sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

BOTTICELLI por WALTER PATER


SANDRO    BOTTICELLI
por WALTER PATER
(tradução Jardel Dias Cavalcanti)


    


            No tratado de Leonardo sobre a pintura, só um de seus contemporâneos é mencionado pelo seu nome: Sandro Botticelli. Esta preferência poderia ser devida unicamente ao acaso, porém, na opinião de algumas pessoas, mais parece resultar de um critério deliberado; agora também se começou a descobrir o encanto da obra de Botticelli, e seu nome, não muito conhecido no século passado, pouco a pouco, vai adquirindo importância.

            Na metade do século XV, aquele pintor antecipou em muito a sutileza reflexiva que às vezes se crê peculiar nos grandes artífices imaginativos de seu meio. Abandonando a ingênua religião que havia ocupado os seguidores de Giotto durante um século, e o singelo materialismo que ela havia criado, buscou inspiração no que para ele eram as obras do mundo moderno, os escritos de Dante e Boccaccio e em suas novas leituras das narrativas clássicas; e também, quando pintava assuntos religiosos, o fazia com íntimo impulso de um sentimento original, que nos comove efetivamente pela materialidade de sua pintura, revelada sob o véu de seu conteúdo aparente. Qual é a sensação particular, qual é a qualidade de prazer que sua obra tem a propriedade de excitar em nós e que não podemos encontrar em outro lugar? Porque esta, particularmente, é sempre a pergunta que um crítico deveria fazer-se quando vai se referir a um artista desconhecido.

            Em uma época em que a vida dos artistas era cheia de aventuras, sua vida apresenta-se quase incolor. Na realidade, a crítica tem desmentido muito das fofocas que Vasari acumulou; tem colocado em seu lugar a lenda de Lippo e Lucrécia e reabilitado o caráter de Andrea de Castagno. Porém, no caso de Botticelli não há lenda a dissipar. Nunca se apresentou com seu verdadeiro nome; Sandro é apenas um apelido e seu verdadeiro nome é Filipepi; Botticelli não é mais que o nome do ourives que o iniciou na arte. Só duas coisas aconteceram, duas coisas que compartilhou com outros artistas: foi chamado a Roma para pintar a Capela Sistina e viu-se nos últimos tempos de sua vida sob a influência de Savonarola, e viveu aparentemente longe do juízo dos olhos dos homens, submerso numa espécie de lipomania religiosa que durou até sua morte, em 1515, data geralmente aceita. Vasari diz, além disso, que se engajou no estudo de Dante e ainda que escreveu um comentário sobre A Divina Comédia.

            Porém, parece estranho que Botticelli tenha vivido inativo tanto tempo, e quase desejamos que algum documento situe sua morte em data anterior, para podemos nos exonerarmos de pensar nele em sua enlutada velhice.

            É, sobretudo, um pintor poético, que mistura ao encanto do tema, o sentimento, expediente próprio da arte da poesia, com o encanto da linha e da cor, expediente da pintura abstrata. Porém, ele se converte em ilustrador de Dante. Nos raros exemplares da edição de 1481, os espaços em branco, reservados ao início de cada um dos Cantos do poema ao ilustrador, foram preenchidos até o décimo nono Canto do Inferno com pranchas de impressões gravadas, aparentemente, como ensaios; porque, no exemplar da Biblioteca Bodleyana, um dos três gravados foi impresso de cabeça para baixo, numa posição muito obliqua, no meio da luxuosa página impressa. Giotto e os discípulos de Giotto, com sua quase infantil e pueril inclinação religiosa, não haviam aprendido a infundir aquela densidade de significado nas coisas exteriores, a luz, a cor, os gestos cotidianos, que é próprio da poesia da Divina Comédia; e antes do século XV, Dante dificilmente poderia ter encontrado um ilustrador.


