terça-feira, 23 de outubro de 2012


ARTHUR DANTO

E A "TRANSFIGURAÇÃO DO BANAL" [1]

MARC JIMENEZ

 
 

 

            As concepções estéticas de Arthur Danto inscrevem-se também no quadro da filosofia analítica aplicada à arte. Todavia, não se trata mais de elaborar uma teoria dos símbolos mas de dar conta da essência da arte moderna.

            Danto entende responder por outros meios à questão de Goodman: "Quando há arte?" Como explicar, especialmente, que objetos de banalidade tão aflitiva quanto os fac-símiles dos [cartões] de Brillo expostos pelo artista Andy Warhol em 1964 podem ser percebidos como obras de arte, enquanto os encontramos, quase idênticos, expostos em qualquer súper-mercado?

            A resposta é simples: coloquemos lado a lado uma verdadeira caixa Brillo e uma cópia do artista, ou então um urinol funcional e o ready-made de Duchamp. Percebe-se uma diferença "estética"? Não, evidentemente, já que os artistas fizeram tudo para que suas cópias fossem indiscerníveis do original. Conclusão: só a interpretação permite explicar esta "transfiguração" do objeto banal em obra de arte. Esta interpretação escapa totalmente ao profano. Não é espontânea; supõe um público informado, que conhece o meio da arte, e que se deixa ganhar por uma "atmosfera de teoria artística". Danto fala do "clima" criado pelo "mundo da arte". Assim, o iniciado, informado pelo mercado, as mídias, os profissionais, os experts, os críticos titulares, podem empreender a identificação do objeto e reconhecê-lo eventualmente como "obra de arte".

            O procedimento de Danto parece astucioso; mas deixa vários pontos obscuros. Será que é legítimo associar Duchamp e Warhol? Pode-se aplicar o mesmo raciocínio sobre um objeto industrial, "já pronto" - estilo ready-made - , e um objeto fabricado pelas mãos do artista - as caixas Brillo?

            Admitamos que o fenômeno artístico permaneça o mesmo. A comparação entre o objeto não exposto e o objeto exposto é probatória? Danto precisa de fato: "Na minha opinião, uma obra possui um grande número de qualidades que são completamente diferentes das de um objeto que, apesar de materialmente indiscernível dela, não é uma obra de arte. Algumas destas qualidades podem muito bem ser estéticas, ou dar lugar à experiências estéticas[1][2]."

            Questão: que qualidades são estas se não são perceptíveis? Se não são perceptíveis, como afirmar que são diferentes? Em quê reside a diferença entre as qualidades "estéticas" e as qualidade "não estéticas"?

            Danto acrescenta: "[...] mas antes de poder reagir a estas qualidades em um plano estético, é preciso que se saiba que o objeto em questão é uma obra de arte. Então para poder reagir diferentemente a esta diferença de identidade, é preciso que se saiba já fazer a diferença entre o que é da arte e o que não é[2][3]."

            Em resumo: é preciso saber diferenciar para saber diferenciar. Para distinguir um objeto qualquer de uma obra de arte, é preciso que já se saiba qual objeto é uma obra de arte. A solução reside, como vimos, na interpretação... Mas resta compreender de onde a instituição, na origem, tira esta pré-ciência que lhe faz adivinhar qual objeto é obra de arte.

            O embaraço de Danto, que é também o de mais de um visitante de exposições de arte contemporânea, não se atém ao fato de que se conserva aqui a categoria "obra de arte" para aplicar a um objeto que não reivindica nem um pouco esta qualidade?

            Danto, como Goodman, considera como supérfluos e inadequados o julgamento de gosto, a apreciação subjetiva e a avaliação qualitativa. É verdade que, nos exemplos citados, tornariam provavelmente maior a confusão. A interpretação do público é válida unicamente se chega a coincidir ao máximo com a interpretação que o próprio artista dá da sua "obra". Todo trabalho interpretativo consiste em acumular o máximo de conhecimentos sobre o mundo da arte a fim de reduzir ao mínimo a margem eventual de incompreensão entre a intenção do artista e o público.

            Arthur Danto sublinha uma das tendências mais controvertidas da arte do século XX: a que suspende a atribuição da qualidade da obra de arte para ao que se sabe dela, do artista, de seus projetos, de sua inserção no meio da arte. A arte não é nada além do que o que se decide que seja, um puro produto, não mais artístico, mas artificial, produzido pelo jogo da linguagem e da comunicação no interior da instituição artística.

