domingo, 28 de outubro de 2012

FEMEN:
poesia e corpos radicais na contemporaneidade


A melhor poesia feminina atual está sendo criada coletivamente pelo grupo pós-feminista ucraniano Femen. Além da criação coletiva, usa como suporte de suas palavras o próprio corpo feminino, levando ao seu limite lógico a política e a poética dos gêneros. Com isso, tensiona todas as questões que aborda, e aborda todas as questões que quer tensionar, numa radicalidade rara em tempos de poesia irrelevante, regressiva (que o diga o galo da alva) e “alumbrada”.
A foto abaixo mostra um poema semiótico poderoso, em que, para identificar exploração sexual, escravidão e fascismo, usa-se a suástica na forma de dois SS entrelaçados, um da palavra “sex”, outro da palavra “slavery”, criando a síntese verbal-visual “sex slavery [is nazi]”, que é por sua vez reduplicada e explicitada na expressão “is fascism”. Tudo isso formando a moldura negra de um belo e alvo seio feminino, cuja forma se projeta à frente da planura das palavras, não em oferta de si mesmo, mas oferecendo a estimulação do desejo como forma de tensionar a própria mensagem que centraliza. Equilibrando o peso visual desse conjunto de palavras e carne, localizado à esquerda do tórax, uma águia nazista dominando o orbe, o mundo, está desenhada à direita, enquanto tudo é encimado por um rosto anguloso e cerrado de Valquíria loura de olhos claros, a perfeita tradução da mulher ariana, travestida, porém, sexual e politicamente, numa caricatura de Adolf Hitler.
Há uma forte evocação da arte radical do período de Weimar, época de dadaísmo, teatro expressionista e cubo-futurismo, e também do punk dos anos 1970 (Sex Pistols e cia):



A pauta temática do Femen não é, no entanto, politicamente correta, ou seja, não se limita à moldura do aceitável pela etiqueta feminista-esquerdista. Assim, promoveu uma recente manifestação anti-islâmica, por identificar, necessariamente, islã e opressão feminina, alvo central do grupo. Neste caso, o “poema” mais forte, eficiente e provocador era um convite aos muçulmanos para que fiquem nus, se desnudem (“Muslim, let´s get naked”), numa clara polissemia, pois tal nudez se refere denotativamente aos corpos mas também, metaforicamente, à crítica, à análise, ao questionamento, ao desarme, além de pôr em xeque o acobertamento do corpo feminino pela incitação a expor o masculino. Ladeiam e completam o convite polissêmico um neologismo contra o extremismo, “Sextremism”, e a afirmação-equação radicalmente anti-islâmica e irredutivelmente pró-liberdade individual de que “My body is my fredoom”:



Somados, a defesa do “sextremism” contra o extremismo, o convite ao desnudamento do islã e a afirmação radical da liberdade corporal (ou da liberdade corporal radical) põem em xeque qualquer discurso que tente relativizar o sexismo, a intolerância e o patriarcalismo islâmicos em nome da “especificidade cultural”, da “herança colonial”, da “política imperial” ou o que seja. Fica implícito (o único elemento implícito, aliás) que para o grupo Femen qualquer defesa do inaceitável é inaceitável. Se restasse alguma dúvida, diz-se simplesmente “não” à sharia, a lei islâmica (ou talvez não tão simplesmente: note-se a linha vermelha, como um vergalhão, que desce do ombro esquerdo para a palavra “sharia”, culpando graficamente a lei islâmica pelo sangue das mulheres brutalizadas, entre outras coisas, por chicotadas [um dos castigos mais comuns avalizados por tal lei]):



Ecumênico, o grupo também ataca a patriarcal Igreja Ortodoxa Russa. Em uma recente visita do Patriarca Cirilo a Kiev, o velho sacerdote, seu líder máximo, cujo nome em russo é Kirill, foi recebido, em suas longas vestes negras cobrindo o corpo inteiro, por belas mulheres seminuas que traziam pintada no tórax uma mensagem simples, clara e, ao mesmo tempo, tanto metonímica (o nome do líder para referir a instituição) quanto paronomástica: “Kill Kirill” (“Matem Cirilo”). Poesia feminina contemporânea é isso. O resto é confeitaria (ou jardinagem: o caráter feminino atrasado da poesia de Dal Farra, de viés doméstico, além de domesticado, coerente com sua visão regressiva da própria poesia, enquanto isso se manifesta em poemas sobre “Vasos com rosas” [p. 80], que “Ensinam (humildes) o pacífico existir”…).



O que poderia demonstrar de modo mais cabal e irredutível o completo arcaísmo da igreja do que o contraste entre seus homens sisudos cobertos de preto e a modernidade do corpo seminu de uma mulher de jeans com o tórax grafitado? A publicidade da Benetton, tida como das mais ousadas da mídia mundial, sempre buscou esse efeito, mas na publicidade da Benetton isso nunca passou de um efeito. Aqui, tudo é real. Não por acaso, a igreja também está no centro de uma ação recente de outro grupo feminino eslavo, o coletivo russo Pussy Riot (cujo nome significa algo como “desordem vaginal”). Três de suas integrantes invadiram, em março de 2012, a Catedral de Cristo Salvador em Moscou, em protesto contra as eleições presidenciais russas, que culminaram com a previsível reeleição de Putin. No altar, cantaram um punk rock em que pediam à Virgem Maria para tirar Putin do poder, além de acusar o Patriarca Cirilo (o mesmo Kirill que o Femen quer to kill) de crer mais em Putin do que em Deus (foram presas e condenadas a dois anos de prisão por “desordem e incitação ao ódio religioso”; sim, aqui tudo é real).
A maioria dos membros do Femen, invertendo o uso e o abuso pela mídia e pela publicidade do corpo feminino como instrumento comercial, é de belas mulheres jovens, magras e de cabelos longos, como Sonia Shachko:



Mas o teatro político-poético do grupo vai além. Evocando mais uma vez a linguagem de Weimar e dos Pistols, num protesto contra a organização futebolística europeia, a UEFA, e contra a polícia de Putin (cada aparição do grupo é uma criação semiótica tematicamente dirigida), que o grupo chama de KGB, uma matrona tem a parte de baixo do corpo vestida como um policial, o tórax exposto com dois grandes seios maternais e a cabeça masculinizada de Adolf Hitler, cercada por beldades seminuas cujos rostos estão cobertos por balaclavas das forças especiais, enquanto ostentam longos cacetetes negros. A manifestação, por ocasião da final da Eurocopa em Kiev, de um lado dizia ironicamente para a UEFA respeitar a KGB (“Respect KGB UEFA”), e, de outro, afirmava ambiguamente ser a própria UEFA uma KGB que se acata (outra leitura da mesma frase), pois o grupo considera que a organização não dá importância ao aumento da prostituição e mesmo do tráfico de mulheres associados aos seus grandes eventos internacionais. Em todo caso, havia também um texto não ambíguo: “Fuck KGB”.



O grupo não respeita nenhum tema, logo, aborda todos. As questões do mundo contemporâneo não o intimidam, ao contrário, o incitam. Uma de suas criações mais sinteticamente expressivas explora a outra parte, ou contraparte, de sua marca registrada e constante icônica, os seios nus: ou seja, as calcinhas. Para se manifestar contra a possível proibição, no Brasil (há uma seção brasileira do grupo, que, coerentemente, se internacionalizou), do parto caseiro (não pela mitificação de classe média pseudomoderna do “parto natural”, mas pela liberdade de escolha e corporal feminina), criaram uma cena com mulheres de calcinhas ensanguentadas parindo bonecas, expondo ao mesmo tempo o mênstruo, sempre ocultado (que aparece em falsa e anódina cor azul em todas as propagandas de absorventes), e o que a ele se relaciona diretamente, ou seja, a gestação e o parto, com seus fluidos corpóreos. Ao mesmo tempo, as bonecas servem de suporte à afirmação-equação em duas partes: “Nasci livre”, [logo] “Sou livre”:



Em seguida, com as bonecas dispensadas e as mulheres em pé, as calcinhas ensanguentadas fazem um giro semântico e passam a significar estupro, associadas às palavras “Violação não”. Arte performática é isso, o resto é “conceito”, arte “abstrata”.



