesa que lhe é dado pela escola, pelo consenso, pela gramática etc. Você é obrigado a repensar porque você vai recriar aquilo em português. Você vai fazer uma tradução literal, se você fizer uma tradução literal não vai ter nenhuma graça. Por outro lado você vai ser obrigado, que é muito importante também a meu ver, pelo menos foi muito importante na década de oitenta, você vai conhecer a técnica. Se você quiser traduzir um poeta que escreve decassílabo, você vai ter que aprender o que é decassílabo, se um poeta rimar, você vai aprender coisa sobre rima, assonância etc. É um aprendizado a meu ver extraordinário e que apareceu assim, se não me engano, na década de oitenta e ficou como definidor dessa riqueza. Há muitas outras razões pelas quais a tradução é útil, ainda que seja uma tradução para você guardar em casa, sem publicar nem nada, como exercícios, exercícios, exercícios. Porque você sai da rotina da poesia brasileira, você se aproxima de um grande poeta universal.


Aconselho que você escolha um grande poeta, você é quem escolhe. Tem uma frase de Barthes que está no S/Z, se não me engano, que foi muito importante para mim no momento em que eu estava escrevendo Em Liberdade, que é: quais os textos que eu gostaria de dar como meus? Agora, só você que sabe. Pode ser Pound para mim, pode ser Valéry para você, para ela pode ser Baudelaire, é isso que é importante. Você manifesta na sua escolha um desejo. Entende? Um desejo de que aquilo fosse seu, e você o está fazendo seu traduzindo-o. Então, eu acho que é o que diria hoje: tente aprender uma língua estrangeira. De repente são os adjetivos que são colocados de maneira diferente, são os verbos que são colocados numa posição que você não espera e aquilo fica na sua cabeça, de repente você está escrevendo um poema e você pensa: deixa eu colocar o adjetivo ali para ver o que dá e aí você cria uma estranhamento, para usar um termo dos formalistas russos, você cria um negócio assim que é o novo, mas não é o novo no fundo por que de onde surgiu esse novo? De um trabalho com o melhor da tradição ocidental, um grande poeta da tradição ocidental. Eu acho que é por aí.



terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

A morte de um renomado crítico (Conto)

Jardel Dias Cavalcanti 


Não havia neve, pois estava vivendo no sertão bravo. Mas seu coração esfriou-se. Para que escrever, para que publicar, para que noites insones sobre a página branca? Tudo lhe começou a parecer inútil depois da crítica arrasadora ao seu romance “O amor que sempre tive pela orelha de minha mulher”.
Escrevera sua obra prima, fruto de noites insanas de trabalho, de jejuns sociais, sexuais, de todo tipo. Só lhe interessava encher as páginas brancas com palavras trabalhosamente encontradas, para tentar dar sentido à sua nova e mais absurda visão do amor.
No entanto, depois dessa vida de monge dedicada ao Deus literatura, de todo o esforço de anos de labuta com as palavras, aparece-lhe um crítico, o tipo famoso que sempre aparece em colunas sociais, eventos de premiação, juris de concurso literário, um desses almofadinhas sempre com seus cabelos pentelhadinhos (desculpe-me o trocadinho), e lhe escreve a mais absurda crítica, dizendo que a literatura que ele faz não passa de uma sublimação adolescente da masturbação reprimida!
Existe uma forma de ensinar literatura a um crítico. Sequestrou o coitado, trancou-o dentro da garagem de sua casa e amarrou-lhe pernas e braços numa cadeira. Agora, sentado à sua frente, começou a interroga-lo:
- Então o Sr. acha que minha literatura não vale nada!
- Não é bem assim, só penso que por fora você até que é rebuscado, mas por dentro não encontro nada.
- Vou tentar traduzir o que você disse. Quer dizer que tenho até um certo domínio da técnica, mas que por dentro não digo porcaria nenhuma? Você acha, então, que eu, ao não dizer nada sobre esse mundo que não tem nada a me dizer, não estou dizendo tudo?
- Mas eu não encontrei esse nada lá dentro, sou crítico e tenho obrigação de expor suas limitações. Sou pago para isso no jornal. Você poderia ser um pouco mais objetivo, pelo menos um pouco, não é!?
- Então você vai entender de uma forma bem objetiva o que está dentro do meu romance, que você diz não ter nada.
Pegou seu livro, arrancando cada uma das páginas, que ia metendo-lhe garganta adentro. Sem deixar o crítico passar fome, fez com que comesse todo seu romance, o que acabou por sufoca-lo até a morte.
Voltando para dentro de casa, sua amada lhe perguntou se ouvira algum barulho na garagem.
- Oh, não meu amor, sua quase surdez lhe faz ouvir coisas às vezes, apenas isso. Pare de se preocupar com os ruídos, sua surdez é sua maior virtude. Imagina a tortura que é ter que ouvir o que um crítico diz!