As ilustrações de Botticelli estão cheias de episódios misturando, com ingênua despreocupação com qualquer correção pictórica, três fases de uma mesma cena em uma única gravura. Os grotescos, calcanhar de Aquiles dos pintores, esquecem-se que as palavras de um poeta, às quais só oferecem uma débil imagem do espírito, devem ser rebaixadas de tom quando são traduzidas em forma visível, lamentam que ele não tenha preferido escolher, para ilustrá-las, as imagens mais enternecedoras do Purgatório. E, contudo, na cena dos que “descem rapidamente para os abismos infernais”, há um engenhoso vigor que persiste no fogo colado às plantas invertidas dos pés dos condenados, que demonstra claramente que o desenho não é mera interpretação das palavras de Dante, mas a verdadeira visão de um pintor; enquanto a cena dos Centauros seduz instantaneamente, Botticelli, descuidado das práticas circunstanciais de sua aparência, se deixou levar com deleite pela influência desses centauros, apresentando-os como brilhantes e pequenas criaturas dos bosques, com travessas caras de crianças e formas graciosas, atirando com pequenos arcos.

Botticelli viveu entre uma geração de pintores naturalistas e pode ser um deles. Há em sua obra características daquele implacável sentido das coisas exteriores que, nas pinturas daquele período, preenche os prados com delicadas criaturas viventes e as ladeiras com lagoas, e as lagoas com floridos junquilhos. Porém, isto não o bastava; ele é um pintor imaginativo e em sua qualidade  imaginativa se parece com Dante. Giotto, o amigo predileto de Dante, Massaccio, e até Girlandaio, não fazem senão transcrever, com maior ou menor refinamento, a imagem exterior; são dramáticos, não imaginativos; são expectadores quase impassíveis da ação que se passa frente a eles. Porém, o gênio do qual Botticelli é protótipo, converte os dados que tem à sua frente em expoente de idéias, disposições de ânimo, fantasias próprias dele; nesse empenho, joga a seu favor com os dados, combinando-os de uma nova forma. Para ele, como para Dante, a cena, a cor, a imagem ou o gesto exterior se oferecem com toda sua incisiva e insistente realidade; porém, despertam nele, por uma lei sutil de sua própria estrutura, uma disposição de ânimo única, do qual eles são o duplo ou a repetição e na qual se revestem em características visíveis.

Porém, está longe de aceitar a convencional ortodoxia de Dante, a qual, reduzindo toda ação humana à mera fórmula do Purgatório, Céu e Inferno, deixa um resíduo de prosa nas profundezas da poesia dantesca. Um quadro seu, com o retrato do doador, Mateo Palmieri, teve o mérito ou o demérito de atrair certa sombra de censura eclesiástica. Mateo (duas figuras confusas se movem sob esse nome na história daqueles tempos) foi reputado autor de um poema, La Cittá Divina, que representa a raça humana como encarnação daqueles anjos que na revolta de Lúcifer não estavam nem à favor de Deus nem do Diabo; fantasia daquela antiga filosofia alexandrina, para o qual as inteligências florentinas daquele século se mostravam tão cheias de curiosidade. O quadro de Botticelli poderia ter sido apenas uma dessas composições familiares em que a fantasia religiosa registrou suas impressões acerca de várias formas da existência bem-aventurada – Glórias, como se chamavam -; como aquela em que Giotto pintou o retrato de Dante; porém, o certo é que se tornou suspeito por haver incorporado em um de seus quadros a desobediente fantasia de Palmieri, e a capela onde estava pendurado foi fechada.

Artistas tão complexos como Botticelli se mostram geralmente indiferentes às teorias filosóficas, até quando o filósofo é um florentino do século XV e sua obra um poema terza rima. Porém, Botticelli, que escreveu um comentário a respeito de Dante e chegou a ser discípulo de Savonarola, bem pode ter se deixado influenciar por semelhantes teorias. Verdadeira ou falsa, essa anedota explica muito do peculiar sentimento que infunde em seus personagens sagrados e profanos, graciosos e, de certa forma, parecido com anjos, ainda que em prejuízo, por não acharem-se em sua própria esfera – a nostalgia dos banidos-; conscientes de uma paixão e uma energia superior a qualquer aspecto que se possa explicar, e que circula por toda sua obra tão variada com um sentimento de inefável melancolia.