A poética do grupo Femen, centrada em palavras que fazem, muitas vezes, um uso poderoso da linguagem propriamente poética (“Kill Kirill”), ou fundem ao corpo uma palavra de ordem, que se torna corpórea e organicamente articulada (“No sharia” pintado em pele feminina), junto ao uso motivado das demais variáveis do suporte, ou seja, o corpo feminino seminu e suas implicações e contradições (apelo sensual e rejeição radical ao sexismo através do “sexismo extremista”, ou “sextremism”, do próprio grupo), é, além disso, criada para e com a mídia, isto é, incorpora, “sequestra” a mídia para sua realização poético-política e para sua divulgação, que se fundem e se confundem, resolvendo assim o eterno problema moderno do divórcio entre o poeta e o público.
A alienação letrada e confeitada de que Dal Farra é apenas um exemplo entre muitos, e que domina a poesia brasileira contemporânea, não é uma inevitabilidade de um tempo de confusão e caducidade cultural e estética, portanto, não tem nessa confusão e nessa caducidade uma defesa ou uma justificativa. Tempos confusos exigem da arte, não devaneios ou alumbramentos regressivos e negacionistas (da confusão cultural e de suas dificuldades), mas clarezas radicais ou radicalismos claros, que usam, contra a gosma do confuso, a cortante fuga para frente. A força poética e política do Femen (no último caso, não quanto aos resultados, mas quanto às tensões e intenções) tornam a poesia de gênero, feminina ou outra, assim como a poesia em geral que hoje se pratica, um rançoso e natimorto neoparnasianismo, poesia de gabinete para gáudio do autor e de seu grupo, imersa em lamúrias pela indiferença do público e pela dureza indiferente do mercado, além de compensatórias autocongratulações intragrupais (incluindo as dos prêmios literários). A essa poesia anêmica, a essas lamúrias lânguidas e a essas congratulações pálidas responde o curto e cortante grito agudo e metálico de uma antiariana valquíria seminua e sextremista: Fuck! Kill Kirill! Kill!

Publicado na íntrega em:
http://sibila.com.br/cultura/a-farra-do-alumbramento-poetico-incluindo-como-fazer-diferente-ou-femen/8207

quinta-feira, 25 de outubro de 2012


MOEMA, A PINTURA DE UMA PERSONAGEM LITERÁRIA

Alexander Gaiotto Miyoshi1

 

 

No sexto canto de Caramuru, Poema Epico do Descobrimento da Bahia, o português Diogo Álvares deixa a América num navio rumo à Europa. Parte com ele a indígena Paraguaçu, pronta para se converter à fé católica. Será a sua esposa. Outras indígenas seguem-no a nado. Todas desistem, menos Moema, que se agarra ao leme do navio, amaldiçoa o casal e submerge.

Em Caramuru, publicado em 1781, a presença de Moema é breve. Mas no século XIX, contrapondo-se à de Diogo e Paraguaçu, ela foi sentida como nenhuma outra. Antologias poéticas e histórias literárias destacaram desde então o trecho da “morte de Moema”, segundo muitos críticos o melhor do Caramuru2.

Em 1866, Victor Meirelles expôs a sua pintura de Moema. Não é uma cena de Caramuru, mas sim o que poderia ter ocorrido à indígena depois de ela “sorver-se n’água”; o pintor a retratou na praia: uma imagem “ideal”. Moema écuma das obras mais sugestivas de Meirelles. Uma pintura que renova a tradição dos nus horizontais e, ao mesmo tempo, transgride a fábula épica de Caramuru, conferindo à personagem secundária um protagonismo inédito e perturbador.

 

DA LITERATURA

Moema parece ter sido uma invenção de frei José de Santa Rita Durão, autor do Caramuru, que provavelmente a criou para acentuar o drama do episódio das nadadoras, reputado como verídico em alguns relatos. O episódio valoriza a fábula épica3, mote central do poema, destacando os feitos de Diogo. Condensando em Moema a rebeldia dos gentios, Durão reforçou, por contraste, o poder de conquista e resistência de Diogo, e também as qualidades pias de Paraguaçu. Antonio Candido apontou, na década de 1960, que o afogamento de Moema representou igualmente o afogamento das demais indígenas recusadas por Diogo4. O episódio serviria, portanto, para fortalecer a união simbólica do herói com Paraguaçu, amálgama do bravo colonizador lusitano com a dócil selvagem americana, supressão da barbárie pagã pelo sucesso da civilização cristã. Para entender um pouco mais a função do episódio, analisemos o canto VI do Caramuru, entre as oitavas 36 e 43:

 

XXXVI.

He fama então que a multidão formosa

Das Damas, que Diogo pertendião,

Vendo avançar-se a náo na via undosa,

E que a esperança de o alcançar perdião:

Entre as ondas com ansia furiosa

Nadando o Esposo pelo mar seguião,

E nem tanta agoa que fluctua vaga

O ardor que o peito tem, banhando apaga.

 

XXXVII.

Copiosa multidão da náo Franceza

Corre a ver o espectaculo assombrada;

E ignorando a occasião da estranha empreza,

Pasma da turba feminil, que nada:

Huma, que ás mais precede em gentileza,

Não vinha menos bella, do que irada:

Era Moema, que de inveja geme,

E já vizinha á náo se apéga ao leme5.

XXXVIII.

Barbaro (a bella diz) tigre, e não homem...

Porém o tigre por cruel que brame,

Acha forças amor, que em fim o domem;

Só a ti não domou, por mais que eu te ame:

Furias, raios, coriscos, que o ar consomem,

Como não consumis aquelle infame?

Mas pagar tanto amor com tedio, e asco...

Ah que o corisco és tu... raio... penhasco.

 

XXXIX.

Bem puderas, cruel, ter sido esquivo,

Quando eu a fé rendia ao teo engano;

Nem me offendêras a escutar-me altivo,

Que he favor, dado a tempo, hum desengano:

Porém deixando o coração cativo

Com fazer-te a meus rogos sempre humano,

Fugistes-me, traidor, e desta sorte

Paga meo fino amor tão crua morte?

XL.

Tão dura ingratidão menos sentira,

E esse fado cruel doce me fora,

Se a meo despeito triunfar não vira

Essa indigna, essa infame, essa traidora:

Por serva, por escrava te seguíra;

Se não temêra de chamar Senhora

A vil Paraguaçu, que sem que o creia,

Sobre ser-me infrior, he nescia, e feia.

 

XLI.

Em fim, tens coração de ver-me afflita,

Flutuar moribunda entre estas ondas,

Nem o passado amor teu peito incita

A um ai somente, com que aos meus respondas

Barbaro, se esta fé teu peito irrita,

(Disse, vendo-o fugir) ah não te escondas;

Dispara sobre mim teu cruel raio...

E indo a dizer o mais, cahe n’um desmaio.

XLII.

Perde o lume dos olhos, pasma, e treme,

Pállida a côr, o aspecto moribundo,

Com mão já sem vigor, soltando o leme,

Entre as salsas escumas desce ao fundo:

Mas na onda do mar, que irado freme,

Tornando a apparecer desde o profundo;

Ah Diogo cruel! disse com mágoa,

E sem mais vista ser, sorveo-se n’agoa.

 

XLIII.

Chorárão da Bahia as Nynfas bellas,

Que nadando a Moema acompanhavão;

E vendo que sem dor navegão dellas,

Á branca praia com furor tornavão:

Nem pode o claro Heróe sem pena vellas,

Com tantas provas, que de amor lhe davão;

Nem mais lhe lembra o nome de Moema,

Sem que ou amante a chore, ou grato gema6.

