quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

FRANCIS BACON: imagens do corpo


Francis Bacon:
imagens do corpo humano
Por David Sylvester

Tradução de texto inédito no Brasil, por meu aluno Mavi Veloso (ainda sem correção)


Bacon recentemente sobreviveu após sofrer exposição a dois vastos espaços de museus que poderiam ter sido assassinos – o  Centro Pompidou em Paris e a Haus Der Kunst, em Munique. Eles trouxeram aos trabalhos uma grandiosidade que tendia ser menos manifesta que sua expressividade e vitalidade. Algumas pinturas pareciam possuir uma severidade Matisseana e uma serenidade que não se suspeitava até então. Telas penduradas nas duas áreas de maior luminosidade da mostra de Paris ganharam uma vibração que fizeram Bacon parecer tanto um colorista quanto um dramaturgo: as pinturas acinzentadas/grisalhas do final de 1940 e início de 1950 têm um lirismo apressado; toda a força dos  monumentais trípticos da década de 1970 parecem derivadas de suas qualidades abstratas: o grande tríptico preto representando a morte de George Dyer sozinho num quarto de hotel, um documento sobre a dor – dor do protagonista, dor do artista –, o que ficou mais evidente foi a densidade e contundência das formas quadradas dos marrons e pretos.
Onde o cenário construído em Paris deu uma relativa neutralidade de estrutura modernista às pinturas, os grandiosos espaços neoclássicos em Munique pareciam tanto teatro quanto um conjunto galeria. Poder-se-ia ver um quadro em uma outra sala através de um portal, no qual a imagem estava centralizado, que mais parecia um Velázquez na parede do Prado.


As pinturas que Bacon escolheu, da coleção da Galeria Nacional, para a sua exposição em 1985, na série intitulada O Olhar do Artista, mostraram um forte viés para trabalhos monumentais e serenos como Virgin and Child, de  Massaccio, e  Banhista, de Seurat. Havia uma natureza morta e uma paisagem de Van Gogh, mas não havia nenhuma pintura figurativa que fosse expressionista ou mesmo vigorosamente dramática: Serpente de Bronze, de Rubens, era uma das possíveis na lista mas foi eliminada. Outro artista esquecido no final da lista – o qual teria se encaixado bem – era Raphael. Foi deixado de fora por não haver nenhum exemplo particular de que Bacon adorasse  suficientemente, mas se a coleção da Galeria Nacional tivesse incluído os desenhos em tapeçaria, que ele frequentemente ia ver no Museu Victoria & Albert, tenho certeza de que A Milagrosa Seca dos Peixes teria sido incluída na exposição.
De repente algo me ocorreu como em uma revelação. No meio da melhor parede, Bacon colocou três ótimos nus: woman drying herself, um pastel de Degas colocado no centro, entre Rokeby Venus de Velázquez e Entombment de Michelangelo. Degas era o casamento de Velázquez e Michelangelo e, deste modo, pintor-chave para Bacon.
Foi uma revelação pela maneira como se criou uma relação artístico-histórico despretensioso,  não por que houvesse alguma dúvida acerca da crucial influência desses três artistas para Bacon. Por exemplo, em Study From the Human Body, 1949, seu mais antigo nu sobrevivente, o tratamento dado à coluna reflete claramente seu fascínio pelo modo como a ponta da espinha, em Woman Drying herself, 'quase sai da pele completamente', nos dando 'maior consciência da vulnerabilidade do resto do corpo'. Em outros aspectos este nu em particular é menos parecido com um Degas que muitos outros  nos quais o resultado é mais manchado, atmosférico e evanescente, menos incisivo, do que em trabalhos posteriores. É maravilhosamente tenro e misterioso na representação do espaço entre as pernas e sua modelagem da parte interna da coxa. O uso do cinza é estonteante. Nenhuma das pinturas de Bacon torna mais desafiadora a questão sobre se ele é primordialmente um pintor pictórico ou um fazedor de imagens. Fica a questão: esse trabalho nos pega pela garganta principalmente pela sua beleza lírica ou por causa da elegíaca pungência do seu sentido de despedida?




