sábado, 25 de fevereiro de 2012

Objetos de Mario Alex, por Rogério Barbosa da Silva


O POETA NUMA OFICINA DE INUTENSÍLIOS, OU NUMA USINA DE SONHOS

            Rogério Barbosa da Silva[1]

Guarda letras

           
 Em sua exposição “Desambientes – Lavratório (oratório de palavras), o poeta, artista plástico e professor Mário Alex Rosa apresenta-nos uma série de objetos que se inscrevem fronteiriçamente entre as artes plásticas e a poesia, e através dos quais nos levam a pensar na poesia existente nas coisas que nos rodeiam todos os dias.

Já de saída os cerca de 30 objetos expostos em “Desambientes” sinalizam-nos com a proposta de sua ressignificação através da arte. A ideia, em si, de retirar os objetos do cotidiano e despragmatizá-los de sua função industrial, não é nova e nos faz remontar aos trabalhos dadaístas do início do século XX, como Kurt Schwitters ou Marcel Duchamp, bem como os de alguns surrealistas que adotaram o ready-made. No Brasil, ao fim dos anos 50 do século passado, poetas e artistas ligados ao neoconcretismo retomaram criticamente essas propostas, acreditando que os artistas das primeiras vanguardas teriam sido vencidos pelos objetos. Isto é, suas obras ter-se-iam enfraquecido ao serem novamente envolvidas pelo halo característico da coisa. Propõem, então, a “Teoria do não-objeto”. Nessa formulação, sem querer se opor à materialidade ou à natureza do objeto, os neoconcretos compreendem-no como “um corpo transparente ao conhecimento fenomenológico, integralmente perceptível, que se dá à percepção sem deixar rastro. Uma pura aparência.” (GULLAR, F. Teoria do não-objeto. In: COCCGIARALE, Fernando & GEIGER, Anna Bella. Abstracionismo; geométrico e informal – a vanguarda brasileira nos anos cinquenta. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1987).

poema para a massa

            Em claro diálogo com essas propostas, que constituem um importante capítulo da história da arte, e consoante a atração que a forma sempre exerceu sobre artistas e poetas de tendências várias ao longo das tradições criativas ocidentais, os objetos criados por Mário Alex Rosa seguem uma senda própria. São, por um lado, exercícios de desvelamento de seu próprio imaginário (experiência e imaginação) e, por outro, constituem um diálogo especial com os poetas de sua admiração. O poeta catalão Joan Brossa, o mineiro Carlos Drummond de Andrade e o paulista Oswald de Andrade são evidências captadas já num primeiro olhar. Em cada um, Mário Rosa busca um elemento que se converte num insight poético e se materializa em linguagem-objeto a partir da potência lúdica de seu trabalho. No trocadilho de “Uma broca para Brossa” inscreve-se também uma linhagem do poeta designer, a qual pertencerá também o mineiro Mário Alex Rosa. Na irônica referência ao Drummond de “A procura da poesia”, o objeto formado por cadeados e letras, com o título “Trouxeste a chave?”, do verso drummondiano, parece insinuar, numa transmutação de linguagens, os limites do ato interpretativo na poesia. E por outra maneira, ressoando o Drummond de “A vida passada a limpo”, o ferro elétrico ressignificado a partir do jogo de letras e palavras recortadas, e que resulta no “Passando o poema a limpo”, faz também ecoar o trabalho medido e controlado da tradição cabralina. Evoca-se o João Cabral da poesia lúcida e que busca nos instrumentos vários (a borracha, a faca, o bisturi e outros) um meio de atingir a precisão do poema, isto é, um meio de dobrar a palavra na sua exata dimensão poética. Por aí também poderíamos ler os objetos “O cortador do poema” e o “Guarda-letras” - este que irremediavelmente nos faz lembrar os versos de Cabral para Drummond, em “A Carlos Drummond de Andrade”: “Não há guarda-chuva/contra o poema/subindo de regiões onde tudo é surpresa/como uma flor mesmo num canteiro”.

O corte do poema


            Muito sugestivos e importantes para essa apreciação crítica são dois outros trabalhos, intitulados “Preparos para um poema ou a primeira refeição do aluno Mário Alex Rosa” e “Santa Letra”.  No primeiro, a referência imediata é o Oswald de “O primeiro caderno do aluno de poesia Oswald de Andrade”, no qual, como nos lembrou Raúl Antelo, pratica-se a “enunciação-criança”. Segundo o crítico, a partir de observações de Elisa A. Kossovitch, nesse modo de enunciação “não se encena [o] verossímil porque se efetua anamnese, a fala pretérita, recuada, em que a criança se constitui como objeto do narrador mesmo quando este enuncia ‘eu’. Mas ‘ela também é sujeito do enunciado, personagem, actante-sujeito ou actante-objeto (...)’” (ANTELO, R. Prefácio. In: ANDRADE, Oswald. Primeiro caderno do aluno de poesia Oswald de Andrade. São Paulo: Globo, 1994. p. 9). Nesse sentido, o objeto-arte de Mário Alex Rosa constitui-se portador de múltiplos discursos ao trazer à cena uma interseção simultânea da experiência do visto e do imaginado, na medida em que a experiência vivida pode ser ativada tanto pela poesia infantil de Oswald quanto pela lembrança do poema “Sentimental”, do Drummond, de Alguma Poesia: “Ponho-me a escrever teu nome/ com letras de macarrão”. Um “romântico trabalho” repentinamente interrompido pela razão pragmática na voz daqueles que o contemplam: “- Está sonhando? Olhe que a sopa esfria!”. E a reação do poeta-menino: “Eu estava sonhando.../ E há em todas as consciências um cartaz amarelo:/’Neste país é proibido sonhar’” (DRUMMOND, C. In: DRUMMOND, C. Nova Reunião – 19 livros de poesia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1985, p. 14).