Rodolfo Bernadelli - Moema
 
 
 
  Em nenhum momento Durão descreve Moema. Apenas informa sua beleza física e, pelas atitudes, nos faz conhecer parte de sua personalidade. Os sentimentos transfiguram-se em elementos da natureza, num admirável uso de metáforas, elipses e zeugmas. Na voz de Moema, Durão compara Diogo a um tigre, invoca fúrias, raios e coriscos; sugere duas imagens poderosas de terror e sublimidade: uma fera ameaçadora e uma tempestade. Com esta última, remete ao primeiro contratempo de Diogo: a “verdadeira” intempérie que o fez naufragar no Brasil. Diferente desta, porém, a tormenta imprecada por Moema é “imaginária”, veloz e fulminante, talvez por isso ainda mais intensa, temível e recompensadora ao português. De todo modo, ambas representam o enfrentamento do lado selvagem e perigoso do Novo Mundo, seja pelo ambiente arisco ou pela oferta de esposas, tudo superado por Diogo.

 

Da pintura

 

Embora Moema fosse uma das personagens mais lembradas da literatura que começava a ser compreendida como brasileira, ela não passava ainda de uma idéia, de uma imagem mental e não visual. As únicas edições ilustradas de Caramuru – uma francesa, de 1829, e a outra portuguesa, de 1836 – retratam exclusivamente os protagonistas do poema, Diogo e Paraguaçu, de modo coerente à sua fábula épica, dando corpo à mensagem central da epopéia: a união de um nobre português com a mais casta das indígenas. Moema é o oposto da indígena modelo: não cobriu a nudez, como fizera Paraguaçu, mesmo antes de conhecer Diogo. Moema não se encaixava nos padrões europeus; mas apaixonou-se por um português. Seu afogamento, ou melhor, seu desaparecimento em meio às águas, foi a solução de Santa Rita Durão ao impasse.

 

Victor Meirelles não pintou uma cena de Caramuru; escolheu retratar o que poderia ter ocorrido a Moema depois de ela “sorver-se n’água”: seu corpo aparece na praia, nu e inerte, imerso numa natureza evanescente, virado para cima, com a mão sobre o ventre, o braço estendido e as pernas juntas. Sua pose é delicada, mesmo artificial, o que se acentua em dois elementos: um arranjo de penas central no quadro, cobrindo o sexo, e os cabelos negros, longos e ramificados, impressionantemente vivos. Mais do que obedecer a obra literária, Meirelles integrou seu quadro à tradição pictórica de nus estendidos sobre paisagens naturais, prolongadas ao horizonte; nus míticos e idealizados, dormindo ou sem vida, inconscientes de sua exposição e, assim, viáveis a olhos moralistas. Acrescente-se que a nudez de Moema, sendo ela uma indígena, era condição natural, inocente e plausível, o que autorizou ainda mais a sua transposição à tela.

Moema respira o ar de mudanças profundas na pintura internacional. Os anos de 1860 são profícuos em variados nus, cruciais para a diversidade do gênero. O ano de 1863 é particularmente significativo por dar lugar, em Paris, a “uma verdadeira batalha de nus”, nas palavras do historiador Henri Zerner7. De um lado, Édouard Manet expôs o Almoço na relva no Salão dos Recusados, um piquenique de dois homens, ambos elegantemente vestidos, e duas mulheres, uma delas completamente nua. De outro, Alexandre Cabanel expôs no salão oficial um quadro imediatamente aclamado pela crítica e público, logo comprado por Napoleão III: O Nascimento de Vênus. A tela exibe a deusa do amor despertando do sono, evidentemente nua, com os olhos entreabertos demonstrando sua consciência de ser observada. Essa obra ambígua, evocando igualmente a divindade pagã e a modelo viva, devia atiçar o público masculino tanto quanto este, vendo-se espelhado nos rapazes do Almoço na relva, devia se sentir surpreendido, constrangido e ultrajado. Numa litografia de 1864, Daumier ironizou: “Este ano, mais Vênus... Sempre Vênus!... Como se existissem mulheres assim”. A presença de Afrodites, ninfas e ondinas, nuas e voluptuosas à moda de Cabanel, tornava-se cada vez maior. Mas não apenas deidades despidas eram retratadas; pintavam-se também, em meio às águas, personagens do teatro e da literatura, comportadamente vestidas, sacrificadas por amor, demência ou causas nobres. A mais célebre dessas personagens é Ofélia, de Hamlet, dama dileta de pintores prérafaelitas e vitorianos, secundada, entre outras, por Elaine de Astolat, do ciclo arturiano, e Virgínia, de Paul et Virginie.

Entre Vênus e Ofélia, Moema é uma espécie de meio-termo, uma personagem que, na adaptação magistral de Meirelles, conciliou o gênero pictórico da mulher sobre as águas e a busca pelo assunto pátrio, ambos muito apreciados em meados do século XIX. Toda a concepção do quadro, incluindo o minúsculo navio no horizonte e os indígenas acenando, é criação de Meirelles, amparada em referências diversas que incluem desde a sua obraprima A Primeira Missa no Brasil (1860) até a famosa A Balsa da Medusa (1819), de Géricault, copiada por Meirelles entre 1857 e 58. Parte da crítica tomou Moema como plágio da Morte de Virgínia, de Eugène Isabey8, torpe acusação. Moema, como toda realização artística, alimentou-se generosamente de citações, em processo legítimo de imitatio, transformandose ela mesma em poderosa fonte de citação.

 

Desbravadora, original e influente a outras obras formidáveis (lembremos Marabá e O último tamoio, de Rodolpho Amoêdo, além da escultura Moema, de Rodolpho Bernardelli), a tela de Meirelles permanecerá insuperable em termos de força, criação e sensibilidade. Como observou Jorge Coli, Moema é abstrata e sintética, purista e geométrica, mais romana que francesa9, e embora compartilhe aspectos da arte de Courbet e da literatura de Baudelaire, ela nega a matéria, diferente dos quadros de indígenas mortos ou abandonados que a seguiram, todos mais “realistas” ou “naturalistas” que ela. Coli identificou em Moema a mais representativa imagem dos decantados apelos exóticos e eróticos daqueles anos banhados em morbidez. Ela é igualmente o mais delicado retrato de uma mulher que, momentos antes, havia se mostrado uma terrível virago. A Moema de Victor Meirelles expressa o sucesso da personagem no século XIX, mas também reforça um outro sentido: o da indígena vitimada em prol das conciliações entre brancos e selvagens, por fim apaziguada10, mesmo ao custo de sua vida11.

 

NOTAS

1 IFCH-Unicamp. Email: alexmiyoshi@hotmail.com

2 Ver entre outros: PATO MONIZ, Nuno Alvares Pereira. Exame analytico e parallelo do poema Oriente do R. do José Agostinho. Lisboa: Typografia Lacerdina, 1815, pp. 170-171. GARRETT, Almeida. “Bosquejo da historia da poesia e lingua portugueza” [1826]. In O retrato de Venus e estudos de historia litterária. 3ª ed. Porto: Ernesto Chardron, 1884, p. 210. SILVA, João Manuel Pereira da. Parnaso brazileiro: ou, Selecção de poesias dos melhores poetas brazileiros desde o descobrimento do Brasil. Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique Laemmert, 1843 (republicado em 1848). VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. Florilegio da poesia brasileira ou collecção das mais notáveis composições dos poetas brasileiros fallecidos, contendo as biographias de muitos delles, tudo precedido de um ensaio historico sobre as lettras no Brazil. Lisboa: Imprensa Nacional, 1850. WOLF, Ferdinand. Le Brésil littéraire. Histoire de la literatura brésilienne suivie d’un choix de morceaux tirés des meilleurs auteurs bésiliens. Berlim: A. Asher & CO. (Albewrt Cohn & D. Collin), 1863.

