terça-feira, 23 de outubro de 2012



Arte e Moralidade (1925) 

D. H. Lawrence
(Tradução de Tiago Seixas Themudo)

 

Segundo o discurso ordinário, é óbvio que “a arte é imoral”. Vejam só, por todos os lados, estes artistas que correm para vestir qualquer lingerie escandaloso, para se depravar ou, pelo menos, se débourgeoiser.[1][1]

Pois se supõe que o burguês seja a fonte de toda moralidade. Quanto a mim, descobri que os artistas são moralmente bem mais bagateleiros.[2][2]

De qualquer forma, o que um pote de água e seis maçãs em equilíbrio instável sobre uma toalha amassada tem a ver com a moralidade burguesa? E, no entanto, percebo que muita gente que não conhece as artimanhas dos supostos amadores da arte experimenta uma real repugnância moral por uma natureza morta de Cézanne. Acham que ela não é boa.

De fato, para estas pessoas, ela não é boa. Mas como podem sentir ser a arte sutilmente “imoral”?

Exatamente o mesmo desenho, se fosse humanizado, se a toalha fosse um nu coberto, e o pote de água um nu meio coberto, chorando sobre aquele que está coberto, tornar-se-ia imediatamente extremamente moral. Por quê?

É talvez através da pintura, mais do que através de qualquer outra arte, que se pode apreciar a sutil distinção entre aquilo que,  confusamente, se sente ser moral e aquilo que se sente ser imoral. O instinto moral do homem da rua.

Mas o instinto é sobretudo um hábito. O instinto moral do homem da rua é, em grande parte, a defesa emotiva de um velho hábito.

O que, então, numa natureza morta de Cézanne pode despertar a agressividade do instinto moral do homem da rua? O que, em seis maçãs e um pote de água, chega a incomodar este velho hábito do homem?

Um pote de água que, ainda por cima, não se parece muito com um pote de água; maçãs que não são muito maçãnescas, uma toalha que de toalha não tem muita coisa. Eu mesmo poderia fazer melhor!

Sem dúvida. Por quê, então, simplesmente não se classifica o quadro como uma tentativa frustrada? Por quê esta cólera, esta hostilidade? Esse ressentimento ridículo?

Seis maçãs, um pote de água e uma toalha não poderiam sugerir uma conduta inconveniente. Eles não a sugerem, mesmo para um freudiano. Se fosse o caso, o homem se rua se sentiria então bem mais à-vontade.

Por quê, então, há imoralidade? Pois ela existe, isto é certo.

 

É por causa de um hábito bastante curioso contraído pelo homem durante séculos de civilização, e agora bem mais enraizado. O velho hábito de ver exatamente como vê o aparelho fotográfico.

O objeto refletido pela retina, vocês dirão, é sempre fotográfico. Talvez, mesmo que eu duvide. Mas qualquer que seja a imagem da retina, ela raramente é, mesmo atualmente, a imagem fotográfica do objeto, realmente registrada por aquele que vê o objeto. Ele não vê, mesmo hoje em dia, por ele mesmo. Ele vê o que a Kodak lhe ensinou a ver. E o homem, o que quer que faça, não é uma Kodak.

Quando uma criança vê um homem, que impressão ela registra? Dois olhos, um nariz, uma boca cheia de dentes, duas pernas, dois braços bem retos: uma sorte de hieróglifo utilizado pela criança humana ao longo dos anos para representar o homem. Pelo menos era este o velho hieróglifo utilizado quando era criança.

Mas será isso o que a criança na realidade? Se entendemos que “ver” é registrar conscientemente, então é isso que efetivamente a criança vê. A imagem fotográfica está lá mesmo, sobre a retina. Mas parece que a criança a deixa lá, como que por trás da porta.

Durante séculos e séculos, a humanidade tentou registrar a imagem sobre a retina tal como ela é: nada de glifos nem de hieroglifos.[3][3] Nós queremos a realidade objetiva, real.