pinçando


            O sonho, na poesia, opõe-se ao pragmatismo da vida, ao pragmatismo das coisas. Portanto, para o poeta, antes esfriar a sopa, que se abdicar da escrita. As letras de macarrão desse poema ressoam na “preparação” do poema do aluno Mário, poeta-designer, que, em diálogo com os seus mestres poetas, parece encontrar em “Santa Letra” a talvez faltante letra drummondiana - a que lhe permite inscrever o nome numa possível anamnese de sua formação cristã na juventude. De fato, o objeto poético intitulado “Santa Letra” utiliza também as letrinhas de macarrão, algumas pintadas, para compor uma alusão às famosas representações da Santa Ceia. As taças, dispostas numa superfície circular, trazem inscritos nomes que sugerem os dos doze apóstolos, inclusos, entre eles, o de Jesus e o nome “poeta”. Assim, para além de uma possível remissão a sua juventude e talvez a nomes comuns de amigos e colegas de infância que, com o poeta, compartilharam experiências comuns, há no poema-objeto também a perspectiva de se entender a letra como um alimento espiritual – esse ponto de vista reforça, de certa maneira, a leitura do objeto poético comentado anteriormente, já que os materiais embasam o procedimento são os mesmos. Quanto à questão em torno do nome, há que se ver o objeto poético “Eu Lírico”, caixa composta por letras varetas, pregos e pequenas placas, ao que parece de madeira, em que letras coloridas estabelecem um paradoxo entre a negação e a afirmação do “eu” como matéria corpórea do poema: “E u / p o e m/ a N A O/ S O U” (ROSA, Mário Alex). Além disso, o título “EU LÍRICO”, em cores diferentes, aparece como que gradeado por varetas enxertadas na tampa da caixa, como que a sugerir um possível cerceamento deste EU.
Trouxeste a chave


            Enfim, para retomar essa ideia do poeta em meio aos inutensílios, que corresponderia num primeiro momento ao deslocamento dos objetos de sua função ordinária. No entanto, podemos dizer que os objetos-poéticos expostos em “Desambientes” são resultantes de uma espécie de transfiguração desses objetos ordinários de nosso cotidiano. Sua obscuridade transcendente, tão combatida pelas vanguardas artísticas, dissolve-se à medida que Mário Alex Rosa dota-os de um poder comunicativo que eclipsa o vetor de sua funcionalidade. Invocam-nos, por conseguinte, a noção de “coleção”, numa perspectiva da sociologia dos objetos. É preciso, no entanto, lembrar que, em seu sentido etimológico, o objeto significa a coisa existente fora de nós, algo que resiste ao indivíduo. Portanto, é também o produto do homo faber. Conforme nos lembra Abraham Moles, o objeto só se constitui como tal em sua apropriação ou função social, pois é “um elemento do mundo exterior fabricado pelo homem e que este deve assumir ou manipular. Um machado de sílex é um objeto, enquanto que o sílex não o é...” (Grifos originais) (MOLES, A. Objeto e comunicação. In MOLES, A et. al. Semiologia dos objetos. Petrópolis, RJ: Vozes, 1972).


Torneletras


Nesse sentido, uma dimensão poética presente nos objetos-poéticos que visitamos nessa Exposição é a do poeta-inventor, do poeta-designer. Isto é, aquele que inventaria os objetos do cotidiano e os vê como portadores de morfemas, e que através dessa percepção os transforma. Nesse trabalho, o poeta acaba por denunciar aquela moral social que rejeita a ociosidade do objeto, como já demonstrou Jean Baudrillard. Algo que também está presente no poema “Sentimental”, de Drummond, conforme já apontamos. Pensando nessa exposição, poderíamos repetir para Mário Alex Rosa, as palavras de João Cabral de Melo Neto dirigidas a Vicente do Rego Monteiro: “(...) E é por isso/ que quando a mim/ alguém pergunta/ tua profissão/ não digo nunca/ que és pintor/ou professor/ (palavras pobres/ que nada dizem/ de tais surpresas);/ respondo sempre:/ - É inventor, trabalha ao ar livre/ de régua em punho,/ janela aberta/ sobre a manhã.” (MELO NETO, J. Cabral. A Vicente do Rego Monteiro. In: Poesia crítica. Rio de Janeiro: José Olympio, 1982, p. 88).




           





[1] Rogério Barbosa da Silva é doutor em Literatura Comparada pela UFMG e professor do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais.

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