3 Compreendendo o episódio de Moema como “episódio da fábula épica”: “O episódio é parte da fábula, devendo ter relação com o assunto do poema. Mais extenso que o episódio cômico e trágico, é uma sequ!.ncia narrativa paralela da ação principal dotada de começo, meio e fim, mas sem concluir o todo da fábula narrada pelo poema. Por outras palavras, o episódio é funcional: situação narrativa ou dramática, amplifica e diversifica a ação narrada como ornato e exemplo que tornam o poema mais variado e versátil, enquanto relaciona o que veio antes com o que vem depois, para que o herói continue agindo.”  HANSEN, João Adolfo. “Introdução: Notas sobre o Gênero Épico”. In TEIXEIRA, Ivan (Org.). Épicos: Prosopopéia: O Uraguai: Caramuru: Vila Rica: A Confederação dos Tamaios: I-Juca-Pirama. São Paulo: Edusp/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2008, pp. 57-58.

4 CANDIDO, Antonio. “Estrutura literária e função histórica”. In Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. 5ª edição revista. São Paulo: Editora Nacional, 1976 (Obs.: O texto de Candido foi publicado com o

título “Estrutura e função do Caramuru”. In Revista de Letras, nº 2, Assis, SP, 1961).

5 Numa das compilações do século XIX, no lugar do termo “vizinha” lê-se “risonha”, o que muda

significativamente o sentido do verso. O lapso ocorreu em PINHEIRO, Joaquim Caetano Fernandes. Curso

elementar de litteratura nacional. Rio de Janeiro: Garnier, 1862, p. 433.

6 DURÃO, Frei José de Santa Rita. Caramurú. Poema Epico do Descobrimento da Bahia. Lisboa: Regia Offician Typographica, 1781, pp. 179-181.

7 ZERNER, Henri. “O olhar dos artistas”. In CORBIN, Alain (org.). História do Corpo: Da Revolução à

Grande Guerra. Vol. 2. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 128.

8 S. PAIO, Rangel de. O quadro da Batalha dos Guararapes seu autor e seus criticos. Rio de Janeiro: Typographia de Serafim José Alves, 1880, pp.96-97.

9 Sobre o purismo romano de Victor Meirelles, ver COLI, Jorge. A Batalha de Guararapes de Victor Meirelles e suas relações com a pintura internacional. Campinas: Unicamp, 1997 (Tese de Livre docência; sobre “Moema”, pp. 315-320), ou COLI, Jorge. Como estudar a arte brasileira no século XIX? São Paulo: Senac Editora, 2005.

10 “A Batalha dos Guararapes” (1879), também de Meirelles, pode ser entendida de modo semelhante: “sem

violência”. Ver COLI, Jorge. Como estudar..., pp.76-77.

11 Ver também MIYOSHI, Alex. “O retrato do bom selvagem”. Revista História Viva, nº. 62, São Paulo:

Duetto Editorial, dezembro de 2008, pp. 58-63.

 

terça-feira, 23 de outubro de 2012


ARTHUR DANTO

E A "TRANSFIGURAÇÃO DO BANAL" [1]

MARC JIMENEZ

 
 

 

            As concepções estéticas de Arthur Danto inscrevem-se também no quadro da filosofia analítica aplicada à arte. Todavia, não se trata mais de elaborar uma teoria dos símbolos mas de dar conta da essência da arte moderna.

            Danto entende responder por outros meios à questão de Goodman: "Quando há arte?" Como explicar, especialmente, que objetos de banalidade tão aflitiva quanto os fac-símiles dos [cartões] de Brillo expostos pelo artista Andy Warhol em 1964 podem ser percebidos como obras de arte, enquanto os encontramos, quase idênticos, expostos em qualquer súper-mercado?

            A resposta é simples: coloquemos lado a lado uma verdadeira caixa Brillo e uma cópia do artista, ou então um urinol funcional e o ready-made de Duchamp. Percebe-se uma diferença "estética"? Não, evidentemente, já que os artistas fizeram tudo para que suas cópias fossem indiscerníveis do original. Conclusão: só a interpretação permite explicar esta "transfiguração" do objeto banal em obra de arte. Esta interpretação escapa totalmente ao profano. Não é espontânea; supõe um público informado, que conhece o meio da arte, e que se deixa ganhar por uma "atmosfera de teoria artística". Danto fala do "clima" criado pelo "mundo da arte". Assim, o iniciado, informado pelo mercado, as mídias, os profissionais, os experts, os críticos titulares, podem empreender a identificação do objeto e reconhecê-lo eventualmente como "obra de arte".

            O procedimento de Danto parece astucioso; mas deixa vários pontos obscuros. Será que é legítimo associar Duchamp e Warhol? Pode-se aplicar o mesmo raciocínio sobre um objeto industrial, "já pronto" - estilo ready-made - , e um objeto fabricado pelas mãos do artista - as caixas Brillo?

            Admitamos que o fenômeno artístico permaneça o mesmo. A comparação entre o objeto não exposto e o objeto exposto é probatória? Danto precisa de fato: "Na minha opinião, uma obra possui um grande número de qualidades que são completamente diferentes das de um objeto que, apesar de materialmente indiscernível dela, não é uma obra de arte. Algumas destas qualidades podem muito bem ser estéticas, ou dar lugar à experiências estéticas[1][2]."

            Questão: que qualidades são estas se não são perceptíveis? Se não são perceptíveis, como afirmar que são diferentes? Em quê reside a diferença entre as qualidades "estéticas" e as qualidade "não estéticas"?

            Danto acrescenta: "[...] mas antes de poder reagir a estas qualidades em um plano estético, é preciso que se saiba que o objeto em questão é uma obra de arte. Então para poder reagir diferentemente a esta diferença de identidade, é preciso que se saiba já fazer a diferença entre o que é da arte e o que não é[2][3]."

            Em resumo: é preciso saber diferenciar para saber diferenciar. Para distinguir um objeto qualquer de uma obra de arte, é preciso que já se saiba qual objeto é uma obra de arte. A solução reside, como vimos, na interpretação... Mas resta compreender de onde a instituição, na origem, tira esta pré-ciência que lhe faz adivinhar qual objeto é obra de arte.

            O embaraço de Danto, que é também o de mais de um visitante de exposições de arte contemporânea, não se atém ao fato de que se conserva aqui a categoria "obra de arte" para aplicar a um objeto que não reivindica nem um pouco esta qualidade?

            Danto, como Goodman, considera como supérfluos e inadequados o julgamento de gosto, a apreciação subjetiva e a avaliação qualitativa. É verdade que, nos exemplos citados, tornariam provavelmente maior a confusão. A interpretação do público é válida unicamente se chega a coincidir ao máximo com a interpretação que o próprio artista dá da sua "obra". Todo trabalho interpretativo consiste em acumular o máximo de conhecimentos sobre o mundo da arte a fim de reduzir ao mínimo a margem eventual de incompreensão entre a intenção do artista e o público.

            Arthur Danto sublinha uma das tendências mais controvertidas da arte do século XX: a que suspende a atribuição da qualidade da obra de arte para ao que se sabe dela, do artista, de seus projetos, de sua inserção no meio da arte. A arte não é nada além do que o que se decide que seja, um puro produto, não mais artístico, mas artificial, produzido pelo jogo da linguagem e da comunicação no interior da instituição artística.

            É verdade, por exemplo, que as "ações" de Joseph Beuys se esclarecem apenas a partir das intenções do artista e de sua vida. La Chaise (1964), Le Costume de Feutre (1970), L'Arrêt du tram (1976) são incompreensíveis para quem não conhece a simbólica dos materiais empregados: graxa, feltro, metal etc. Sem nenhuma informação sobre o sentido desses "objetos", o público veria nisso apenas dejetos, ainda menos dotados - se é possível! - de atrações estéticas como a urinol de Duchamp e os [cartões] de Warhol. Pode-se também, ao inverso de Danto, considerar estes “atos" como provocações: fazendo talvez erupção no mundo da arte, mas, se conseguem entrar na instituição, é com a esperança de abalar os muros e desestabilizá-la. Uma esperança, de resto, quase sempre frustrada.

