quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Entrevista com BRUNO PALMA: tradutor de Saint-John Perse

SOBRE A TRADUÇÃO DE TEXTOS POÉTICOS:
ENTREVISTA COM BRUNO PALMA

Apresentação
O tradutor Bruno Palma fez duas acuradas e inteligentes traduções de Saint-John Perse (1887-1975). A primeira empreitada foi traduzir Anabase (Anábase), editado pela Nova Fronteira em 1979 (infelizmente fora de catálogo, exigindo uma reedição), e a segunda, Marcas Marinhas (Amers), publicado com extrema competência editorial por Plinio Martins Filho, pela Ateliê Editorial. Vale ressaltar que as duas edições são bilíngües.

Bruno Palma, que há mais de 40 anos tem se dedicado a estudar e traduzir Perse, ganhou o Prêmio Jabuti em 1980 pela tradução de Anábase e, em 1989, foi agraciado com uma comenda do governo francês que reconheceu o seu trabalho de divulgação do poeta francês no Brasil. Recebeu também o Prêmio Academia Brasileira de Letras de tradução de 2004, pela tradução de Amers, de Saint-John Perse.




1-     Jardel: Gostaria de saber, inicialmente, o que o levou a se interessar por fazer traduções?

R: Bruno Palma: A minha geração pôde beneficiar-se de excelentes traduções, seja de prosa, seja de poesia. Eu mesmo, que fiz estudos num bom colégio, pude participar desse trabalho, pois, ao estudarmos latim, fazíamos traduções dos clássicos latinos;  tínhamos francês e inglês, e trabalhávamos também traduzindo, ainda que toscamente, os grandes autores. Na minha formação literária, entrou necessariamente a leitura de obras excelentes, traduzidas por excelentes tradutores. Assim, creio que me veio naturalmente a idéia e o gosto de traduzir textos literários. Realizo, também, há muitos anos, um trabalho de tradução de textos litúrgicos e bíblicos para conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Assim, pude colocar minhas aptidões a serviço de um grande número de pessoas.

2-     Egas Francisco: Depois da grande proeza de recriar em língua portuguesa Amers (Marcas marinhas), uma obra prima da poesia moderna e da literatura francesa, e com isso ganhar, por unanimidade, o prêmio de melhor tradução, concedido pela academia Brasileira de Letras no ano de 2004, você recuou no tempo dentro da obra do próprio Saint-John Perse, brindando-nos com sua preciosa tradução de Eloges, obra datada de 1908 e que apresenta ainda muitos termos usados nas Antilhas francesas de então. Além disso, você recriou em nosso idioma Para Dante, Glória dos Reis, talvez a obra completa do genial poeta. Conhecimento, pesquisa e inegáveis qualidades de poeta levaram-no a tamanha fidelidade?

R: Bruno Palma: A resposta a esta pergunta implica numa reformulação dela: quais são os critérios do que se pode exigir de FIDELIDADE ao texto? Ou o que significa essa FIDELIDADE?
      Eis um grande – senão o maior – desafio ao tradutor de uma obra literária, sobretudo de poesia: o que quer dizer FIDELIDADE? E até que ponto se pode e até mesmo se deve ser fiel? Para mim, que não aprecio o termo “recriação”, por achá-lo presunçoso, a fidelidade é, até certo ponto, relativa. Em primeiro lugar, depende da língua para a qual se traduz, mais do que da língua da qual se traduz. Uma tradução de um autor que escreve numa língua neolatina para outra língua neolatina vai exigir – e possibilitar – uma fidelidade que não podemos pedir de uma tradução dessa obra para o chinês. Em suma, depende do “material” usado para refazer numa outra língua o que o autor fez na sua. Pois é isto a tradução. Dizendo assim, parece sumamente presunçoso, mas é esse o desafio. Ele é acrescido de outras exigências, pois cada autor tem o que poderíamos chamar o seu “idioleto”, a sua maneira peculiar de tratar a sua língua (escolha de um vocabulário específico, ou, como faz Saint-John Perse, um modo de mudar até a sintaxe). Isso exige um conhecimento da obra toda daquele autor, uma atenção ao seu processo de criação, além, é claro, de um conhecimento bastante fundo da língua para a qual se vai traduzi-lo. O conhecimento do que podemos chamar o “projeto” poético de um autor implica necessariamente conhecer suas opções formais (plano da língua) e suas preferências fônicas e rítmicas (plano da prosódia). Traduzir é, de certo modo, um trabalho de “desmontar o brinquedo” e de tornar a montá-lo, perdendo o menor número de peças que se puder.


3-     Jardel: O que determina a sua escolha por certo autor para ser traduzido?

R: Bruno Palma: Situa-se, claro, num plano subjetivo – esse até certo ponto intransferível ou “intraduzível”. Mas há ainda, é claro, algo objetivo: a obra tem valor ou desejo compartilhar meu prazer da leitura com pessoas que não conhecem ou conhecem mal  a língua em que a obra foi escrita. No plano subjetivo, porque esse autor ou essa obra me trazem um grande prazer estético ou interesse no plano da sua visão do homem e do mundo – como é o caso de Saint-John Perse, para mim. Mas se não for objetivamente excelente, não vale a pena traduzir tal obra ou tal autor. As duas coisas se completam. Estou fazendo agora uma incursão na obra de René Chair (prosa e poesia) e acabo de descobrir um admirável poeta e romancista sino-francês, François Cheng, do qual traduzi um livro de poemas, Double Chant.