Haviam duas imagens de choro que perseguiam Bacon, uma da seqüência de passos de Odessa de  Eisenstein em O Encouraçado Potemkin, a outra do Massacre dos Inocentes em Chantilly de Poussin. O primeiro é o choro do uma babá, seus óculos quebrados e seu rosto fluido de sangue, tentando proteger o bebê no carrinho da infantaria se avançando, a segunda é o choro de uma mãe se interpondo entre o bebê no chão e soldado prestes a golpeá-lo. Ambos os choros são induzidos pela mesma situação – a ameaça da infância por soldados.
Bacon foi filho de um capitão do exército, que por sua vez era filho de capitão e neto de general. Cresceu com medo do pai que o desprezava como um fraco. Tinha uma grande devoção por sua babá, a qual viveu até idade avançada com Bacon, inclusive no tempo em que ele estava pintando esses temas de choro.



Estive dando uma olhada em um livro de mesa (coffee-table book) com retratos de Bacon onde as imagens são reproduções em cores de close-ups de cabeças no tamanho que estas têm nas pinturas originalmente. Fiquei com nojo. Elas parecem resultar numa imposição de danos, uma deformação gratuita e sem piedade alguma, o que não são de fato. Isso pode se dar por que quando vistas em um livro aberto sobre a mesa elas estão muito mais próximas do que quando estão na parede, mas não creio que seja só isso, pois duvido muito que teriam aquele efeito doentio se estivessem em preto e branco. O nojo nasce do fato de que essas reproduções coloridas no mesmo tamanho debaixo de nossos narizes têm uma semelhança forjada com as obras e, com toda a ausência que apresentão do mínimo de alívio e luminosidade próprios da pintura, estão mortas. Algo grandioso se tornou coisa horripilante.



Picasso; Brancusi; Léger, Duchamp e Picabia; Klee, Ernst e Schwitters; Arp, Miró, Calder e Giacometti; Magrite e Dalí; Dubuffet, de Kooning e Guston; Rauschenberg, Lichtenstein, Oldenburg, Warhol, Johns e Koons: todos produziram espirituosas ou bem humoradas obras de arte. O século vinte aprecia que sua arte tenha caráter de piada.
Bacon, famoso por gostar de causar risos em sua vida social, criou uma arte que foi sempre retumbante e solene.
Mas não foi solene sozinho e em silêncio; estava junto com Newman e Rothko, Still e Pollock. Estes quatro contemporâneos de Bacon são agrupados por Robert Rosenblum como os expoentes do  Sublime Abtrato”. O papel de Bacon na pintura de nosso tempo é o de grande expoente do Sublime Figurativo. 



Enquanto Bonnard não é um dos artistas elogiados em entrevistas publicadas de Bacon, minhas anotações de conversas nos anos 1950 mostram que, naquele momento, ele era o pintor do século 20 preferido de Bacon – pelo seu tratamento da tinta. Ele também admirava muito Soutine por sua pintura, porém somente no período Céret.


O trabalho de Bacon não é sociável. Muito frequentemente é exposto ao lado de pinturas e/ou esculturas de Giacometti, o que é razoável sem ser especialmente útil para ambos artistas, e algumas vezes com Balthus também, o que não tem o menor senso. Ocasionalmente é exposto com de Kooning e/ou Guston em trabalhos mais recentes, comparações que não são de todo irrelevantes, mas não são muito iluminadoras, embora estejam melhores assim do que em justaposições com Freud, Andrews ou Auerbach.
O artista que quero ver ao lado de Bacon – apesar da diferença de geração – é Warhol. Mas qual Warhol? Acidentes de carro; a cabeça de Marilyn isolada no meio de uma grande tela; algumas Jackies; algumas das séries de Most Wanted Men e Ladies and Gentlemen; a cabeça de Nelson Rockfeller com uma bateria de microfones; coisas quem mostrem a transfiguração de imagens fotográficas por desfiguração acidental ou aparentemente acidental que não denotem nada, porém sugiram um ótimo trabalho.