            Mas, para Danto, esta concepção de uma arte hostil para a sociedade e realidade não pode fazer esquecer que participa apesar de tudo ao "mundo da arte", e que é também, conforme a expressão de Goodman, uma "maneira de fazer o mundo". Trata-se aí de uma interpretação incontestavelmente mais pragmática e realista do papel da criação artística na sociedade ocidental moderna. Resta saber se esta imagem de uma arte reconciliada com o mundo não é justamente a que os artistas se esforçam para confundir em permanência.

            Compreende-se melhor a origem do debate contemporâneo entre a estética analítica, de tradição anglo-saxônica - essencialmente norte-americana -, e a tradição européia cuja estética de Adorno, por exemplo, se quer a herdeira.

            Para uma, não poderia ser questão de representar ao infinito o jogo não decisivo do julgamento de valor, sempre subjetivo, pretendendo à universalidade. Faz valer a função do conhecimento da arte e a possibilidade oferecida de se abrir para o mundo, até mesmo aceitá-lo tal como é.

            Para a outra, ao contrário, a obra de arte guarda elementos históricos e sociais que a estética tem como tarefa explicitar. Não somente a obra "julga", da sua maneira, a história e a sociedade, mas ela mesma é candidata à apreciação e avaliação do público. Um pouco como se este devesse a cada vez julgar a qualidade da prestação artística.

            Estas duas grandes correntes da filosofia da arte são inconciliáveis? A questão não está fechada.

 

 

A CRÍTICA DA MODERNIDADE:

O PÓS-MODERNO

 

 

            A recepção favorável reservada, especialmente na França, às teses de Nelson Goodman e Arthur Danto deve-se muito ao contexto artístico e estético. Uma teoria que neutraliza os julgamentos de valor sobre as obras e outorga prioridade à descrição sobre a avaliação assenta-se melhor em uma época abalada pelo desaparecimento das referências e dos critérios estéticos.

            Desde o fim dos anos 70, e no início dos 80, as críticas dirigidas à modernidade e aos projetos vanguardistas ficaram mais vivas. A moda dita "retrô" já era sintomática de uma recolocação em causa de um sentido da história evoluindo de modo linear para um futuro modernista radiante. A idade da pós-modernidade e do pós-vanguarda entende assinalar o fim da idade moderna e a utopia de uma perfeição inacessível. A época é para o individualismo e para a afirmação de uma liberdade que deixa a cada um o prazer de julgar e de avaliar ao seu grado. Rejeitam-se os critérios e normas estabelecidos pela arte moderna, e torna-se mais conciliador para com as formas e estilos do passado.

            Na França, em 1983, um defensor ardente da arte contemporânea dos anos 60/70, anuncia, como subtítulo da sua obra, uma "crítica da modernidade". O autor constata a distância entre o dinamismo da vida cultural e a decadência das artes plásticas condenadas a se alimentar nas fontes já esgotadas de uma modernidade moribunda: Dada, arte conceitual, pop arte, neo-expressionismo etc.

            É em termos vivos e vigorosos que é feito o retrato aflitivo das "belas-artes": "De um lado, os últimos representantes da pintura abstrata e analítica multiplicam ao infinito as variações sobre o invisível e o quase nada. E para enganar esta penúria do sensível, a glosa inchar-se-á em proporção inversa de seu objeto; mais a obra se fará pequena, mais sábia sua exegese. Uma dobra da tela, um traço, um simples ponto tornam-se pretexto para um extraordinário escrito ininteligível em que se respondem diferentes jargões das ciências humanas [...], aliás, ainda, os devotos da antiarte, sessenta anos depois de Dada, continuam agitando os signos derisórios de um apelo às armas para quem nada responde - nem nunca respondeu[3][4]."

 

            As correntes ditas pós-modernas que se multiplicam no domínio das artes e do pensamento filosófico aparecem, desde então, como remédios salvadores para a crise. Do que se trata?

            O termo pós-moderno encontra sua origem nos debates que opõem, nos anos 60, os arquitetos construtivistas e modernistas, herdeiros da Bauhaus, Walter Gropius, Moholy-Nagy, Mies van der Rohe, Le Corbusier, e uma geração mais recente representada especialmente por Robert Venturi e Charles Moore. Estes entendem reagir ao funcionalismo promovido por seus ilustres predecessores. Eles consideram por demais austero e característico da modernidade dos anos 20-30. Propõem uma arquitetura mais leve, dando mais importância à fachada e aos elementos decorativos. Pela pura função, substituem a "função-ficção simbólica". Agrada-lhes integrar formas do passado, recorrer aos estilos antigos, sem todavia quebrar o caráter funcional da arquitetura.

            Declaram-se então pós-modernos, apesar do caráter rebarbativo deste neologismo. Charles Moore, o arquiteto da Piazza d'Itália em Nova Orleans - um dos exemplos mais espetaculares do pós-modernismo - não gosta da palavra. Se a adota, é somente porque a arte, a moda e a decoração de interiores já se apropriaram dele. Em 1978, Charles Jencks, crítico da arquitetura, declara empregar a palavra pela primeira vez no seu livro L'architecture postmoderne[4][5].

            La condition postmoderne, de Jean-François Lyotard aparece no ano seguinte (1979). A obra da filosofia francesa, elaborada nos Estados Unidos, conhece uma repercussão considerável. O autor explica como as grandes teorias científicas, morais, ideológicas e artísticas do período moderno tendem a se tornar caducas. Os "grandes relatos": conhecem uma crise de legitimidade. Ninguém mais acredita seriamente no tema do progresso da humanidade nem no da emancipação iminente do homem graças às ciência e técnica. Segundo Lyotard, este processo de crise é irreversível. O termo pós-moderno é para ele pejorativo. Não tem nada a fazer, diz ele, com a ideologia da pós-modernidade, nem com as paródias e citações que invadem todas as artes.

            O vocábulo pós-moderno encontra-se, então, afetado por duas significações contrárias. Mas a moda e o espírito da época fazem sua obra. O primeiro sentido ganha. Torna-se sinônimo de crítica da modernidade enquanto Lyotard pedia somente que se reavaliasse a modernidade. Seus protestos contra o amálgama não mudam nada. A época "moderna" é declarada terminada, e a "pós-vanguarda", versão artística da pós-modernidade, propaga-se, na música e filosofia.

            O neologismo "pós-vanguarda", ainda mais que o de pós-modernidade, pode fazer rir pelo fato de sua construção curiosa a partir de dois prefixos antagônicos, "pós" e "avant" [antes]. Ele propõe um "após" ainda que conservando um semblante de nostalgia em relação ao passado. Dá esta impressão estranha de querer predizer o futuro [escovando a história no sentido contrário].

            Esta ambigüidade caracteriza efetivamente as correntes artísticas dos anos 80, especialmente nas artes plásticas: os "anacrônicos" ou "citacionistas" italianos e franceses, consagraram para a bienal de Veneza em 1984, o movimento Trans-vanguarda de Achille Bonito Oliva, os [Novos Faunos] alemães exprimem ao mesmo tempo uma firme vontade de ultrapassar o modernismo e uma grande perplexidade diante do desaparecimento das vanguardas. Os artistas esgotam na memória histórica, justapõem ou misturam de modo eclético estilos heterogêneos em uma mesma obra, abraçam o decorativo, a citação, o folclore em um caos sempre lúdico e humorístico.

            Trata-se de conjurar o medo de entrar na "pós-história" e comemorar no final com um buquê brilhante o fim do espetáculo oferecido pela modernidade? Achille Bonito Oliva parece pensar isto quando declara, em 1980, que o contexto atual da arte é um contexto de catástrofe, "ajudado por uma crise generalizada de todos os sistemas". Este sentimento de crise global afeta tanto a arte, a cultura quanto a economia e a política. Conduz a conceber um fim possível da história. O que não significa evidentemente que a história pare, mas que a única maneira de responder à ausência das antigas referências e à dissolução dos valores tradicionais consiste em extrair dos fundos inesgotáveis da história da humanidade.