E nós conseguimos. E assim que conseguimos, como prova de nosso sucesso, a Kodak foi inventada. Uma caixa preta onde não entrou nada que a luz não tenha feito sair mentiras? Impossível! É preciso a vida para a mentira.

Também a cor, que o homem primitivo não podia ver realmente, nós a vemos hoje; ela está adaptada ao espectro.

Eureca! Nós a vimos com nossos próprios olhos.

Se virmos uma vaca vermelha, é uma vaca vermelha. Disso temos certeza, pois a infalível Kodak vê exatamente a mesma coisa.

Mas suponhamos que tenhamos nascido todos cegos e devêssemos, para conseguir representar uma vaca vermelha, tocá-la, cheirá-la, escutá-la mugir e “senti-la”? Que espécie de imagem dela formaríamos em nossos espíritos tenebrosos? Uma imagem bem diferente, certamente!

Ao mesmo tempo em que a visão evoluiu no sentido da Kodak, a idéia que o homem faz de si mesmo se desenvolveu no sentido do clichê. O homem primitivo simplesmente não sabia aquilo que ele era: ele permanecia sempre meio na sobra. Mas nós aprendemos a ver, e cada um de nós possui uma idéia-Kodak completa de si mesmo.

Você tira então uma fotografia de sua namorada num campo florido, sorrindo carinhosamente à vaca vermelha e a seu novilho, oferecendo-lhe intrepidamente uma folha de couve.

Deliciosa e tão “verdadeira”. Sua namorada, realmente ela, gozando de uma sorte de realidade objetiva absoluta: completa, perfeita, na moldura que lhe convém, incontestável. É verdadeiramente uma “imagem”[4][4].

Eis o hábito que adquirimos: de tudo fazer uma imagem. Cada homem faz uma imagem de si mesmo. Ou seja, ele constitui uma pequena realidade objetiva, completa em si mesma, existindo por si mesma, de forma absoluta, no meio do quadro. O resto é apenas moldura, plano de fundo. Para cada homem, cada mulher, o universo é apenas aquilo que sua absoluta pequena imagem envolve.

Eis como se desenvolveu, durante milhares de anos, o eu consciente do homem, depois que a Grécia, em primeiro lugar, quebrou o sortilégio das “trevas”. O homem aprendeu a ver-se a si mesmo. De modo que hoje, ele é aquilo que vê. Ele se faz a sua própria imagem.

Nos tempos antigos, mesmo no Egito, os homens não sabiam ver no primeiro olhar. Eles se debatiam no escuro, sem saber muito bem onde se encontravam, nem o que eram, como homens num quarto escuro que apenas sentem sua existência misturada às trevas de outras criaturas.

Nós, no entanto, aprendemos a nos ver tal como somos, tal como o sol nos vê. A Kodak é testemunha. Nossa visão é semelhante àquela DAQUELE QUE TUDO VÊ: universal. E nós somos aquilo vemos. Cada homem se vê como uma identidade, um absoluto separado, correspondendo com um universo de absolutos separados. Uma imagem! Uma instantânea Kodak num filme universal de instantâneos.

Chegamos à visão universal. O próprio Deus não poderia ver diferente, a não ser de maneira mais larga, como num telescópio, ou mais aproximada, como num microscópio. Mas a visão é a mesma: feita de imagens reais e separadas.

Agimos como se tivéssemos atingido o fundo das coisas e visto a Idéia platônica com nossos próprios olhos, em toda sua perfeição fotograficamente desenvolvida, mantendo-se no centro do mistério do universo. Nosso próprio eu!

Esta identificação de nós mesmo com a imagem ótica que temos tornou-se instintiva; o hábito já vai longe. Eu sou a imagem de mim, o eu que é visto.

E eis que vem alguém nos atrapalhar justo quando estávamos satisfeitos. Chega Cézanne com seu vaso e suas maçãs que não apenas não são semelhantes, mas, sobretudo, mentirosas. A Kodak prova.

A Kodak pode tirar todo tipo de instantâneos: vaporoso, atmosférico, inundado de sol, tremidos, todos diferentes. Mas a imagem permanece a imagem. Há simplesmente mais ou menos sol, vapor, sombra e luz.