Assim, justamente aquele que Dante deprecia como indigno do Céu e do Inferno, Botticelli o acolhe; esse mundo intermediário, em que os homens não tomam partido em grandes conflitos, nem decidem em grandes litígios e dos quais são grandes renunciadores. Desse modo, estabelece os limites dentro dos quais a arte, não perturbada por nenhuma ambição moral, realiza sua obra mais sincera e segura. Não se interessa nem pela imoderada bondade dos santos de Angélico, nem pela imoderada maldade do inferno de Orcagna[1], senão pelos homens e mulheres de condição incerta, sempre atraentes, revestidos, às vezes, pela paixão por certa forma de beleza e energia, ainda que entristecidos perpetuamente pela sombra que se deita sobre eles, das grandes coisas pelas quais tremem. A moralidade de Botticelli é toda compaixão ao infundir em sua obra algo mais que o esperado, um verdadeiro caráter de humanidade, que o converte, apesar de ser tão imaginativa, em um poderoso realista.

É o que comunica às suas Madonas aquela expressão única e seu encanto. Trabalhou nelas uma forma diferente e peculiar, suficientemente definida em seu próprio espírito, porque as pintou uma ou outra vez e, às vezes ousaríamos pensar, de um modo quase mecânico, como um passatempo durante aquele sombrio período em que seus pensamentos o oprimiam tanto. Apenas coleções famosas possuem uma dessas pinturas circulares em que os anjos acompanhantes inclinam suas cabeças tão calorosamente. Talvez tenhas perguntado porque essas Madonas de rosto displicente, não adaptadas a nenhum admitido ou definido tipo de beleza, os atrai cada vez mais e sempre voltam à sua memória, enquanto a Madona Sistina e as Virgens de Fra Angélico são esquecidas pelos outros. A princípio, comparando aquelas com essas, podereis ter pensado que há nestas talvez um não sei que de vulgar e até baixo, e que as linhas abstratas do seu rosto possuem pouca nobreza e que sua cor é pálida. Porque para Botticelli, ela também, ainda que sustente em suas mãos o “Desejado das nações”, é uma das que não estão nem “por Deus nem por seus inimigos” e sua opção está estampada em sua face. A branca luz vem de baixo, dura e sem alegria, como quando a neve cobre o solo e os meninos levantam seu olhar com surpresa à estranha brancura da celagem. Sua inquietude lhe vem, precisamente, da carícia daquele misterioso menino, cujo olhar está sempre afastado dela e que tem, desde já, esse doce aspecto de devoção que os homens têm sido incapazes de amar, e que, no entanto, converte o predestinado a santo em um suspeito para a maioria de seus irmãos da terra.

Em um de seus quadros, na realidade, ELE guia a mão dela para que transcreva em um livro as palavras em seu louvor, o Ave, o Magnificat e o Gaude Maria: e os jovens anjos, felizes por distraí-la por um momento de seu abatimento, se esforçam em oferecer-lhe o tinteiro e apoiar o livro. Porém, a pluma quase se desprende de sua mão, e as altas e frias palavras não têm significado para ela, pois seus verdadeiros filhos são os outros, entre os quais, em sua rústica morada, vêem a ela em busca do intolerável favor. Têm em seus rostos irregulares esse olhar de saudosa interrogação que vemos nos animais assustados – meninos e ciganos como os que, em aldeias Apeninas, embora aos domingos sejam sacristãos, ainda levantam seus largos braços morenos para pedir-nos esmolas, com seus espessos cabelos negros bem penteados e limpos lenços brancos em seu pescoços tostados pelo sol.