            Baudelaire sabia que o pintor da vida estava condenado a levantar o retrato de uma modernidade transitória, fugidia e contingente. Mas esta modernidade não podia ser ultrapassada senão por uma outra modernidade também precária, e assim sucessivamente. O artista da era pós-moderna só tem a escolha da retrospectiva repetida do passado e a aceitação do presente. Livre da utopia modernista é convidado a gozar, serenamente e sem aspirações ilusórias e "futuristas", dos feitos da época atual: "A grande cultura e a cultura comum, declara Bonito Oliva com entusiasmo, operam uma junção que favorece a instauração de uma relação cordial entre a arte e o público acentuando o aspecto sedutor da obra e o reconhecimento de sua intensidade interior”.

            A pós-modernidade não é um movimento nem uma corrente artística. É bem mais a expressão momentânea de uma crise da modernidade que atinge a sociedade ocidental, e em particular os países industrializados do planeta. Mais que uma antecipação do futuro que se recusa a projetar, aparece, sobretudo como sintoma de um novo "mal-estar na civilização". O sintoma desaparece progressivamente. A crise fica: mantém um lugar considerável, hoje, no debate estético sobre a arte contemporânea.

 
 
 

 

A ARTE E A CRISE

 

 

            O sentimento de crise generalizado é próprio a cada fim de século. Todavia, esta impressão é talvez mais forte quando este fim coincide com o do milênio.

            Nada é mais revelador da morosidade ambiente dos anos 90 que os leitmotivs sobre o tema "a arte está em crise, a crise está na arte, o caos está em tudo e tudo está em caos!", que as revistas especializadas e mesmo a imprensa para o grande público fazem eco. Justapor algumas citações extraídas de comentários recentes basta para compor o quadro de um naufrágio: "mercado de arte falido", "instituição falha", "rede cultural opaca", "crítica de arte temerosa", "modernidade ditatorial", "vanguarda terrorista", "mídias recuperadoras", "ensino artístico anêmico", "pintura inexistente", "música contemporânea elitista e confidencial", "artistas charlatões", "Duchamp, pai de uma posteridade desastrosa" etc.

            Mas invertamos este triste quadro e olhemos o outro lado: as instituições públicas subvencionam a criação artística contemporânea e salvaguardam o patrimônio, as empresas privadas multiplicam seu apoio aos artistas graças ao mecenato e ao financiamento, um público zeloso e fiel apressa-se aos festivais e exposições, sem falar do papel crescente das mídias tecnológicas no domínio da experiência estética individual.

            Não teríamos tendência a esquecer que as incertezas, os problemas e exasperações marcam a história da arte? Sobretudo no decorrer dos dois últimos séculos, divididos por rupturas, a sucessão dos "ismos" e os choques repetidos das vanguardas! A crise não designaria o estado permanente da evolução artística, como o da sociedade inteira?

            Qualquer época experimenta este sentimento de estar em um momento decisivo, oscilando entre a nostalgia do "déjà vu" e o desejo do "nunca visto"; período de desconforto e incerteza em que os antigos valores perecidos não foram ainda substituídos pelos novos; instante de desespero tão profundo que "a humanidade projeta inconscientemente seu desejo de sobreviver na quimera das coisas nunca conhecidas, mas esta quimera parece com a morte[5][6]".

            Recordemos Platão caçando, fora da cidade, poetas e compositores de música voluptuosos demais, Le Brun qualificando os coloristas de embrulhões e tintureiros, Carl Maria Von Weber declarando Beethoven "bom para o asilo de alienados" e burgueses que gritavam diante do Le déjeuner sur l'herbe, antidebussystas que vociferavam na avant-première de Pelléas et Mélisande etc. Paremos essa lista interminável de qualquer modo!

            A crise atual, ilusão ou realidade? Duas interpretações enfrentam-se. Parecem tão contraditórias a ponto de mergulhar na maior perplexidade a reflexão estética contemporânea, desesperadamente em busca de uma visão global da situação presente. Mas pode-se formular uma hipótese: perguntar-se, por exemplo, se "crise" e "ausência de crise" não seriam as duas faces do mesmo fenômeno, a saber, o nascimento de um poderoso sistema econômico encarregado da gestão das práticas culturais e artísticas.

            As instituições e as indústrias culturais têm de fato conhecido um desenvolvimento sem precedente no curso das duas últimas décadas. O sistema cultural moderno tem a vantagem de suprimir o antigo antagonismo entre a arte burguesa, sempre elitista, e a arte de massa, reservada ao vasto público. Governado pelo princípio da rentabilidade, distribui ao maior número o máximo de bens culturais e funciona como um gigantesco país de Cocagne onde cada um pode à vontade satisfazer seus desejos e paixões.

            Esse sistema tolerante e laico aceita todas as formas e estilos da arte passada, moderna e contemporânea. Todavia, faz passar para segundo plano as hierarquias de valores e diferenciações estéticas, não por isso se desinteressa do valor das obras. Mas dispõe de seus próprios critérios, conhecidos unicamente pelos experts e especialistas do mundo da arte e só deles. Seus meios promocionais são tais que podem chegar a criar um consenso em torno de obras contemporâneas, mais apreciadas em função do renome do artista do que em razão de suas próprias qualidades, e cuja chave escapa, na maior parte das vezes, ao grande público.

            Criador de seus próprios valores e de seus critérios de excelência, o cultural pode então poupar-se de fazer a reflexão estética que, inevitavelmente, interessa-se prioritariamente às resistências que cada obra opõe a sua absorção no circuito do consumo cultural. Apesar dos fatores econômicos, sempre conjunturais, o mal-estar contemporâneo é bem real. Paradoxalmente, resulta do próprio sucesso de um sistema cultural hegemônico, apto a desarmar qualquer crítica graças à sua generosidade e à abundância de suas prestações.

            É bastante significativo que o termo cultura tende a se substituir ao de arte nas expressões mais correntes da vida cotidiana. A arte ou as artes tornam-se um sub-conjunto de uma esfera em constante expansão. Esta esfera é a da "comunicação cultural" que dispõe de todos os meios tecnológicos e das mídias a serviço da difusão e da promoção de seus produtos; outra palavra que, muito freqüentemente, substitui a de obras, considerada ligada demais à uma concepção tradicional da criação artística.

            Pode-se então falar de uma "lógica cultural" para designar o processo de universalização respondendo à exigência de democratização na sociedade moderna. Mas esta lógica cultural não satisfaz todas as expectativas da experiência estética coletiva ou individual. Sabe-se bem, por exemplo, que o público, sempre perplexo diante de certas criações inéditas da arte contemporânea, espera em vão a revelação dos critérios estéticos que permitiram a seleção de tais produções e não de outra. Seguramente, estes critérios existem, mas permanecem freqüentemente propriedade de experts e de tomadores de decisão, quase sempre competentes, mas discretos.

            Excluído de um jogo do qual ignora as regras, o público não demora a se convencer da existência de um consenso entre iniciados que o condena a representar o papel de consumidor profano e dócil. Frustrado e desorientado, deixa-se desde então ganhar pelo espírito da época, o da dissolução total dos critérios estéticos; época de grande beatitude, em que tudo é soi-disant possível na arte, inclusive o "qualquer coisa", Walter Benjamin não predisse o fim da crítica no dia em que o homem chegasse a realizar seu sonho de viver em uma Disneyworld?

 

 

A QUESTÃO DOS CRITÉRIOS ESTÉTICOS

 

 

            A reflexão atual sobre a arte consagra parte de seus esforços em resolver esta tensão entre a "lógica cultural" e a "lógica estética", entre a aceitação passiva dos feitos do sistema cultural e a vontade de legitimar a apreciação e os julgamentos aos quais se expõem as obras.

            Já fizemos alusão ao gesto provocador e iconoclasta de Marcel Duchamp desde o início do século XX: expor, em uma galeria de arte, um objeto já pronto, um ready-made, estilo roda de bicicleta, pente, porta-garrafas, ou o máximo: um urinol. Dito de outro modo, nada que não solicite realmente o sentido estético. Duchamp declara-se anartista, hostil à pintura que define como retiniana, pintura de cavalete, suspensa nas molduras e destinada a mobilizar o olhar unicamente.