Jardel Dias Cavalcanti

(fev./2017)

terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

O bolo de canela d` après Proust




(Jardel Dias Cavalcanti)

para Patricia Maês e Nancy Kaplan


    Quando atravessou a praça sentiu um forte cheiro de canela. Não resta dúvida, pensou, deve estar vindo daquela padaria. Sempre se sentiu prisioneiros de cheiros. Lembra-se perfeitamente do cheiro do talco inglês da sua vô. Este cheiro em uma mulher o faria se apaixonar, pois lhe despertava a lembrança do amor de sua querida vovó por ele. Já o cheiro de canela, além de apreciado por ele, o fazia lembrar-se dos bolos da mãe, dos invernos em que ficava enrolado na coberta, diante da TV, esperando o café com leite e o bolo de canela ainda quentinho que sua mãe, carinhosamente, colocava numa pequena bandeja e o entregava no sofá. De brinde, um beijo da mamãe e um elogio: “mas que menino bonito é meu filho!”.


    Não resistindo, atravessou a rua em direção à padaria, inspirando o ar na tentativa de reter para si toda aquela canela que flutuava em sua direção enchendo seus alvéolos pulmonares. A cada passo, mais presente se tornava o cheiro, mais envolvente, mais doce, e seu nariz levantava-se para capturar o odor irresistível.


    Chegando à padaria, antes mesmo de colocar o pé na entrada da porta, sai dali uma moça ruiva carregando um pacote perfumado, provavelmente o bolo de onde provinha o cheiro de canela. Ele afastou-se por um segundo, deixando-a passar, mas o cheiro era tão presente que se impregnou em sua roupa. Agora, ao invés de adentrar no estabelecimento, passou a seguir aquela que deixava no seu rastro o perfume doce da canela, que o fazia voltar em sua memória ao calor dos abraços de sua mãe.


    Não tinha controle de si, pois embora tivesse um compromisso, já o esquecera no afã de seguir o cheiro que o encantava. Estando atrás da moça, não deixou de reparar em sua beleza. Mas seu nariz parecia manter uma comunicação secreta com seu pulmão a ponto de tudo ir se dissolvendo em sua consciência por causa do cheiro da especiaria. Queria algo que não sabia dizer para si o que era. Apenas seguia o cheiro que se desprendia do pacote, que, com certeza, continha um daqueles bolos que comia em casa, na infância, depois de receber um carinho na face e o famoso “mas que menino bonito é meu filho!”


    Mas deixar de reparar na moça, não deixou, já fundindo o cheiro de canela às formas suaves, delicadas, da moça que carregava o bolo. E seu coração começou a pensar que encontrou a pessoa que tanto procurou na vida, como se a canela que envolvia o corpo da moça e o fazia recordar o amor materno fosse o sinal esperado, o alerta que o peito precisava para saber que, agora, sim, somente agora, poderia amar de verdade.


    Isso fez com que ele continuasse seguindo a moça, mesmo que perdesse seus compromissos. Pouco importava, afinal, agora havia encontrado o amor da sua vida. Faltava pouco para se sentir completo. Agora era só se aproximar da moça e se declarar. E como faria isso? Talvez convidando-a para repartir com ele, numa refeição conjunta, o bolo de canela que ela levava para casa. E, pensou, já estamos na hora do café da tarde!


    Pensado isso, não deixou por menos, se aproximando mais e mais da moça ao pressentir que ela entraria num portão de uma casa, quando avançou e falou-lhe sem pestanejar: “esse bolo está muito perfumado, está me dando água na boca, não quer me deixar comer um pedaço junto com você?”


    “Ah! Desculpe-me, não posso. Eu o comprei para meu filho. Não imagina que menino bonito ele é!”

(Jardel Dias Cavalcanti)