O mais estranho é que Botticelli infunde também este sentimento em seus temas clássicos; e sua expressão mais completa é uma pintura que está nos Uffizi, de Vênus saindo do mar, em que os grotescos emblemas da Idade-Média, de uma paisagem plena em sua peculiar sensibilidade,  até suas estranhas roupagens, todas salpicadas, à maneira gótica, por um belo e arcaico capricho de margaridas, enquadram uma figura que nos lembra os impecáveis estudos dos nus de Ingres. A princípio, talvez, sejas atraído somente pelo esmero do desenho que parece recordar-lhe imediatamente tudo quanto tenha lido sobre Florença do século XV; porém, logo pensarás que este esmero é impróprio ao assunto, que sua cor é cadavérica ou pelo menos fria. E ainda mais quando compreenderes o quanto imaginativo é o último, quando compreenderes que toda cor é uma mera causalidade deliciosa das coisas naturais ou uma especial atitude pela qual se fazem expressivas ao espírito, mais o agradará esta singular condição de seu colorido e encontrareis no delicado desenho das obras de Botticelli um acesso mais direto ao temperamento grego ou que tiveram as obras dos mesmos no mais refinado de seus períodos. Dos gregos, como foram realmente, de como se diferenciaram de nós, dos aspectos de sua vida exterior, sabemos mais que Botticelli e que seus mais eruditos contemporâneos; porém, em nós, nossa mais vasta familiaridade com eles tem embotado o sentido de seu exemplo, e apenas temos consciência do que devemos ao espírito helênico.

Porém, em pinturas como essa de Botticelli, temos uma mostra da impressão produzida por aquele espírito nas mentes que se moviam até ele com aspiração quase angustiada, em um mundo que havia permanecido ignorado durante tanto tempo; e na paixão, na energia e na perícia da execução com que Botticelli leva adiante seu empenho, se encontra a exata medida da legítima influência que exerce sobre o espírito humano o sistema imaginativo, do qual esta Vênus é, talvez, o mito central. A luz é, na verdade, fria; não é mais que um amanhecer sem sol; porém, um pintor mais tardio nos teria saciado de sol. E podemos contemplar o melhor da graça dessa quietude na dilatada massa de ar matutino, nesses largos premonitórios que descem até a beira da água. Os homens saem para seus trabalhos até o entardecer, mas ela, a Deusa, permanece alerta e devemos supor que a dor de sua expressão se deve à preocupação que lhe produz o completo e longo dia de amor que todavia a espera. Uma emblemática figura do vento sopra com força do outro lado da água cinza, empurrando para longe a concha de bordas delicadas em que navega; o mar, “mostrando seus dentes”, ao mover-se em delgadas linhas de espuma, embebe uma por uma as rosas que vão caindo, severas em seu contorno (desenho), arrancadas com o talo curto, porém, um tanto morenas como são as flores de Botticelli. Ele se propunha que todas aquelas imagens produzissem prazer; e foi em parte por uma insuficiência de meios, inseparável da arte daquela época, o que as amortizava e esfriava. Porém, essa predileção pelos tons menores tem também seu valor, e o indubitável é a melancolia com que concebeu a deusa do prazer, como depositária de um grande poder sobre a vida dos homens.

Diz-se que o caráter peculiar de Botticelli é o resultado da mescla de uma simpatia pela Humanidade em sua incerta condição, de sua poder de atração, revestido, em raros momentos, de uma reputação de amabilidade e energia, com seu conhecimento íntimo da sombra que desce sobre a aparência das grandes coisas das quais é separada: isto transmite em sua obra esse algo mais do que transmitem os que pintam o ordinário em busca da verdadeira complexidade da humanidade.

Pintou a história da deusa do prazer em outros episódios, além deste nascimento no mar; porém, nunca sem alguma sombra de morte na carne cinza da deusa e em suas descoloridas flores. No entanto, pintou Madonas, que se estremecem ao contato do deus menino, e que clamam com inconfundíveis, silenciosos acentos, em favor de uma mais afetuosa e submissa humanidade. A tradição afirma que a imagem representa a própria Simonetta, amante de Giuliano de Medici; a mesma figura volta a aparecer como Judith, regressando para casa através da campina montanhosa, terminada sua grande proeza e chega o momento da violenta separação, quando a rama de oliva em sua mão se transforma em uma carga opressiva; como Justiça, sentada no trono, porém com uma expressão fixa, de ódio a si mesma, pela qual a espada que tem em suas mãos se torna semelhante a de um suicida; e outra como Verdade no quadro alegórico da Calúnia, onde se pode notar de passagem o detalhe sugestivo que identifica a imagem da Verdade com a figura de Vênus. Deveríamos descobrir o mesmo sentimento em seus gravados, porém, sua participação neles é duvidosa e a finalidade deste breve estudo terá alcançado sua justificativa se puder definir justamente o estado de espírito em que ele trabalhava.