            É, bem entendido, perfeitamente consciente da blasfêmia: "Meu urinol partia da idéia de fazer um exercício sobre a questão do gosto: escolher o objeto que tenha a menor chance de ser amado. Um urinol, tem pouca gente que acha isso maravilhoso. Pois o perigo é o deleite artístico. Mas, pode-se fazer as pessoas engolirem qualquer coisa; foi o que aconteceu." Efetivamente, "aconteceu", se bem que por uma curiosa ironia da sorte, gerações de artistas e amadores chegaram desde 1917, a deleitar-se com o não-deleitável.

            Há múltiplas interpretações do gesto de Duchamp. Deve-se, então, limitar-se às que nos interessam e que se atém a poucas palavras. Esqueçamos a vontade do artista de questionar um modo de representação pictórica solidamente ancorada na cultura ocidental, sobretudo desde o Renascimento. Esqueçamos também a armadilha colocada na instituição artística, e a resposta dessa instituição que, finalmente, se presta ao jogo.

            Restam traumatismos e seqüelas do que parece ainda sofrer nossa época. O ready-made coloca de fato a questão da definição da arte: nada ou quase nada de início, um objeto banal ou trivial se transforma miraculosamente em "obra de arte" pela graça do batismo do "artista" e da "confirmação" da instituição. O milagre deve-se a pouca coisa: basta deslocar as fronteiras da arte. Não se pergunta mais: "O Que é a arte?" Mas como diz Nelson Goodman: "Quando há arte?", a partir de que momento e em que condições opera-se a transmutação?

            De fato, o problema está aqui mal colocado. Não há transmutação nem conversão do ready-made em objeto de arte mas simplesmente erupção no campo artístico de uma ação inédita, do tipo Dada. A implicação do mundo da arte transforma esta falácia em brincadeira séria.

            De fato é. Pois este ato sacrílego - ou dessacralizante - tem por conseqüência um abalo de todos os critérios clássicos que servem habitualmente para julgar e criticar uma obra, ou mais geralmente como objeto de arte. Não é espantoso que o século XX terminando, já perturbado pelo desaparecimento dos critérios modernos ou vanguardistas e o ecletismo pós-moderno, considere Duchamp - erradamente - como o grande responsável pela decadência da arte contemporânea.

 

            Que soluções propor para a decadência dos critérios estéticos? Três apresentam-se evidentemente ao espírito: restaura-se os critérios antigos, substitui-se a obrigação de julgar e avaliar pela imediatez e espontaneidade do prazer estético ou pesquisa-se novos critérios.

            A revalorização dos critérios tradicionais coloca problemas insolúveis. Que tipo de critérios? Tomados de que época? Antiga, clássica, romântica, moderna?

            As normas e convenções estéticas exprimem a sensibilidade de uma sociedade em dado momento; não são entidades abstratas que se pode levar como quiser na história. Ir adiante é provar uma nostalgia pelo passado, às vezes respeitável, mas inapta para compreender a evolução da arte. A menos que já não seja, nela mesma, um julgamento, implícito e desfavorável, sobre a arte contemporânea.

            A segunda solução consiste em erigir o prazer e o gozo estéticos como critérios de qualidade ou de sucesso de uma obra. Essa atitude não é nova. Remonta ao século XVII e lembra os intermináveis debates sobre o gosto, entre os partidários do sentimento e os defensores do julgamento fundado na razão. Todo mundo concorda facilmente com reconhecer que a falha insuperável de uma obra de arte é de suscitar a indiferença ou o aborrecimento. Deve-se, portanto, dizer que prazer vale julgamento?

            Certo, resolve-se o problema dos critérios [irreconhecíveis], especialmente para a arte contemporânea. Elimina-se a questão do julgamento, da avaliação, da hierarquia de valores, pedra angular da estética. Mas simplifica-se ao extremo a noção de prazer. Freud bem mostrou que o domínio do prazer e do gozo estéticos apresenta a mesma complexidade que o gozo erótico: tanto um quanto o outro é ambivalente. Isso significa que o gozo e o prazer guardam boa dose de seus contrários, assim como o ódio é amigo-inimigo do amor.

            Além disso, pode-se dificilmente admitir que o prazer seja uma espécie de dado em estado puro na obra de arte. Uma obra de arte agrada-me! Mas o prazer que sinto, sou eu que o elaboro em função do meu temperamento, do despertar da minha sensibilidade para a arte e de minha educação. O prazer, nada específico à esfera estética, não é um critério de qualidade artística. Que seja um dos múltiplos elementos do julgamento, pode ser, mas ensina-me muito mais sobre mim mesmo do que sobre a obra a qual estou confrontado.

            Enfim, o prazer não poderia indicar o que quer que fosse da qualidade artística da obra. O prazer sentido pela leitura de um romance policial ou por um espetáculo de um filme destinado a divertir não incita, portanto, a julgar que se trata de obras-primas, nem mesmo obras de arte. Ao inverso, pode acontecer que uma coreografia moderna, desconhecida para meu gosto ou então uma pintura realista e crua acabem por forçar a minha atenção a despeito de qualquer atração espontânea. Tudo aqui é questão de nuances, e são essas diferenciações, às vezes sutis, que permitem considerar a estética - o que, aqui, agrada aos sentidos - e ao artístico, que supõe um mínimo de objetividade.

            A terceira via orienta-se para a definição de critérios estéticos específicos às obras contemporâneas. Concebe-se sem pesar a dificuldade desse tipo de pesquisa. Os critérios, vimos, são expressão de uma situação histórica e social particulares. Não existem critérios atemporais imutáveis que permitam apreciar nas mesmas bases um quadro de Botticelli e uma obra de Francis Bacon, a música de Palestrina e a de Ligeti.

            Se se atém absolutamente a falar de critérios, é preciso então procurá-los não em uma esfera transcendente qualquer, a-histórica, mas na obra mesma. Admitir-se-á, por exemplo, que é difícil considerar como obra de arte bem sucedida, e ainda mais como obra-prima, um objeto suscetível de passar desapercebido. Assim como uma composição pictórica, musical ou literária incoerente, elaborada de modo arbitrário, totalmente aleatória, a partir de materiais e formas justapostas de modo heterogêneo, impõe-se raramente como obra de arte... Salvo se esta incoerência deve-se a um procedimento intencional e inscreve-se em um projeto coerente do artista, tal como a escritura automática dos surrealistas.

            A "obra de arte" designa habitualmente um objeto, uma ação, um gesto que apresenta um mínimo de lógica e de rigor no seu procedimento. Contrariamente ao preconceito corrente, as obras de arte não se perdem nesta falta de nitidez artística ou estética que serve muito freqüentemente para depreciar a arte aos olhos dos cientistas.

            Pode-se dizer que o gesto do escultor, a técnica contrapúntica, o toque do pintor, a escritura poética, a regragem coreográfica, o gestual do ator são desprovidos de precisão? Censura-se ao Traité d'harmonie de Schönberg, ao Clavecin bien temperé de Bach, ao Traité de la peinture de Leonardo da Vinci, às Demoiselles d'Avignon de não serem claros? Até o primeiro ready-made de Marcel Duchamp, se é "qualquer coisa", não está em qualquer lugar, em qualquer tempo, não importando como!

            Mas as obras citadas aqui produziram, sobretudo, critérios mais que obedeceram à modelos pré-estabelecidos. Como dissemos antes, são as obras de arte que engendram os critérios e não o inverso. Todas as obras de arte não são obras-primas. Quando se tornam significa que souberam transgredir as normas em vigor na sua época. Mas isso, só o tempo pode provar.

            Aplicada à arte contemporânea, a questão dos critérios aparece então como um falso problema. Imaginemos um critério aparentemente indubitável como o evocado acima: o caráter racional da obra. Quem me diz que este critério é e será sempre o bom? Qual é o critério do critério, e assim sucessivamente? Não valeria mais dizer que o aspecto "lógico" é, ele também, um dos parâmetros entre outros de uma obra. Certo, é importante porque constitui um elemento de inteligibilidade e de compreensão da obra. Permite a análise crítica e a interpretação e logo o discurso conceitual comunicável ao outro.

