domingo, 28 de outubro de 2012

FEMEN:
poesia e corpos radicais na contemporaneidade


A melhor poesia feminina atual está sendo criada coletivamente pelo grupo pós-feminista ucraniano Femen. Além da criação coletiva, usa como suporte de suas palavras o próprio corpo feminino, levando ao seu limite lógico a política e a poética dos gêneros. Com isso, tensiona todas as questões que aborda, e aborda todas as questões que quer tensionar, numa radicalidade rara em tempos de poesia irrelevante, regressiva (que o diga o galo da alva) e “alumbrada”.
A foto abaixo mostra um poema semiótico poderoso, em que, para identificar exploração sexual, escravidão e fascismo, usa-se a suástica na forma de dois SS entrelaçados, um da palavra “sex”, outro da palavra “slavery”, criando a síntese verbal-visual “sex slavery [is nazi]”, que é por sua vez reduplicada e explicitada na expressão “is fascism”. Tudo isso formando a moldura negra de um belo e alvo seio feminino, cuja forma se projeta à frente da planura das palavras, não em oferta de si mesmo, mas oferecendo a estimulação do desejo como forma de tensionar a própria mensagem que centraliza. Equilibrando o peso visual desse conjunto de palavras e carne, localizado à esquerda do tórax, uma águia nazista dominando o orbe, o mundo, está desenhada à direita, enquanto tudo é encimado por um rosto anguloso e cerrado de Valquíria loura de olhos claros, a perfeita tradução da mulher ariana, travestida, porém, sexual e politicamente, numa caricatura de Adolf Hitler.
Há uma forte evocação da arte radical do período de Weimar, época de dadaísmo, teatro expressionista e cubo-futurismo, e também do punk dos anos 1970 (Sex Pistols e cia):



A pauta temática do Femen não é, no entanto, politicamente correta, ou seja, não se limita à moldura do aceitável pela etiqueta feminista-esquerdista. Assim, promoveu uma recente manifestação anti-islâmica, por identificar, necessariamente, islã e opressão feminina, alvo central do grupo. Neste caso, o “poema” mais forte, eficiente e provocador era um convite aos muçulmanos para que fiquem nus, se desnudem (“Muslim, let´s get naked”), numa clara polissemia, pois tal nudez se refere denotativamente aos corpos mas também, metaforicamente, à crítica, à análise, ao questionamento, ao desarme, além de pôr em xeque o acobertamento do corpo feminino pela incitação a expor o masculino. Ladeiam e completam o convite polissêmico um neologismo contra o extremismo, “Sextremism”, e a afirmação-equação radicalmente anti-islâmica e irredutivelmente pró-liberdade individual de que “My body is my fredoom”:



Somados, a defesa do “sextremism” contra o extremismo, o convite ao desnudamento do islã e a afirmação radical da liberdade corporal (ou da liberdade corporal radical) põem em xeque qualquer discurso que tente relativizar o sexismo, a intolerância e o patriarcalismo islâmicos em nome da “especificidade cultural”, da “herança colonial”, da “política imperial” ou o que seja. Fica implícito (o único elemento implícito, aliás) que para o grupo Femen qualquer defesa do inaceitável é inaceitável. Se restasse alguma dúvida, diz-se simplesmente “não” à sharia, a lei islâmica (ou talvez não tão simplesmente: note-se a linha vermelha, como um vergalhão, que desce do ombro esquerdo para a palavra “sharia”, culpando graficamente a lei islâmica pelo sangue das mulheres brutalizadas, entre outras coisas, por chicotadas [um dos castigos mais comuns avalizados por tal lei]):



Ecumênico, o grupo também ataca a patriarcal Igreja Ortodoxa Russa. Em uma recente visita do Patriarca Cirilo a Kiev, o velho sacerdote, seu líder máximo, cujo nome em russo é Kirill, foi recebido, em suas longas vestes negras cobrindo o corpo inteiro, por belas mulheres seminuas que traziam pintada no tórax uma mensagem simples, clara e, ao mesmo tempo, tanto metonímica (o nome do líder para referir a instituição) quanto paronomástica: “Kill Kirill” (“Matem Cirilo”). Poesia feminina contemporânea é isso. O resto é confeitaria (ou jardinagem: o caráter feminino atrasado da poesia de Dal Farra, de viés doméstico, além de domesticado, coerente com sua visão regressiva da própria poesia, enquanto isso se manifesta em poemas sobre “Vasos com rosas” [p. 80], que “Ensinam (humildes) o pacífico existir”…).