Por último, devemos perguntar-nos: um pintor como Botticelli, um pintor menor, é um objeto conveniente para fundar uma crítica de caráter geral? Temos poucos grandes pintores como Michelângelo e Leonardo, cuja obra se converteu numa força da cultura geral, em parte precisamente pela razão de que eles absorveram em sua própria personalidade tudo de um artista como Sandro Botticelli; além da crítica puramente arqueológica ou técnica, deve ser muito bem empregada nesse gênero de interpretação a crítica geral que ajusta a posição destes homens a uma cultura maior, posto que homens de menos capacidade podem, entretanto, ser apropriados para o estudo do passado.

Porém, junto a esses grandes homens há certo número de artistas que gozam de uma marcante capacidade de transmitir-nos um tipo particular de prazer que não encontramos em outra parte. E estes também têm seu lugar na cultura geral e devem ser interpretados pelos que sentiram seu encanto, sendo frequentemente sujeitos de uma especial e apaixonada consideração, justamente por que não recai sobre eles a força de um grande renome e autoridade. A este seleto número pertence Botticelli. Ele tem a frescura, a incerta e tímida promessa, própria do primitivo Renascimento, e que faz daquele período talvez o mais interessante da história do espírito humano.

Ao estudar sua obra, começamos a compreender a que alto destino foi chamada a arte da Itália na cultura humana.



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Nota sobre Walter Pater



Walter Pater nasceu em Shadwell (Londres), no dia 4 de agosto de 1839 e morreu em Oxford, aos cinqüenta e cinco anos, no dia 30 de julho de 1894.

Sua família, de origem holandesa, se gabava de ter entre seus antepassados o pintor Juan Bautista Pater. Ingressou em 1858 no Queen´s College, de Oxford, onde depois de quatro anos doutorou-se em literatura clássica. A leitura de Modern Painters de Ruskin teve uma excepcional influência na orientação de seus estudos, fazendo-o viajar a Roma, Pisa e Florença em 1866. Muito depois, em 1882, empreenderia outra viagem, exclusivamente para o estudo de Roma. Visitou também a França, onde fez grandes amizades.

Conheceu Swinburne no seio de uma sociedade de jovens de Oxford denominada “Old Mortality” e também, em Oxford, teve como aluno o escritor Oscar Wilde.

O princípio fundamental de sua estética, “todas as artes aspiram à música”, marcou o rumo de uma orientação crítica na história da arte. Em 1873 publicou o volume de ensaios intitulado Studies in the History of the Renaissance, em cuja conclusão advogou o princípio da “Arte pela Arte”, segundo o qual a arte não tem qualquer finalidade útil.

O nome de Pater apareceu nas revistas no ano de 1866 com um ensaio sobre Coleridge e outro sobre Winckelmann. Foi o último quem o entusiasmou a se aprofundar no estudo da grande civilização italiana e o induziu a fazer sua primeira viagem à península.

Na Itália fizeram-se seus intérpretes Angel Conti e Gabriel D´Annunzio; este último expõe grande parte dos cânones desta doutrina nas páginas de sua novela “O Fogo”.

Para Pater, a beleza não é captada por nossa sensibilidade ou por nossa inteligência, mas por uma misteriosa faculdade da alma que, prescindindo delas, anuncia e existe em si mesma como uma faculdade que, sem ser intelectual, é teorética.

Longe de ser um estilista com postura de sacerdote da beleza, era um espírito intimamente filosófico cujos próprios ímpetos e anseios do coração se crivavam e se temperavam sobre um fundo de rara vocação teórica.

Seu platonismo e epicurismo não eram apenas um estado de alma, mas uma necessidade de organização interior, de sistematização mental, de esclarecimento intelectual. Sua crítica, pois, não se evidencia unicamente como uma efusão de sentimentos pessoais do crítico, mas como o fruto de um pensamento ordenado e coerente que poderia ser discutível, mas que tinha sua lógica interior infalível.