Um tríptico de cabeças formando uma espécie de tira trágica culmina na imagem de um homem 'quebrado'. Mas o que transmite essa completa derrota? É algo muito além da cabeça inclinada sobre o travesseira, da curvatura dos ombros, do lamento da boca, da mão sôfrega que se levanta, algo muito além da mímica convencional do desespero. É o modo como a tinta é espalhada manchando por entre os traços do rosto.
A mancha quer dizer desintegração: este rosto já se tornou 'comida para vermes', já se pode ver o crânio logo 'abaixo da pele'. A mancha quer dizer destruição: o rosto está ferido, aniquilado.
A mancha significa obliteração/significa que está desaparecendo: o rosto fica obscurecido pela mão levantada e a mão se levanta num ato de dor, ou para repelir um ataque, ou para se agarrar ao nariz, boca e olhos como num grande esforço para arrancá-los fora, apagando toda sua identidade. 
A mancha significa tudo isso, mas aquilo que envolve esses significados já está presente muito antes que haja tempo para se pensar em significados. Os significados, todos eles, estão na tinta, não de forma latente, mas no impacto que ela causa em nossos sentidos, em nossos nervos.
Nada nessas pinturas é mais eloqüente que a própria tinta.


A discussão anterior do Três Estudos da Cabeça Humana, 1953, primeiro tríptico de cabeças que Bacon fez, foi escrito em 1957 e me parece dizer bem como a pintura de Bacon opera. Mas sua primeira publicação é bastante vergonhosa. Em um tipo de poema-prosa feito de breves, díspares e altamente polidos enunciados (similar ao texto aqui apresentado, porém mais gnômico e encantatório). Uma primeira versão foi publicada em catálogo de uma exposição francesa e uma segunda, logo em seguida, num periódico literário e político no qual foi intitulada 'na câmera', como uma reverência ao ou à? Huis Clos de Sartre. No texto, havia falas como 'Alguém visto em um momento efêmero num mundo sem relógios'.
Por tais excessos fui impiedosamente esquartejado em uma carta de minha amiga Helen Lessore. Helen normalmente tinha modos bastante piedosos, que no entanto escondiam um senso de humor um tanto irritante que nesta ocasião ela liberou. Sua carta se transformou em uma devastadora paródia de meu texto. Um de seus conceitos deu novo significado aos papas, aquelas imagens carregadas de uma figura paternal que poderiam ser vistos como substitutos do pai que Bacon temia e desejava. Em minhas palavras: 'Um daqueles papas está sozinho com um pendão de cordas douradas  pendurado no teto. Seu braço direito levantado, descoberto até o cotovelo. Ele parece estar divertindo a si mesmo enquanto balança o cordão para lá e para cá como um pêndulo.' A paródia sugeria que o cordão era como uma corrente de lavatório.





Por que Bacon persiste, quando faz figuras ou cabeças, em pintar na mesma escala – por volta de três-quartos do tamanho natural? Ele provou no tríptico de 1944, Crucificação, e no Estudo de Um Nu, de 1952-53, – a vista das costas de um homem com braços levantados – que era capaz de trabalhar muito bem com outras escalas, como neste último exemplo por volta de um-oitavo do tamanho natural. E não há dúvidas que seria muito vantajoso, comercialmente, variar escalas.
Teria sido porque ele sentia que pintar era muito difícil em nosso tempo então não queria complicar as coisas mais ainda? Teria sido porque ele não queria sentir a pequenês de ser acomodado?



Bacon sempre afirmou que invejava enormemente o tipo de apoio que Eliot gozava de Pound ao escrever The Waste Land. 'Acho que seria maravilhoso ter alguém que te diga “Faça isso, faça aquilo, não faça isso, não faça aquilo!” e sempre dando as razões. Creio que ajudaria muito... . Eu gostaria muito de ter pessoas que me dissessem o que fazer, que apontassem onde estou errado'.
Bacon pintou dois quadros em parceria com seu melhor amigo, Denis wirth-Miller, nos anos 1950. Mas ele também almejava trabalhar em parceria com um artista que não era tão próximo, Karel Appel, de quem gostava muito. O plano nunca foi além da conversa. Muitos anos mais tarde perguntei a Appel se eles tinham ao menos iniciado alguma pintura juntos. Ele me disse que não porque não conseguiam decidir quem começaria; nas vezes em que decidiam estavam ambos sempre muito bêbados para elaborarem um início.


