quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Morte em Florença



Exibo abaixo trecho do meu romance em gestação: Morte em Florença. Trata-se da história de um maestro que vai apresentar em Florença a ópera "Tristão e Isolda", de Richard Wagner. Na passagem seguinte, o maestro discute a obra musical de Richard Wagner com a cantora que fará Isolda:

Cap. 11

O maestro sentou-se perto de Margie, olhou-a bem nos olhos, e depois, como se estivesse mergulhando dentro de si mesmo, falou de forma professoral:
- O que acontece com a música de Wagner é que a concepção direcional do tempo é destruída. Não há uma situação projetiva e antecipadora na sua obra. O arco melódico, se assim podemos dizer, que se constitui em princípio, meio e fim, que é a idéia de se construir um delineamento temporal que se expande em direção a um desenvolvimento final, a partir de uma estrutura linear, em Wagner não tem mais sentido.
Margie assentia com a cabeça, como que dizendo: “entendo” e “continue”.
- A questão é: porque Wagner desrespeita esta estrutura? Em Tristão e Isolda, o desejo de infinitude e de transcendência dos limites físicos desaparece. A satisfação de expectativas que se insinuam e se fecham num arco melódico harmônico total é quebrada. Estamos na forma da ópera como o apaixonado está na forma do seu delírio amoroso. Os estados interiores variam irracionalmente nesse caso. Estamos no tempo do sonho ou do pesadelo, da embriaguês e do incomensurável. Sendo mais certeiro, no reino do inapreensível. Por isso, os arcos melódicos devem partir-se, esgarçar-se, fragmentar-se, não mais conduzindo o expectador numa certeza esperada. O que Wagner faz é levar o espectador para o universo dos sobressaltos, gerando incertezas, e estados de alma que são verdadeiras suspensões inconclusas, que são verdadeiras tensões acumuladas sem anúncio de que poderão se resolver no tempo futuro do andamento musical.
- E como Wagner traduziria isso em termos de forma musical, maestro?
- Primeiro, as linhas melódicas tomam caminhos inusitados e, pode-se dizer, incoerentes. Consequentemente o espectador tem a sensação do inconcluso e indefinível. Segundo, a ordenação racional da pulsação métrica perde sua força e aí, acontece a revolução de Wagner, acordes dissonantes adiam, ou para ser mais exato, evitam resoluções previstas. Wagner está minando a quadratura fraseológica da música como a paixão mina a lógica do amante enlouquecido.
Margie queria mais, pois não deixava de gostar de ser levada pelas idéias do maestro. Muito do que ele dizia, pensava e expunha calorosamente, ela já sabia por si mesma, mas aguardava a confirmação de suas próprias idéias na voz de seu “maestro”. Por isso, sempre que ele pausava, ela lançava uma nova pergunta, temendo que ele encerrasse a exposição:
- E o espectador, como fica ao entrar em contato com essa música?
- Wagner vai criar a “audição trágica”, ou seja, um espectador não referenciado a priori frente ao mundo das emoções. O tempo racional, que ordenava a música clássica em momentos de repouso, ponto culminante e resolução, em Wagner, é destruído, colocando-se em seu lugar a sensação de constante busca de referências não satisfeitas. Jamais satisfeitas, impossíveis de serem satisfeitas, eu diria. O esfacelamento do coração apaixonado, seu processo emocional, não é a mesma coisa? Não há nunca satisfação, os contornos das coisas são borrados, vagueia-se indefinidamente num fluxo infinito de insatisfação.
- Então, podemos dizer que Wagner quer arrastar seu espectador para o êxtase e deixá-lo, indefeso, à deriva emocionalmente.
- Exato, minha querida. Por isso, o que há na música de Wagner é uma sucessão de contrariedades, incômodos, hibridismo, campos afetivos que se cruzam uns nos outros continuamente, conteúdos emocionais que variam enlouquecidamente e sem definições, metamorfoseando-se infinitamente. O ouvinte é mergulhado em uma sensação de flutuação temporal, como a própria alma de Isolda, que não sabe jamais onde está pisando e tem que re-significar-se constantemente diante da sensação terrível do desconforto da insegurança, da instabilidade, da imprevisibilidade, da perda dos pontos de segurança.
- Entendo, Maestro. É a imersão total no delírio. Temos o eclipse da razão. Mas estamos falando, então, do espírito dionisíaco nietzscheniano?
- Não, Margie, estamos falando do espírito trágico, que renasceu, segundo o próprio Nietzsche, na música de Wagner. E quer saber como se dá isso?
Margie nem precisava flexionar com a cabeça positivamente. O maestro não perderia de forma alguma nenhum momento onde poderia expor suas reflexões sobre a música de Wagner. No fundo, sempre que falava sobre música se sentia como peixe na água, sendo cada palavra um mergulho e um bom gole dessa mesma água. Suas palavras eram verdadeiras braçadas num mar de idéias que o fascinava. É ali que ele não temia se afogar.
- Então, vamos à questão do “trágico”. Antes, vale dizer por que Nietzsche achava Wagner superior até à Beethoven. A principal razão explica-se porque Wagner conseguiu promover a articulação perfeita entre música, palavra e imagem. E o resultado disso é o próprio espírito trágico, que é o lugar onde apesar da música ser soberana em seu poder de produzir o irracional, ela precisa, para que o espectador sobreviva psiquicamente, das cordas que amarram Ulisses ao barco, que é sua continuidade no reino das palavras e da imagem. Este seria o momento do espírito apolíneo, equilibrando a loucura dionisíaca.
- E, então, maestro, Tristão e Isolda recebeu uma elaboração tanto poética como musical, eminentemente trágica?
- Exato, querida, isso mesmo.
Margie não sossegou de seu desejo de interrogações. Queria ouvir mais.
- Maestro, o que justifica as cordas que amarraram Ulisses para que ele possa ouvir o Canto das Sereias sem capitular? Porque não a capitulação?
- Ora, Margie... Seria a morte ou internação no primeiro manicômio que aparecesse. A questão milagrosa da arte é que ela nos retira da vida prosaica, nos leva para regiões desconhecidas e mágicas e ao mesmo tempo nos salva da perdição nesse mesmo mundo produzido por ela. Veja o caso específico de Tristão e Isolda, sobre o qual Nietzsche dizia que ninguém escaparia em sã consciência do terceiro ato dessa ópera se fosse guiado apenas pela música, sem ser amparado por imagens e palavras. O pintor Paul Klle também se expressou de forma parecida em relação a Tristão e Isolda, dizendo no seu Diário que a audição do segundo ato de Tristão colocou os seus nervos em carne viva.
Margie fez cara de confusa, contorcendo um pouco seus lábios para a direita.
O maestro foi à estante e pegou um livro.
- Minha querida, vou ler para você diretamente o que Nietzsche diz no “Nascimento da tragédia”. Escute, é um pouco longo, mas tudo se esclarece, e é interessante observar como a própria linguagem exaltada do filósofo parece contaminada pela música de Wagner:
“Pergunto se é possível imaginar um ser humano cuja receptividade fosse capaz de suportar o terceiro ato de Tristão e Isolda, sem a ajuda da palavra e da imagem, como uma prodigiosa e única frase sinfônica, sem sufocar sob a tensão convulsiva com todas as fibras da alma? Aquele que tivesse, como aqui, aplicado seu ouvido de algum modo ao ventrículo cardíaco do querer universal e tivesse sentido o frenético desejo de viver transbordar e se expandir em todas as artérias do universo com o rumor de uma torrente ou com o delicado rumorejar de um riacho, não deveria desmoronar subitamente? Sob esse envoltório frágil como vidro e miserável do indivíduo humano, deveria tolerar perceber o eco de intermináveis gritos de alegria e de dor saindo da “imensidão da noite dos mundos”, sem se refugiar logo, a esse chamado de pastor da metafísica, em sua pátria original? Mas se, no entanto, se pode suportar ouvir em sua íntegra semelhante obra sem renegar a existência individual, onde tiraremos a solução de semelhante contradição?” (p. 147-8)