Seu método crítico, além das infuências de Winckelmann e de sua viagem à Itália, sofre a influência de John Ruskin, titular da cátedra de estética da Universidade de Oxford.

Ruskin era um escritor que conseguiu transformar sua contemplação em ação e vida. Acreditava ter descoberto o poder de elevação moral que tinha a arte e por toda sua existência dedicou-se a trabalhar para seus contemporâneos como um sacerdote desta nova religião no santuário intelectual de seu país, propondo a arte como problema nacional. Ruskin, no entanto, jamais usou o vocábulo “estético” e falava sempre de uma “capacidade contemplativa” ou de uma “faculdade teórica”.

Pater é o herdeiro espiritual de Ruskin, não só por sucedê-lo na cátedra, mas também por transmitir seus conhecimentos com profunda compreensão e humanidade. Pater buscou substituir o mestre no papel de guia das consciências de sua geração e, de certa forma, inclusive, superá-lo.

Suas meditações sobre a arte e em que a vida se refere, o haviam conduzido a uma espécie de epicurismo intelectual. A vida se desliza e escapa de nossas mãos como na conhecida imagem de Heráclito. Não nos resta buscar uma permanência senão na nossa sensibilidade, esta nossa ilusão do eterno: “Arder sempre com esta chama, pura como uma jóia, manter este êxtase, é o êxito da vida”.

Sem dúvida este misticismo estético não é a nota dominante de seu espírito; este hedonismo romântico, não é o único aspecto de suas lições. Pater buscou extrair de suas visões da beleza e de sua estética, tanto uma doutrina moral como um sistema de vida para sua geração. Sua obra, pois, assume um caráter de um apostolado e transpõe os confins da teoria estética, para invadir os campos da moral e da religião. Este fundo, longe de atrapalhar seus princípios sobre a arte, acrescenta um encanto exotérico e misterioso aos seus escritos.

O sentido de sua doutrina estética deve ser buscado principalmente no seu famoso ensaio sobre os “Estilos” e seu pequeno livro O Renascimento. Esta doutrina pode resumir-se em algumas proposições: a independência da forma e o predomínio da idéia na valorização de uma obra de arte; a crítica deve buscar interpretar a idéia contida, ainda que de forma imperfeita. Cada quadro, mais que uma obra da beleza, é, antes de tudo, o sintoma de um sentimento religioso. E é este sentimento o que realmente pesa na hierarquia dos valores.

Princípios discutíveis e superados hoje pela maioria da crítica contemporânea, porém, se posto a serviço de um espírito seletivo e de excepcional sensibilidade, como era o de Pater, dão lugar a páginas incomparáveis de beleza e de penetração. Apesar de alguns erros históricos e de orientação, busca, até em contraposição de sua própria doutrina, apoderar-se da verdadeira essência das coisas, do verdadeiro sabor da obra estudada e do verdadeiro sentido dos movimentos preferidos.

Uma cultura vastíssima passada pelo crivo de um intelecto obcecado pela organização e largamente meditada, contribuiu para aprofundar o valor de suas intuições. Cada coisa conhecida, cada quadro notável, cada personalidade definida adquire, como por obra do encantamento e graças à crítica de Pater, um sabor, pode-se dizer, um esplendor inesperado, uma luz insuspeitada.

É o crítico do detalhe, que de um pormenor, de um acento, busca tirar conclusões sintéticas de toda a obra, de um movimento inteiro, de uma orientação e de uma cultura.  Poderia ser definido como impressionista, porém, na realidade, ele vai mais além da impressão natural, se desprendendo da forma sensível, para perseguir a idéia secreta e misteriosa que deve ajudá-lo a compreender e julgar.

E tudo expresso em um estilo incomparável, fundado mais sobre a trama das alusões e das reticências que sobre explícitas declarações. Um estilo que presume quase uma cumplicidade entre o escritor e o leitor, na qual um olhar, uma indicação, um sussurro, são suficientes para criar um clima favorável à compreensão.