4-     Jardel: Você aceita a idéia do “tradutor como traidor”? E a idéia do tradutor como recriador? Que reflexão você faz a respeito dessas idéias?

R: Bruno Palma: Todo tradutor é necessariamente um pouco “traidor”, na medida em que ele busca passar um texto para outra língua. A poesia de um autor conserva uma conivência profunda com a língua na qual foi escrita, porque ela é, em grande parte (sobretudo a poesia moderna), um trabalho sobre a linguagem – a língua no dinamismo do seu exercício.  Disse “em parte”, porque, se cada texto só pudesse ser lido na língua na qual foi escrito, toda e qualquer tradução seria impossível. Assim, creio que toda tradução tem um lado de “recriação”, se entendermos o termo de modo criterioso. Não se trata de tentar o impossível, fazendo algo que substitua o original –o que além de tola pretensão, seria inútil. E porque não há tradução absoluta (per-feita, acabada), há sempre lugar para outras traduções. E é o que tem acontecido...


5- Egas Francisco: Contrastes, harmonia e ritmo são considerados antes do sentido lógico, na escolha das palavras ao traduzir a obra de um poeta?

R: Bruno Palma: Eu não poria um antes porque isso se dá concomitantemente: as palavras têm um conteúdo (significado) e um corpo sonoro, que se conecta com os das outras palavras, formando esses ritmos, que são a métrica, a rima, as formas poéticas maiores, até os grandes conjuntos (cantos etc).
      Seria melhor dizer: escolhendo as palavras, o tradutor tem que levar em conta esses outros elementos, nessa harmonia de som e sentido de que fala Valéry.

6- Jardel: Conte um pouco sobre o seu processo de tradução da obra de Saint-John Perse?

R: Bruno Palma: A sua pergunta poderia ser formulada de outro modo: quais são os seus critérios; ou qual é sua “teoria” a respeito da tradução de uma obra poética e qual o resultado possível?
      Creio que minha tradução de AMERS (MARCAS MARINHAS) e as outras que publiquei de 1971 a 1979 (excertos de várias obras e ANÁBASE) dizem melhor o que eu penso sobre tradução e como a realizo. A rigor, não parti de uma “teoria” da tradução, mas de uma experiência de leitura crítica e de frequentação íntima dos textos poéticos e, sem dúvida, de uma “pratica” como tradutor. Ajudou-me também, é importante dizer, a leitura comparativa de boas traduções, embora eu tenha lido muitos livros sobre o problema da tradução. Desde 1958, venho me dedicando a essa tarefa de artesão – paciente, humilde, laboriosa, mas fascinante. O tradutor tem que submeter-se às mesmas exigências que o criador, na medida em que ele é um pouco co-criador da obra poética. Mas nem um nem outro partem de uma teoria da arte poética; ou pelo menos, essa teoria – se há alguma – é posterior a uma prática, a um fazer específico do artista e do artesão. E, como em arte culinária, não bastam receitas e boas intenções. É uma questão de savoir-faire e de sensibilidade aguçada naquele sentido – de “inspiração”, se você quiser e, é claro, de muita... “transpiração”.
      Creio que na tradução verdadeira – fiel ao sentido sensível à música do poema – entra muito de amor pelo texto e de uma espécie de “sexto sentido”, da ordem da simpatia. Aqui, caro Egas, minha consciência crítica me faz dizer que, se sou poeta, o sou indiretamente, por pessoa interposta. Por isso, todo tradutor que não é poeta (como Ivan Junqueira e Dora Ferreira da Silva, por exemplo), é obrigado a ser modesto, ou seja, se quiser, “realista”. Prefiro dizer-me um artesão. O que não me diminui de modo algum.

7- Egas Francisco: Como é entregar-se a tradução um autor chinês, de filosofia taoísta e cultura chinesa, tal qual François Cheng, a quem você acaba de traduzir?

R: Bruno Palma: A resposta é simples: porque entre mim e ele – entre seu caráter especificamente chinês - há a cultura e a língua francesa. É ela que serve de “mediador” entre nossos mundos culturais tão diversos. Sei que respondi apenas a uma parte da sua pergunta, porque a minha leitura de seus poemas, passando pela mediação da língua francesa e da cultura ocidental, não captam provavelmente senão uma pequena parte do seu significado, aquele que lhe vem do background chinês e da língua em que foi pensado, ainda que expresso em francês. Nota-se, às vezes, o afloramento dessa sua raiz, impossível de ser ocultada. E isso eu levei em conta, deixando ao seu texto em português certa “rugosidade”, que não é dificuldade em se exprimir, mas voluntário recurso às suas fontes chinesas.

8- Egas Francisco: Quando publicará seus poemas?

R: Bruno Palma: Sou um autor “bissexto” – como se dizia antigamente dos poetas que eram autores de alguns poemas somente, de freqüência rarefeita como a dos anos bissextos. Talvez venha a publicar meus poemas. Mas isso será apenas mais um exercício de “tradução”, como o é toda e qualquer obra de arte. Por isso, é o original que importa.

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