terça-feira, 23 de outubro de 2012


Leonardo da Vinci: de artesão a artista

 

O interesse de Leonardo pela matemática está ligado, entre outras coisas, à alta estima de que gozavam as ciências exatas. Investigações semelhantes para se estabelecer um fundamento “científico” das artes plásticas, tinham já sido feitas na Antiguidade: por intermédio da racionalidade das medições, as artes plásticas podiam aproximar-se do “logos”.

Foi no âmbito desta tradição que se situaram tanto os artistas quanto os teóricos do Quatrocentos, quando tentaram atribuir à arte o estatuto superior das ciências exatas. Assim, nos dois primeiros livros do seu tratado de pintura (1435), Alberti propaga a ideia do fundamento “científico” da pintura. Também Lucca Paccioli, na sua Summa Aritimetica (1494), saúda os esforços dos artistas para conseguirem uma exatidão matemática na pintura, saudando os esforços dos artistas cujo mérito era trabalhar com a ajuda da régua, do compasso, da geometria, da aritmética e da perspectiva. Cesare Cesariano sublinha que o estudo das medidas exatas e das simetrias dos edifícios antigos conduz à glória e ao reconhecimento.
O próprio Leonardo avança argumentos em favor de uma valorização da pintura por meio da matemática. Ainda no século XVI, recomendava-se o enobrecimento da pintura por intermédio da aritmética e da geometria. A mesma ideia de elevação das atividades artísticas por meio das ciências exatas marca o trabalho de medição do corpo humano, iniciado por Leonardo em 1489.
 
 

No início de sua carreira na oficina de Verrocchio, a formação de Leonardo não tivera a menor característica “científica”, era antes mais de ordem prática e artística. Foi a esta formação prática que Leonardo atribuiu a responsabilidade de ser um “uomo senza lettere”, isto é, uma pessoa “inculta”, não formada nas artes “livres” (artes liberales), ou seja, as ciências que, desde a Baixa Antiguidade, constituíam o fundamento da cultura superior: o trivium: gramática, dialética, retórica, acrescido do quadrivium: aritmética, geometria, astrologia, música. A sua própria formação, essencialmente autodidata, em ramos tradicionais da ciência (como geometria e gramática latina), só foi iniciada por Leonardo em 1480 em Milão.

Para compreender a vontade de Leonardo de ascender a uma cultura superior, convém ter uma noção clara do estatuto social das artes plásticas no século XIV. Durante o Quatrocentos, as artes plásticas eram consideradas pelos letrados quase unicamente um ramo da ars mechanica, ou seja, não como artes “livres”, mas como artes associadas ao artesanato. No século XV a pintura não fazia ainda parte das artes liberales, e gozava frequentemente de menos consideração do que a arte poética. Dada esta situação, não é de admirar que Leonardo tenha se esforçado por ascender ao reconhecimento graças ao estudo teórico e científico. Uma razão concreta é, evidentemente, a concorrência com os literatos, que gozavam de mais elevada consideração na corte de Milão.
 
 

Francesco Puteolano, em tradução de uma obra elegíaca a Sforza, insiste na superioridade da criação literária sobre as realizações das artes plásticas, referindo-se explicitamente ao fato de príncipes e generais célebres do passado – Alexandre, Júlio César- terem sido imortalizados, não por intermédio de obras monumentais mas pelo trabalho de escritores e historiadores. Esses heróis não continuam presentes na memória da posteridade por meio de estátuas ou de quadros, que de modo geral se degradam, mas por meio de pequenas obras escritas.

Talvez por reação a estes argumentos, Leonardo pede ao humanista Piattino Piatti que componha poemas à glória do futuro monumento eqüestre a Sforza. As explicações de Puteolano são o sinal claro de uma rivalidade aberta entre artistas e literatos na corte de Milão. Ao ver seu estatuto social como artista em causa, Leonardo formula seu Paragone. Composta em 1492, as passagens que abrem o Trattato de Pittura constituem violenta diatribe contra os poetas e os literatos, que puseram em dúvida o valor da memória das artes plásticas. Leonardo compara-os a animais selvagens (bestie) e insurge-se ao mesmo tempo contra a classificação da pintura na categoria inferior das ars mecanice. É neste contexto que Leonardo acha conveniente aplicar esforços intensos na fundamentação científica das artes plásticas.

 

“A pintura é poesia muda, a poesia, pintura cega”.  
                      (Leonardo da Vinci)
 
 

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