Há momentos na história da arte em que muitas pessoas estão trabalhando bem, desbravando novos territórios. Os anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial viram a ascensão, como  figuras majoritárias, de Gorky, de Kooning, Rothko, Newman, Pollock, Dubuffet, Giacometti Mark II e Bacon. E me parece que 1945-53 é um dos dois períodos de pico da carreira de Bacon.
O outro, penso eu, envolve a seqüência de uma dúzia de trípticos que ele pintou entre 1970 e 1976, praticamente todos eles estudos de nu masculino, a maior parte retratando George Dyer, alguns deles declaradamente realizados em desejo consciente de exorcizar a dor da morte de Dyer.

Avowedly


No grande tríptico de 1973 retratando, sobre um fundo preto, a morte de George Dyer em seu quarto de hotel, o painel da esquerda fala do fato de que ele expirou sentado no patente/lavabo. E no primeiro tríptico em que Dyer aparece, três vistas do mesmo nu pintada em 1964, o painel da esquerda o mostra sentado na patente.
Esta não é a única circunstância em que parece haver algum tipo de profecia no trabalho de Bacon. No documentário de Martha Parsey, Model and Artist: Henrietta Moraes and Francis Bacon, a modelo fala de Lying Figure with Hyodermic Syringe, 1963: 'Quando Francis pintou uma seringa hipodérmica em meu braço eu sequer tinha ouvido falar em drogas... mais tarde... eu certamente viria a saber o que era uma seringa hipodérmica. Mas ele a colocou no local bons dez anos antes de eu pensar nisso'. Bacon na verdade não pensou na heroína. 'Usei figuras deitadas em camas com seringas hipodérmicas como uma maneira de fixar a imagem mais fortemente dentro da realidade ou aparência. Não ponho seringas por causa da droga que está sendo injetada mas porque é menos estúpido que colocar pregos atravessando o braço, o que seria ainda mais melodramático. Coloco a seringa porque quero cravar a carne sobre a cama'.
Demonstrando a mesma indiferença para implicações práticas de adereços em seus quadros explica a presença de uma suástica no braço de uma figura no tríptico Crucifixion, de 1965, um detalhe que foi amplamente interpretado como tendo algum significado ideológico. 'Quis colocar uma faixa para quebrar a continuidade do braço e para adicionar a cor deste vermelho em volta do braço. Pode-se dizer que foi uma coisa estúpida de se fazer, mas foi feito inteiramente como parte da tentativa de dar uma solução à figura – não no nível de uma interpretação ligada ao Nazi, mas num nível de solução formal'.



É difícil pensar em alguém que tenha pintado mais auto-retratos. Bacon pintou dúzias, a maior parte deles são pequenas telas de sua cabeça. Normalmente três são colocadas juntas formando um tríptico; em alguns casos pode aparecer como uma tela única ou como uma peça de um tríptico junto com cabeças de outras pessoas.
Auto-retratos como um gênero têm sido tradicionalmente cabeças, bustos ou meio corpo, ocasionalmente três quartos, raramente de corpo inteiro. Isto ocorre, em grande parte, porque normalmente são pintados de espelhos. Bacon pintava de fotografias e realizou um número considerável de auto-retratos de corpo inteiro. Iniciando em 1956 – com uma imagem parecendo o Quasímodo de rosto e corpo – ele produziu dezessete. Dentro deste conjunto se inclui Sleeping Figure, de 1974, pintada de uma fotografia sua estirado numa cama de hostipal. Incluídos também estão três itens que na verdade constituem Study for Self-PortraitTriptych, 1985-86. Este parece ter sido realizado como uma espécie de summa de toda a atividade do artista como um auto-retratista. Tais empreendimentos geralmente falham. No entanto, este trabalho me parece não somente uma conquista suprema de Bacon em auto-retratos, mas a melhor coisa que ele fez durante seus últimos quinze anos de vida. situa-se na linha dos auto-retratos de artistas antigos que são como atos impiedosos de auto-reconhecimento e tem uma espécie de grandeza que remete à simplicidade e grandeza natural que Bacon tinha como homem.

