sexta-feira, 16 de agosto de 2019


Revisões do afeto: os retratos de Guilherme Melich
por Ronald Polito


A exposição “Olhar a(r)mado”, com pinturas e desenhos de Guilherme Melich, atualmente no Museu de Arte Murilo Mendes (Juiz de Fora), surpreende de diversos pontos de vista. Cai como uma luva como homenagem ao museu e ao poeta ao dialogar com o acervo e com a história afetiva de Murilo Mendes, o que está no jogo do próprio título que foi dado à mostra.
É oportuno notar como circunstâncias pessoais podem adquirir uma dimensão pública ao serem elaboradas mediante uma forma consistente. Refiro-me aos móveis iniciais do trabalho. Frequentador antigo do museu, Guilherme foi impactado por duas obras do acervo: o retrato de Ismael Nery pintado por Guignard e um desenho de Murilo Mendes feito por Flávio de Carvalho. Em ambos, chama a atenção a centralidade do olhar: melancólico e pensativo de Ismael Nery; multifocal de Murilo Mendes, modo perspicaz que Flávio de Carvalho adotou para sinalizar a variedade de perspectivas do poeta e sua obra. Anos se passaram até que Guilherme materializasse o projeto da exposição, bem pensado, bem articulado, cuja impecável montagem deixa clara a conexão do conjunto e oferece ao público os elementos básicos para a fruição e o estudo das questões postas. E o mote foi encontrado também na obra do próprio Murilo, em um poema de A idade do serrote: “Ver coisas, ver pessoas na sua diversidade (...) O olho armado me dava e continua a me dar força para a vida”. O olho armado do poeta, os olhares de Ismael Nery e de Murilo no desenho de Flávio de Carvalho: estão dados os elementos capazes de orientar o que foi feito.
Guilherme, que desponta como um dos jovens e bons artistas da cidade, é sobretudo um retratista exímio, o que já era notável em seus autorretratos. Mas agora seu amadurecimento consolida e avança esse talento para retratar pessoas, o que sempre ocupou um lugar privilegiado em suas preocupações. Como ele próprio diz: “Tenho um interesse pelo ser humano, e o retrato é a forma como questiono isso” (Mauro Morais. Retratos dos retratos. Tribuna de Minas, 4 ago. 2019. p. 32).
Tema bastante perigoso por sua longa e milionária tradição na arte ocidental, a principal ambição de quem se arrisca nesse terreno talvez seja capturar a “alma” do retratado. E a estratégia adotada por Guilherme é singular por sua afinidade com os procedimentos da arte depois do modernismo. Com efeito, a base para os retratos são principalmente fotografias, o que sugere devolver a elas o que guardam em potência, o que não conseguiram explicitar de todo. Esse caminho ao contrário é, a um só tempo, uma homenagem à fotografia que teria supostamente desbancado tantas tarefas da pintura no passado e sua “superação” ao repropor uma modalidade de pintura pós-realista como modo de transcendê-la.
A exposição se organiza em torno de artistas plásticos que retrataram Murilo Mendes: Ismael Nery, José Maria dos Reis Júnior, Guignard, Portinari, Vieira da Silva, Arpad Szenes, Flávio de Carvalho, Carlos Bracher, Nívea Bracher e Pedro Guedes. À exceção dos três últimos, todos os demais foram amigos de Murilo e servem como pontuações do universo cultural e afetivo do poeta, como salienta Mauro Morais. Os retratos a óleo por vezes vêm acompanhados de desenhos em preto e branco, feitos em nanquim, grafite e carvão sobre papel, que podem ou não ter servido como esboços para as telas. Regra geral, os trabalhos expostos não buscam emular as técnicas e maneiras dos retratistas, ainda que haja exceções. Refiro-me ao retrato de Ismael Nery de Guignard, que Guilherme replica com uma sutil mudança de enfoque: o olhar de Ismael Nery se torna mais soturno e insondável que no retrato de Guignard. E o vermelho do casaco de Ismael Nery no retrato de Guignard migrou escurecido e decisivamente para seu rosto no retrato de Guilherme, acentuando a dramatização. Há também algum diálogo entre o desenho de Murilo feito por Flávio de Carvalho e um desenho de Guilherme em que retrata o mesmo Flávio de Carvalho, cujas linhas sobrecarregam seus olhos. E talvez inclusive entre alguns procedimentos do tracejado de Flávio de Carvalho e outros desenhos da exposição.