Os olhos de Margie se comprimiam:
- Margie, não há possibilidade de capitulação, pois o instinto apolíneo aparece justamente como a forma da arte para nos salvar dos próprios sentimentos que a arte produz. Deixe-me terminar de ler com o que Nietzsche estava dizendo:
“O espírito apolíneo... acalma nosso instinto de beleza, ávido de formas grandiosas e sublimes; diante de nossos olhos faz desfilar imagens de vida e nos incita a captar com o pensamento o núcleo vital nelas contido. Pelo poder inaudito da imagem, do conceito, do ensinamento ético, da emoção simpática, o apolíneo arranca o homem do aniquilamento orgiástico de si e o engana sobre o caráter universal dos contigentes universais dionisíacos, levando-o a imaginar que ele vê a imagem isolada do mundo real, por exemplo Tristão e Isolda, e que a música deve levá-lo a ver melhor o mundo mais profundamente.” (149)

- Maestro, talvez... no fundo, o que nós buscamos seja a perfeição, que é o que define exatamente o que é de mais e o que é de menos numa obra de arte. Há algo em nossa natureza que busca isso. Não é Alberti que dizia que a beleza suprema é um estado de perfeição buscado até na natureza em todas as suas criações? Talvez seja isso o espírito apolíneo...
- Sim, mesmo quando se trata de Wagner e as forças inconscientes que ele maneja... Lembra-se? Ele diz: “Afogar-se – submergir- inconsciente – alegria suprema!”. Estados de espíritos informais, não chegariam a ser arte se não fossem tratados dentro do rigor da forma. No fundo, mesmo os espíritos mais trágicos estão em busca da forma perfeita, mesmo que seja para traduzir seus próprios delírios.


Um comentário:

  1. Bom... Depois dessa passagem, acho que preciso ouvir Tristão e Isolda de com outros "olhos"...

    Muito interessante Jardel. É um estudo em romance de Tristão e Isolda?

    Minha primeira impressão: O titulo lembra "Morte em Veneza" de Thomas Mann, e o tema logo de imediato, me remete a Humberto Eco. Não sei se ambos têm relação com o que você pretende fazer, mas a associação surge de súbito.

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