Uma lista que Bacon preparou na década de 1950 de quadros que estava planejando pintar era intitulada 'Images of the Human Body'. Naquele período os corpos eram sempre masculinos. posteriormente, algumas vezes, era feminino também.
Os corpos masculinos tendem a ser paradigmaticamente masculinos: extremamente musculosos, com ombros largos e quadris estreitos. Mesmo quando as poses são claramente baseadas em fotografias de Muybrigdge, suas formas são bem menos magras e hirsutas que os modelos de Muybridge; são mais maciços: os homens de Muybridge poderiam ser boxeadores peso meio-médio, os de Bacon são como boxeadores meio-pesado ou cruzadores. Em trabalhos de 1940 e de 50 musculatura parece normalmente derivada de Michelangelo; em trabalhos de meados da década de 60 em diante, derivadas do corpo de George Dyer retratado nas fotografias que Bacon utilizava de John Deakin. Ao mesmo tempo as figuras femininas tendem a ser paradigmaticamente femininas: cheias de curvas e carne. São normalmente baseadas em fotografias de Henrietta Moraes também advindas de Deakin. A falta de interesse erótico nos nus femininos não impediram que essas pinturas fossem tão apaixonadas como os corpos masculinos que o obcecavam.
Visão menos apaixonada do corpo feminino aparece nos seios descobertos de Sphinx – Portrait of Muriel Belcher, 1979. Nenhuma das fotografias conhecidas de Deakin poderia ter fornecido um modelo. Essa imagem da Esfinge ecoa em uma forma mais estilizada in Oedipus and the Sphinx after Ingres, 1983.
Além desses corpos claramente masculinos e femininos, Bacon também pintou um certo número de nus cujo gênero parece incerto. Há seis imagens muito similares existentes que datam por volta de 1960 – quatro em óleo, duas em guache - de uma figura deitada de cabeça pra baixo em um sofá: em todos os casos o corpo é andrógeno, mesmo que tenha um pênis ou não; de fato, enquanto três óleos de 1959 são intituladas Lying Figure ou Recling Figure, a de 1961 é chamada Reclining Woman. Todas elas têm formas que sugerem ter sido baseadas no corpo do artista. Foi por isso, inclusive, com essas imagens em mente, que perguntei a Bacon, na entrevista de 1966 na televisão, se suas imagens eram de algum modo baseadas em seu próprio corpo; ele negou firmemente. Nossa relação, um com o outro, durante a conversa, não é preservada na versão publicada da intrevista, somente no filme, o qual mostra que, enquanto negava, Bacon passava repetidamente seu dedão pra cima e pra baixo na parte interna de seu antebraço. De qualquer maneira, Sleeping Figure, 1974, é uma espécie de auto-retrato e de modo algum andrógeno.
No tríptico Sweeney Agonistes, 1967, quatro figuras inclinadas são andrógenas e duas são quase certamente mulheres. No Tríptico – Studies of the Human Body, 1970, a figura no painel da esquerda é andrógena, enquanto as outras duas são sem dúvida mulheres, e mulheres que não se assemelham à imagem de Henrietta. O rosto da imagem da direita se parece extraordinariamente com Bacon. Além disso, os olhos parecem cegos. Uma imagem vem à mente – a de Tiresias. (Não faço idéia se Bacon via conscientemente essa figura como Tiresias ou como ele mesmo.)
Em The Waste Land, o poema que Bacon sempre dizia estar cheio de ecos, nenhuma das vozes que emergem dos murmúrios, do balbuciar, das lamentações das cenas que mudam rapidamente é mais ressonante que a de Tiresias – 'Eu Tiresias, embora cega/o, latejando entre duas vidas,/homem velho com seios enrugados de mulher...' - que tem um papel de observador imparcial de um encontro sexual que deixa a mulher 'feliz que tenha acabado': 'Eu Tiresias, homem velho com tetas enrugadas/percebi a cena e contei o resto'. Eliot, em suas notas para o poema, diz: 'Tiresias, embora apenas mero espectador e não uma “personagem” de fato, é a figura mais importante do poema, unindo todo o resto... os dois sexos se encontram em Tiresias. O que Tiresias vê, na verdade, é a essência do poema'.
Os dois sexos se encontram em Francis Bacon, mais do que em qualquer outro ser humano que encontrei. Em alguns momentos ele era um dos mais femininos homens, em outros um dos mais masculinos. Ele trocaria entre esses dois papéis tão repentinamente e tão imprevisivelmente quanto um interruptor. Essa dualidade, talvez mais que qualquer outra coisa, era o que fazia com que sua presença fosse tão sedutora, tão persuasiva e fazia com que ele fosse tão peculiarmente sensato e realista em seu modo de observar a vida.

Tradução: Marcos Vinicius Veloso (Mavi)

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