Ismael Nery, segundo Guignard, 2019 – óleo sobre papel, 35 × 29,5 cm


Flávio de Carvalho, 2019 – nanquim e grafite sobre papel, 51,5 × 42 cm

Não é simples e talvez nem exatamente necessário classificar a pintura e o desenho de Guilherme. É evidente que seu trabalho decorre da tradição do expressionismo, mais particularmente do neoexpressionismo atual, mas não se resume a isso. Por exemplo, ao adotar uma paleta que traz à memória outro artista de sua predileção, alheio e muito anterior a esses movimentos, no caso, especificamente Rembrandt pela preferência declarada de Guilherme pelos tons terrosos, ocres e sépias, e por certo tipo de efeito de luz. Sem esquecer que a presença do branco e do preto nas telas nos faz pensar o quanto eles guardam daquilo que é mais típico do desenho ou de certo período da história da fotografia. Não é o caso de falar de influências, mas lembrar da afinidade do projeto de Guilherme com o do exímio retratista Lucian Freud, inclusive já pintado por Guilherme, que não vão pelo caminho de outros artistas contemporâneos com suas gritantes distorções, por vezes quase beirando o caricatural, das figuras, como Francis Bacon, Baselitz, Sentenat, apenas como exemplos numa infinidade de nomes, ou Iberê Camargo. Este último, talvez o fantasma que mais assombra Guilherme entre os artistas brasileiros. No fundo, ele se atém ao terreno do “clássico”, no sentido de buscar algo simbólico em suas imagens, e distante, portanto, de figurações alegorizadas.
O procedimento geral foi pintar três telas a óleo de cada artista plástico, bem como do poeta. E a preferência pela gestualidade da espátula e por generosas quantidades de tinta confere às telas uma grande carga de relevo, acentuando a aproximação do retratado de quem o está vendo. Outro aspecto é a relação figura e fundo, em que são notáveis dois procedimentos bem distintos: extensas regiões abstratas ou fundos que remetem a certa modalidade de geometrismo, ainda que bastante esbatido, esgarçado. Este segundo procedimento, de meu ponto de vista, é o que produz os melhores resultados por criar tensões singulares com os personagens. Em pelo menos um caso, de Vieira da Silva, vê-se uma clara intenção de capturá-la ao longo da vida. Há um retrato de Vieira mais jovem, outro em sua meia-idade e um terceiro com ela bem idosa. Mas outros retratados também são captados em momentos distintos de suas vidas, como José Maria dos Reis Júnior e Arpad Szenes. Por vezes, uma mesma fotografia parece ter servido de base para mais de um trabalho: caso de “A cabeça do poeta” e “Adalgisa Nery e Murilo Mendes”. Por fim, e ecoando o título, é o olhar, são os olhos o elemento mais importante nos trabalhos. Janelas da alma, espelhos do mundo, como pensou Leonardo da Vinci, é principalmente pelos olhos que conhecemos o que nos cerca e nos desnudamos.
Entre tantos trabalhos da mostra, e adotando a estratégia do pintor, vou me deter em apenas três, como modo de chamar a atenção para aspectos que, se evidentemente não esgotam, fornecem alguns elementos para serem pensados outros retratos e desenhos do conjunto, mesmo que por contraste.



Portinari (I), 2019 – óleo sobre tela, 55 × 50 cm

Em primeiro lugar, um retrato de Portinari. Ele destoa positivamente da maioria dos trabalhos ao não adotar de modo sistemático a paleta preferencial de Guilherme. É um quadro praticamente em azul acinzentado, preto e branco, que inaugura outro campo de cores a que ele pode se dedicar com fluência, ao mesmo tempo que aproxima pintura e desenho. O azul também funciona como referência ao próprio Portinari, que o empregava de forma tão particular. Sobretudo, parece um quadro terminal, a frieza do azul do fundo é como que a antevisão da morte que cerca a imagem retratada.





Adalgisa Nery e Murilo Mendes, 2018 – óleo sobre tela, 60 × 80 cm

Outro trabalho que se diferencia é o retrato “Adalgisa Nery e Murilo Mendes”, já citado. É o único caso na exposição de uma tela com mais de um retratado. Nele Guilherme usa sua paleta preferida e é dos mais sobrecarregados de camadas de tinta que, inclusive, ameaça escapar da tela em certos pontos da borda. Jogados ao final, os traços largos da espátula na roupa de Murilo e nos rostos, e a luz do branco, em fragmentos de linhas ou pequenos pontos, orientam de forma consistente a relação entre figuras e fundo. Distanciando-se da fotografia de base, o fundo não deixa mais entrever o lugar original. Antes multiplica o que os aproxima nos traços largos da espátula, concentrando-se radicalmente em quase quadrados entre as duas cabeças, que articulam e potencializam a grande energia amorosa que os unia. E fica a pergunta se essa leve geometrização é um modo de se comunicar com as pulsações de linhas e cores de Vieira da Silva.



Reflexo (III), 2019 – óleo sobre papel, 25,5 × 25,5 cm

Por fim, um dos três autorretratos do artista, “Autorreflexo (III)”, que está entre os melhores expostos. Como uma carta na manga, Guilherme se inclui na exposição ampliando a galeria dos afetados pela obra de Murilo Mendes. O retrato distancia-se mais que qualquer outro de uma representação. Dissolvente, ele temporalmente se situa antes ou depois de uma configuração nítida da imagem. Entre devir e déjà-vu, ele nos informa sobre a ilusão e o limite de toda representação, sobre o incaptável em qualquer subjetividade. Recusando-se a cristalizar uma imagem, trazê-la à tona, é pura potência, energia movendo-se, inquietação e instabilidade para nossa ânsia de fixar um caráter. Nada por acaso, o fundo homogêneo aumenta a impalpabilidade e impenetrabilidade da figura situando-a em lugar algum, sem passado, presente ou destino, convertida em esfinge. São gratificantes a suspensão de certezas e a emergência do imprevisível.