O OLHO QUE TUDO VÊ, vê com todos os graus de potência e apreende toda sorte de atmosfera: Giotto, Le Titien, El Greco, Turner, pintores tão diferentes, oferecem ao OLHO QUE TUDO VÊ uma imagem verdadeira.

Mas essa natureza morta de Cézanne é contrária ao OLHO QUE TUDO VÊ. O olho de Deus não veria maçãs, uma toalha e um vaso desta maneira. Elas são, portanto, inexatas.

É que o homem, por ser ele oriundo de um Deus pessoal, herdou todos os atributos da Divindade Pessoal. É o olho-que-tudo-vê humano que é hoje o OLHO ETERNO.

E se as maçãs não se parecem com isso, seja qual for a iluminação, o ângulo ou o humor,  não se deve pintá-las assim.

- Oh, lá-lá-lá! Mas para mim as maçãs são assim! grita Cézanne. Elas são assim, pouco importa ao que se assemelham.

- As maçãs são sempre maçãs! diz a VOX POPULI (Vox Dei).

Às vezes, são um pecado ou uma pancada na cabeça, outras, uma dor de barriga ou uma torta, ou ainda um molho que acompanha o assado de faisão.

 

Ora, vocês não saberiam ver uma dor de barriga, nem mesmo um pecado, quanto mais uma pancada na cabeça. Ou seja, pintar a maçã sob esses aspectos é produzir, precisa ou aproximadamente, uma natureza morta estilo Cézanne.

Deixo a vocês o cuidado de imaginar o que uma maçã pode ser para um menino: uma graúna, uma vaca pastando, Sr. Isaac Newton, uma lagarta, um marimbondo, um atum dançando sobre as águas. Mas AQUELE QUE TUDO VÊ deve ter os olhos do atum, como os do homem.

Eis a imoralidade de Cézanne: ele começa a ver mais do que aquilo que OLHO QUE TUDO VÊ da humanidade pode ver, mais do que a feiticeira-KODAK. Se vocês podem ver na maçã uma dor de barriga e uma pancada na cabeça, e pintá-las não muito mal, é a morte da Kodak e dos filmes: é, portanto, imoral.

Vocês podem muito bem, em seguida, falar de decoração e de ilustração, de forma significante, de valores tácteis ou plásticos, de movimento, de composição no espaço, de relações massa-cor. É como se vocês forçassem seu convidado a engolir o cardápio após o jantar.

O objetivo da arte é, e deve permanecer sendo, mostrar as coisas em suas diferentes relações. Quer dizer que é preciso ver na maçã a dor de barriga, a pancada no crânio do Sr. Isaac, o grande muro úmido que o verme cava para nele depositar seus ovos, e este fruto desconhecido de sabor ignorado que Eva viu na árvore. Junte a isso o aspecto glauco que ela apresenta para o atum emergindo na superfície da água, e as maçãs de Fantin-Latour não te parecerão ser mais do que attignoles envernizadas.

O verdadeiro artista não substitui a imoralidade pela moralidade. Ao contrário, ele substitui sempre uma moralidade grosseira por uma moralidade mais delicada. E quando você percebe uma moralidade delicada, a moralidade grosseira torna-se a seus olhos relativamente imoral.

O universo é semelhante ao Grande Oceano, um fluxo englobando tudo e avançando lentamente. Nós avançamos, com a massa dos séculos. E como nós avançamos sempre, sem saber em qual direção, esse movimento não tem centro para nós. Ele muda a cada instante. A própria estrela polar deixa de indicar o pólo. Allons![5][5] Não há estrada traçada diante de nós!

Não há nada a fazer senão conservar relações autênticas com coisas em relação as quais, entre as quais e contra as quais nós avançamos. A maçã, e também a lua, tem seu lado escondido. O movimento do Oceano o fará voltar-se para nós, ou nos voltará para ele.