O que poderia demonstrar de modo mais cabal e irredutível o completo arcaísmo da igreja do que o contraste entre seus homens sisudos cobertos de preto e a modernidade do corpo seminu de uma mulher de jeans com o tórax grafitado? A publicidade da Benetton, tida como das mais ousadas da mídia mundial, sempre buscou esse efeito, mas na publicidade da Benetton isso nunca passou de um efeito. Aqui, tudo é real. Não por acaso, a igreja também está no centro de uma ação recente de outro grupo feminino eslavo, o coletivo russo Pussy Riot (cujo nome significa algo como “desordem vaginal”). Três de suas integrantes invadiram, em março de 2012, a Catedral de Cristo Salvador em Moscou, em protesto contra as eleições presidenciais russas, que culminaram com a previsível reeleição de Putin. No altar, cantaram um punk rock em que pediam à Virgem Maria para tirar Putin do poder, além de acusar o Patriarca Cirilo (o mesmo Kirill que o Femen quer to kill) de crer mais em Putin do que em Deus (foram presas e condenadas a dois anos de prisão por “desordem e incitação ao ódio religioso”; sim, aqui tudo é real).
A maioria dos membros do Femen, invertendo o uso e o abuso pela mídia e pela publicidade do corpo feminino como instrumento comercial, é de belas mulheres jovens, magras e de cabelos longos, como Sonia Shachko:



Mas o teatro político-poético do grupo vai além. Evocando mais uma vez a linguagem de Weimar e dos Pistols, num protesto contra a organização futebolística europeia, a UEFA, e contra a polícia de Putin (cada aparição do grupo é uma criação semiótica tematicamente dirigida), que o grupo chama de KGB, uma matrona tem a parte de baixo do corpo vestida como um policial, o tórax exposto com dois grandes seios maternais e a cabeça masculinizada de Adolf Hitler, cercada por beldades seminuas cujos rostos estão cobertos por balaclavas das forças especiais, enquanto ostentam longos cacetetes negros. A manifestação, por ocasião da final da Eurocopa em Kiev, de um lado dizia ironicamente para a UEFA respeitar a KGB (“Respect KGB UEFA”), e, de outro, afirmava ambiguamente ser a própria UEFA uma KGB que se acata (outra leitura da mesma frase), pois o grupo considera que a organização não dá importância ao aumento da prostituição e mesmo do tráfico de mulheres associados aos seus grandes eventos internacionais. Em todo caso, havia também um texto não ambíguo: “Fuck KGB”.



O grupo não respeita nenhum tema, logo, aborda todos. As questões do mundo contemporâneo não o intimidam, ao contrário, o incitam. Uma de suas criações mais sinteticamente expressivas explora a outra parte, ou contraparte, de sua marca registrada e constante icônica, os seios nus: ou seja, as calcinhas. Para se manifestar contra a possível proibição, no Brasil (há uma seção brasileira do grupo, que, coerentemente, se internacionalizou), do parto caseiro (não pela mitificação de classe média pseudomoderna do “parto natural”, mas pela liberdade de escolha e corporal feminina), criaram uma cena com mulheres de calcinhas ensanguentadas parindo bonecas, expondo ao mesmo tempo o mênstruo, sempre ocultado (que aparece em falsa e anódina cor azul em todas as propagandas de absorventes), e o que a ele se relaciona diretamente, ou seja, a gestação e o parto, com seus fluidos corpóreos. Ao mesmo tempo, as bonecas servem de suporte à afirmação-equação em duas partes: “Nasci livre”, [logo] “Sou livre”:



Em seguida, com as bonecas dispensadas e as mulheres em pé, as calcinhas ensanguentadas fazem um giro semântico e passam a significar estupro, associadas às palavras “Violação não”. Arte performática é isso, o resto é “conceito”, arte “abstrata”.



A poética do grupo Femen, centrada em palavras que fazem, muitas vezes, um uso poderoso da linguagem propriamente poética (“Kill Kirill”), ou fundem ao corpo uma palavra de ordem, que se torna corpórea e organicamente articulada (“No sharia” pintado em pele feminina), junto ao uso motivado das demais variáveis do suporte, ou seja, o corpo feminino seminu e suas implicações e contradições (apelo sensual e rejeição radical ao sexismo através do “sexismo extremista”, ou “sextremism”, do próprio grupo), é, além disso, criada para e com a mídia, isto é, incorpora, “sequestra” a mídia para sua realização poético-política e para sua divulgação, que se fundem e se confundem, resolvendo assim o eterno problema moderno do divórcio entre o poeta e o público.
A alienação letrada e confeitada de que Dal Farra é apenas um exemplo entre muitos, e que domina a poesia brasileira contemporânea, não é uma inevitabilidade de um tempo de confusão e caducidade cultural e estética, portanto, não tem nessa confusão e nessa caducidade uma defesa ou uma justificativa. Tempos confusos exigem da arte, não devaneios ou alumbramentos regressivos e negacionistas (da confusão cultural e de suas dificuldades), mas clarezas radicais ou radicalismos claros, que usam, contra a gosma do confuso, a cortante fuga para frente. A força poética e política do Femen (no último caso, não quanto aos resultados, mas quanto às tensões e intenções) tornam a poesia de gênero, feminina ou outra, assim como a poesia em geral que hoje se pratica, um rançoso e natimorto neoparnasianismo, poesia de gabinete para gáudio do autor e de seu grupo, imersa em lamúrias pela indiferença do público e pela dureza indiferente do mercado, além de compensatórias autocongratulações intragrupais (incluindo as dos prêmios literários). A essa poesia anêmica, a essas lamúrias lânguidas e a essas congratulações pálidas responde o curto e cortante grito agudo e metálico de uma antiariana valquíria seminua e sextremista: Fuck! Kill Kirill! Kill!

Publicado na íntrega em:
http://sibila.com.br/cultura/a-farra-do-alumbramento-poetico-incluindo-como-fazer-diferente-ou-femen/8207

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