Ronald Polito, 2019

terça-feira, 16 de abril de 2019

O REENCONTRO - CONTO




Foi só eu colocar o pé na rua, dar alguns passos, olhar o céu para ver a possibilidade de chuva, ajeitar a bolsa no ombro e lá estava ele vindo no passeio, na minha direção. Inicialmente não percebi quem era, afinal 20 anos se passaram. Algo do seu porte ainda se conservava, apesar do corpo mais macilento e os cabelos brancos. Eu o reconheci antes de ser reconhecida por ele. Vejo-o olhando para mim como os homens olham para uma mulher que os atrai: mede meu corpo de cima para baixo, depois retoma o olhar para cima. Agora sim, me reconheceu. Faz-se de surpreso, o tradicional beijo no rosto, elogio sobre minha aparência. Acredita que ainda persiste uma certa intimidade, mesmo passados tanto anos, que o permite segurar minha mão, tocar meus braços nus. Gelo por dentro e mil imagens voltam a me possuir. O toque de sua mão faz retornar a sensação do calor do seu corpo, de nossos banhos nus e seus gemidos ao me pegar por trás sob a água morna, as várias camas onde me possuiu e onde empesteamos o lençol com o cheiro do nosso sexo, as posições às quais me submeti numa soma de prazer e susto. No entanto, estou sóbria, faço perguntas tradicionais que me são devolvidas. Casada? E os filhos? Trabalhando? Continuamos mantendo a racionalidade numa conversa banal. A intimidade, que pensa ainda ser um direito dele, o faz comentar sobre meu corpo, de como estou mais atraente: “não perdeu a sensualidade com a idade, como os bons vinhos”, emenda sorridente. Devolvo com mais parcimônia, você também está ótimo. Penso: ele ainda está apreciável. Não larga minha mão, desculpa-se perguntando onde está a aliança, já que falei que estou com alguém. Não uso, para que usaria, digo-lhe, com a corrente de calor de sua mão me penetrando docemente. Ele não vê problema, está próximo, parece que quer encostar-se em mim, abraçar meu corpo como fazia sempre, roçando seus lábios no meu pescoço e falando no meu ouvido aquelas coisas que uma mulher adora ouvir quando está se entregando. No entanto, mantém a distância mínima. Também sei me colocar entre o que o desejo quer e o que eu tenho que representar como não desejo. Falar banalidades serve para isso, ser esse pequeno muro entre ele e eu, entre o que eu quero realmente, o que ele quer realmente, e o que não podemos deixar acontecer. Tantos anos se passaram e eu gostaria de saber como seria outra vez ouvir seus gemidos. Imagino o que se passa na cabeça dele, talvez fazer melhor o que não fez tão bem antes, abusar mais, quem sabe. E eu, me soltar mais, afinal os anos nos ensinam alguma coisa. O tempo está bom hoje, não é? Sim, por isso estou saindo para dar um passeio. Fazer umas compras. Eu tenho um trabalho para fazer. Está morando aqui perto? Sim. Que bom ter cruzado por essa rua e ter te encontrado. Bom te rever também. Ele quer algo mais? Olha meus pés, exibidos numa sandália que os deixa nus, repara em minhas curvas e seios. Olhos passando rápido aqui e ali, como em desespero, mas discretamente. Talvez pense, porque eu a deixei escapar de mim? Eu reparo nos pelos do seu braço, sua barriga mais proeminente, seu peito com cabelos escapando da camisa. Como o tempo passa! Sim, exclamo também. Ele toca meu braço, já me sinto aberta para ele. Ele não sabe disso, pois mantenho a distância necessária, sempre, por mais que eu esteja me derretendo, dentro do jeans apertado, sob seu toque leve. Volta a segurar minha mão, mais forte, já me possuindo inteira. Eu percebo que ele gostaria... um escritor disse que uma mulher percebe uma ereção a cem metros de distância. Ilusão, estou sonhando, apenas um toque entre nossas mãos? Nos despedimos. A gente se vê por aí. Sim, qualquer hora a gente acaba se encontrando outra vez aqui na rua. Bom, preciso ir. Ok. Me beija o rosto, como se quisesse beijar minha boca. Beijo seu rosto, como se quisesse beijar sua boca. Cada um vai para uma direção. Gostaria de virar para ver se ele está me olhando, afinal, sempre me apreciou por trás. Volto para casa horas depois dessa despedida, deito na cama, coloco o travesseiro entre as coxas e sonho.       

(Jardel Dias Cavalcanti / abril 2019)

(Imagem: Ronald Polito)