            Todavia, esse parâmetro não diz nada sobre a qualidade da obra. Vale o que valem a técnica, a profissão e o saber. Úteis para distinguir o charlatão do verdadeiro artista, não são esses critérios nem necessários nem suficientes: quantas obras não resultam de um evento contingente, de um acidente, às vezes de um gesto imprevisível como o que conduziu o artista americano Jackson Pollock a "inverter" a técnica do dripping [gotejar, molhar, ensopar]! Quantas obras, em revanche, nasceram de um profissionalismo rigoroso, realçando o indizível aborrecimento do dever bem feito?

            Pode-se admitir que nas obras mais desconstruídas, mais extravagantes reina uma ordem oculta, ligada ao inconsciente, ao jogo das "pulsões primárias" como demonstrou o psicólogo Anton Ehrenzweig[6][7]. Entretanto, mesmo essas pulsões não resultariam, com freqüência, como Freud também mostrou, de uma pequena desordem... na origem?

 

 

O DESAFIO DA ESTÉTICA

 

 

            Nenhuma teoria estética dispõe hoje de guia que permitiria atribuir infalivelmente as estrelas do mérito às obras, na maior parte, a espera de interpretação. No fim do século XX, a filosofia da arte é obrigada a renunciar a sua ambição passada: a de uma teoria estética geral abarcando o universo da sensibilidade, do imaginário e da criação.

            Não se pode estar ao mesmo tempo na janela e se ver passar na rua, dizia Auguste Comte. Ao mesmo tempo perto e longe das obras, a estética encontra-se nesta situação; ela apenas pode lastimar não ter o dom da ubiqüidade [onipresença]. Imersa na sua época, é legítimo que sonhe em realizar uma outra universalidade que a proposta pelo sistema cultural; legítimo, também, que tente elaborar critérios livres dos imperativos do mercado de arte, da promoção pela mídia e do consumo.

            Sua tarefa parece então com a de Sisyfe: exumar uma obra desaparecida por anos de indiferença e esquecimento ou proceder para a valorização de um artista contemporâneo, é também correr o risco da sua próxima integração ao universo indiferenciado dos bens culturais. Este risco seria suficiente para obrigá-la a renúncia? Seria esquecer que a estética é caso de "distância conveniente[7][8]". Próxima demais da "mundanidade", contenta-se em aspirar o ar da época; cede aos modos efêmeros e renuncia a sua vocação filosófica que é de ver "além". Longe demais da realidade, afunda-se na especulação abstrata.

            A visão correta? Basta acomodar o olhar sobre proposições de artistas e reter seu convite a viver intensamente uma experiência em ruptura com a cotidianidade. Estas proposições podem intrigar, chocar, desviar, angustiar, às vezes também, entusiasmar e maravilhar. A tarefa da estética consiste precisamente em dar uma extrema atenção às obras a fim de perceber "simultaneamente todas as relações que estabelecem com o mundo, com a história, com a atividade de uma época[8][9]. Religa-se, então, com a exigência de Kant: sair da solidão da experiência individual, subjetiva, e abrir esta experiência, senão a todos, ao menos ao maior número.

            Baumgarten já pressentia que a estética era uma "ciência" particular. É dizer pouco! Como toda ciência, ela evolui em função de seu objeto. Mas, ao inverso, deve sempre esperar ser ultrapassada por ele. Na realidade, ela não espera jamais; faz-se sempre surpreender pelas rupturas e choques intempestivos da criação artística.

            Lembra-se da alternativa colocada por Friedrich Von Schlegel: ou a arte, ou a filosofia. Não é proibido pensar que a estética deve-se reconciliar em permanência uma a outra. Como toda disciplina, ela se constrói sobre a base das dificuldades que encontra mas também das solicitações das quais é objeto. Nos dias de hoje, estas solicitações resultam precisamente do desespero causado por uma crise da qual agrada dizer que é sem equivalente na história. Como se nossa época devesse gozar o privilégio da originalidade! Mas nem a estética, nem a filosofia têm por vocação repetir periodicamente a oração fúnebre da arte, dos critérios, da crítica, dos valores, dos ideais perdidos ou momentaneamente perdidos.

            A estética toma partido se responde às demandas crescentes de interpretação, de elucidação e de sentido; demonstra-se que circular nos parques de atrações da cultura é agradável, mas é mais importante ainda que a cultura circule em cada um de nós.

            Desde os Tempos modernos, a filosofia teve que fazer seu luto da metafísica, da verdade, do Ser, da ciência, das grandes ideologias, das utopias da modernidade; do homem também, que confiou aos bons cuidados das ciências humanas. Mas nunca pôde realmente cortar o laço com a arte. Instrumento pedagógico, argumento teológico, instrumento de propaganda, cópia da natureza, aparência inofensiva, reflexo da realidade, projeção de fantasmas, paixão narcísica, objeto de prazer, meio de conhecimento, a arte sempre foi o joguete da filosofia. A filosofia, todavia, leva esse joguete a sério, talvez, secretamente invejosa do artista capaz de captar num gesto, numa cor, num simples acorde o que o discurso e os conceitos não chegam jamais realmente a exprimir.

            A arte revela-se assim como a questão essencial da filosofia. Bem raros são os filósofos que não entraram no jogo, antes mesmo que a estética nasça um dia da filosofia. E é porque o filósofo da arte não pode, sob pena de desaparecer, acreditar seriamente em uma morte da arte. Ou bem, se acredita, é à maneira de Francis Picabia declarando: "A arte está morta! Sou o único a não tê-la herdado”.





[9][1] In: Le tournant du XX siècle, Le tournant culturel de l'esthétique. Jimenez

[10][2][1][2] Arthur Danto, La Transfiguration du banal. Une philosophie de l'art, Paris, Le Seuil, 1989, p. 160.

[11][3]Ibid, p. 160-161

 

Tradução de Mirian Magda Giannella

 

[12][4] Jean Clair, Considérations sur l'État des beaux-arts. Critique de la modernité,

Paris, Gallimard, 1983, p. 12-13.

[13][5] Charles Jencks, L'architecture postmoderne, Paris, Denoël-Gonthier, 1978.

[14][6] T.W.Adorno, Minima Moralia. Réflexions sur la vie mutilée, Paris, Payot, 1980, trad. E. Kaufholz e J. R. Ladmiral, p.222.

[15][7] Anton Ehrenzweig - L'ordre caché de l'art. Essai sur la psychologie de l'imagination artistique, Paris, Gallimard, trad. F. Lacoue-Labarthe e c. Nancy, 1974.

[16][8] Expressão de Walter Benjamim.

[17][9] .Jean Starobinski, La relation critique, Paris, Gallimard, 1970, p. 195.

 



[1][2][1][2] Arthur Danto, La Transfiguration du banal. Une philosophie de l'art, Paris, Le Seuil, 1989, p. 160.
[2][3]Ibid, p. 160-161
 
Tradução de Mirian Magda Giannella
 
[3][4] Jean Clair, Considérations sur l'État des beaux-arts. Critique de la modernité,
Paris, Gallimard, 1983, p. 12-13.
[4][5] Charles Jencks, L'architecture postmoderne, Paris, Denoël-Gonthier, 1978.
[5][6] T.W.Adorno, Minima Moralia. Réflexions sur la vie mutilée, Paris, Payot, 1980, trad. E. Kaufholz e J. R. Ladmiral, p.222.
[6][7] Anton Ehrenzweig - L'ordre caché de l'art. Essai sur la psychologie de l'imagination artistique, Paris, Gallimard, trad. F. Lacoue-Labarthe e c. Nancy, 1974.
[7][8] Expressão de Walter Benjamim.
[8][9] .Jean Starobinski, La relation critique, Paris, Gallimard, 1970, p. 195.