O homem não tem nada a fazer senão manter relações autênticas com o universo que o envolve. Um antigo Ramsés pode permanecer sentado, cravado na pedra, livre de todo contato visual, e mergulhado no oceano mudo do contato sensual. O Adão de Michelangelo pode, abrindo os olhos pela primeira vez, ver o grande chefe, lá em cima, de maneira objetiva. Turner pode cair no abismo aberto pelo universo objetivo da luz, até dele não mais se perceber do que os pés desaparecendo. Ao sabor da corrente e cada um segundo suas próprias afinidades, cada um diferentemente: eis como o homem deve atravessar a vida.

Cada coisa, vibrante ou inanimada, segue os “entrelacs[6][6] de seu próprio fluxo singular e nada, nem mesmo o homem ou Deus, nenhum sentimento, pensamento e conhecimento humanos são fixos ou imutáveis. Tudo muda. E nada é verdadeiro, ou bom, ou justo, a não ser em suas relações vivas com seu próprio universo ambiente, com as coisas que também seguem a corrente.

O desenho, em arte, é o reconhecimento das relações entre diferentes coisas, entre os diferentes elementos do fluxo criador. Você não pode inventar um desenho. Você o reconhece, através da quarta dimensão. Ou seja, com seu sangue e com seus ossos, e também com seus olhos.

O Egito mantinha maravilhosas relações com um universo vasto e vivo, secundariamente perceptível a olho nu em sua realidade. O olhar turvo e a potente voz do sangue do Negro africano, mesmo moderno, nos oferece estranhas imagens que nossos olhos mal podem apreender, mas que sabemos ser extraordinárias. A grande estátua muda de Ramsés é como uma gota d’água, suspensa através dos séculos, de forma assustadora, mas nunca imóvel.As estátuas fetiches africanas não têm movimento, movimento visualmente representado.[7][7] E, no entanto, uma única pequena figura de madeira imóvel emociona mais que todo o friso do Parthenon. Ela se situa num espaço onde nenhuma Kodak poderá surgir para fotografá-la.

Quanto a nós, temos nossa visão-Kodak em fragmentos reunidos e saltitantes, como as imagens dos filmes que saltam, mas nunca mexem. Um movimento perpétuo, bombardeado de imagens separadas, de “instantâneo”, quilômetros de instantâneos, todos agitados, mas que quando tomados separadamente são completamente incapazes de movimento ou mudança. Um calidoscópio de imagens inertes mecanicamente agitadas.

E é esta a nossa pretensiosa “consciência”, feita, na verdade, quase unicamente de tais imagens visuais, como o cinema.

Deixemos as maçãs de Cézanne continuar indefinidamente degringolando sobre a mesa. Elas vivem segundo leis que lhes são próprias e em seu próprio ambiente, e não segundo as leis da Kodak... Nem as do homem. Talvez elas tenham alguma relação com o homem. Mas para essas maçãs, o homem não constitui nenhum absoluto.

O estabelecimento de novas relações entre nós e o mundo significa uma nova moral. Experimentem as maçãs anormais de Cézanne, e as maçãs confortantes de Fantin-Latour parecerão os frutos de Sodoma. Se o statu quo fosse o paraíso, de fato seria pecado experimentar novas maçãs; mas como o statu quo é mais uma cadeia do que um paraíso, podemos ficar à vontade.

 

(Calender of Modern Letters. Nov. 1925.)

 

 

         [8][1] Em francês no texto. (N.T.)

[9][2] Aqueles que se apegam a bagatelas, ninharias.

         [10][3] Só pra ficar com a rima mais gostosa! (N. T.).

         [11][4] Por isso a necessidade de um pensamento sem imagem. (NT)

[12][5] Em francês no texto (N. T.)

[13][6] Ornamentos compostos de linhas entrelaçadas. Em português há a palavra atavios, mas que não deixa clara, como a palavra francesa, esta idéia de linhas emaranhadas. (N. T.)

[14][7] O grifo é nosso. (N. T. )

Tradução: Tiago Seixas Themudo 


 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

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