Diz Pater: “Definir a beleza, senão nos mais abstratos, nos mais concretos termos possíveis para encontrar não sua regra universal, mas a fórmula que expresse adequadamente esta ou aquela de suas manifestações, é a mais alta aspiração dos verdadeiros estudiosos da estética”.

Das palavras de Pater se apreende a idéia de que em razão da verdade não aspira a glória de ser um teórico de uma doutrina artística, senão, e sobretudo, a glória do crítico que vislumbra e sugere uma interpretação original e profunda:

“A função do crítico esteta é a de distinguir, analizar e separar de seus instrumentos, a virtude pela qual um quadro, uma paisagem, uma interessante ou bela personalidade, seja na vida ou em um livro, produzem esta especial sensação de beleza e prazer, e indicar onde está a fonte desta sensação e sob que condições especiais a experimentamos”.

Ainda, diz Pater,

“O importante, então, para o entendime nto, não é que o crítico chegue a possuir uma correta definição abstrata da beleza, mas sim certa qualidade de temperamento que fundamenta-se na faculdade de ser profundamente sacudido pela presença de objetos formosos”.

Uma concepção romântica, mas Pater possui um temperamento excepcional que corrige os erros, inclusive, às vezes, até erros históricos, com uma assombrosa intuição, buscando extrair interpretações originais e felizes.

Pater colocava aos críticos e a si mesmo a seguinte questão: “Como podemos ver tudo o que pode ser vislumbrado no curso da sua duração por intermédio dos mais refinados sentidos?”

E conclui: “É aqui que a análise de detém: sobre este movimento, sobre esta paisagem, sobre este dissolver-se de impressões, de imagens, de sensações; sobre aquele contínuo desvanecer-se, aquele estanho, perpétuo fluir e refluir de nós mesmos”.

Um crítico dessa natureza se transmuta como que em um sacerdote que contempla as vísceras dos animais, o vôo dos pássaros para reconhecer neles a vontade de Deus.

Sentia sua própria função como uma missão religiosa. Da mesma forma que as obras de arte e monumentos da antiguidade romana, que falavam de forma sussurrada, como iniciados, sem afastar de seus olhos, atentos e amorosos, o rosto da divindade zelosamente refulgente que se escondia sob as terrenas aparências.

Pater produz uma qualidade de crítica de arte que por si mesma constitui uma obra de arte e que ajuda, não só a compreender, mas também a amar.

Os escritos de Pater expressam uma riqueza de cultura, uma fé tão ardente e uma sutileza de observações e sensibilidade tal que faz de seu estilo algo vivo e brilhante, conferindo-lhes um acento inconfundível, fazendo deles uma das mais conspícuas contribuições aos estudos sobre a arte do Renascimento.

Gherardo Marone

Agosto de 1943








[1] - Andrea di Cione di Arcangelo (1308 - 1368), mais conhecido como Orcagna, foi um pintor, escultor e arquiteto florentino. Foi aprendiz de Andrea Pisano e Giotto di Bondone. Seus trabalhos mais importantes incluem o altar do Redentor com a Madonna e Santos na Capela Strozzi, na Santa Maria Novella, e o tabernáculo, na Igreja de Orsanmichele (finalizado em 1359), que foi considerado a mais perfeita obra do seu tipo na Itália gótica. Seu afresco O Triunfo da Morte inspirou a obra Totentanz (Danse Macabre), de Franz Liszt.





[1] - Andrea di Cione di Arcangelo (1308 - 1368), mais conhecido como Orcagna, foi um pintor, escultor e arquiteto florentino. Foi aprendiz de Andrea Pisano e Giotto di Bondone. Seus trabalhos mais importantes incluem o altar do Redentor com a Madonna e Santos na Capela Strozzi, na Santa Maria Novella, e o tabernáculo, na Igreja de Orsanmichele (finalizado em 1359), que foi considerado a mais perfeita obra do seu tipo na Itália gótica. Seu afresco O Triunfo da Morte inspirou a obra Totentanz (Danse Macabre), de Franz Liszt.

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