            É verdade, por exemplo, que as "ações" de Joseph Beuys se esclarecem apenas a partir das intenções do artista e de sua vida. La Chaise (1964), Le Costume de Feutre (1970), L'Arrêt du tram (1976) são incompreensíveis para quem não conhece a simbólica dos materiais empregados: graxa, feltro, metal etc. Sem nenhuma informação sobre o sentido desses "objetos", o público veria nisso apenas dejetos, ainda menos dotados - se é possível! - de atrações estéticas como a urinol de Duchamp e os [cartões] de Warhol. Pode-se também, ao inverso de Danto, considerar estes “atos" como provocações: fazendo talvez erupção no mundo da arte, mas, se conseguem entrar na instituição, é com a esperança de abalar os muros e desestabilizá-la. Uma esperança, de resto, quase sempre frustrada.

            Mas, para Danto, esta concepção de uma arte hostil para a sociedade e realidade não pode fazer esquecer que participa apesar de tudo ao "mundo da arte", e que é também, conforme a expressão de Goodman, uma "maneira de fazer o mundo". Trata-se aí de uma interpretação incontestavelmente mais pragmática e realista do papel da criação artística na sociedade ocidental moderna. Resta saber se esta imagem de uma arte reconciliada com o mundo não é justamente a que os artistas se esforçam para confundir em permanência.

            Compreende-se melhor a origem do debate contemporâneo entre a estética analítica, de tradição anglo-saxônica - essencialmente norte-americana -, e a tradição européia cuja estética de Adorno, por exemplo, se quer a herdeira.

            Para uma, não poderia ser questão de representar ao infinito o jogo não decisivo do julgamento de valor, sempre subjetivo, pretendendo à universalidade. Faz valer a função do conhecimento da arte e a possibilidade oferecida de se abrir para o mundo, até mesmo aceitá-lo tal como é.

            Para a outra, ao contrário, a obra de arte guarda elementos históricos e sociais que a estética tem como tarefa explicitar. Não somente a obra "julga", da sua maneira, a história e a sociedade, mas ela mesma é candidata à apreciação e avaliação do público. Um pouco como se este devesse a cada vez julgar a qualidade da prestação artística.

            Estas duas grandes correntes da filosofia da arte são inconciliáveis? A questão não está fechada.

 

 

A CRÍTICA DA MODERNIDADE:

O PÓS-MODERNO

 

 

            A recepção favorável reservada, especialmente na França, às teses de Nelson Goodman e Arthur Danto deve-se muito ao contexto artístico e estético. Uma teoria que neutraliza os julgamentos de valor sobre as obras e outorga prioridade à descrição sobre a avaliação assenta-se melhor em uma época abalada pelo desaparecimento das referências e dos critérios estéticos.

            Desde o fim dos anos 70, e no início dos 80, as críticas dirigidas à modernidade e aos projetos vanguardistas ficaram mais vivas. A moda dita "retrô" já era sintomática de uma recolocação em causa de um sentido da história evoluindo de modo linear para um futuro modernista radiante. A idade da pós-modernidade e do pós-vanguarda entende assinalar o fim da idade moderna e a utopia de uma perfeição inacessível. A época é para o individualismo e para a afirmação de uma liberdade que deixa a cada um o prazer de julgar e de avaliar ao seu grado. Rejeitam-se os critérios e normas estabelecidos pela arte moderna, e torna-se mais conciliador para com as formas e estilos do passado.

            Na França, em 1983, um defensor ardente da arte contemporânea dos anos 60/70, anuncia, como subtítulo da sua obra, uma "crítica da modernidade". O autor constata a distância entre o dinamismo da vida cultural e a decadência das artes plásticas condenadas a se alimentar nas fontes já esgotadas de uma modernidade moribunda: Dada, arte conceitual, pop arte, neo-expressionismo etc.

            É em termos vivos e vigorosos que é feito o retrato aflitivo das "belas-artes": "De um lado, os últimos representantes da pintura abstrata e analítica multiplicam ao infinito as variações sobre o invisível e o quase nada. E para enganar esta penúria do sensível, a glosa inchar-se-á em proporção inversa de seu objeto; mais a obra se fará pequena, mais sábia sua exegese. Uma dobra da tela, um traço, um simples ponto tornam-se pretexto para um extraordinário escrito ininteligível em que se respondem diferentes jargões das ciências humanas [...], aliás, ainda, os devotos da antiarte, sessenta anos depois de Dada, continuam agitando os signos derisórios de um apelo às armas para quem nada responde - nem nunca respondeu[3][4]."

 

            As correntes ditas pós-modernas que se multiplicam no domínio das artes e do pensamento filosófico aparecem, desde então, como remédios salvadores para a crise. Do que se trata?

            O termo pós-moderno encontra sua origem nos debates que opõem, nos anos 60, os arquitetos construtivistas e modernistas, herdeiros da Bauhaus, Walter Gropius, Moholy-Nagy, Mies van der Rohe, Le Corbusier, e uma geração mais recente representada especialmente por Robert Venturi e Charles Moore. Estes entendem reagir ao funcionalismo promovido por seus ilustres predecessores. Eles consideram por demais austero e característico da modernidade dos anos 20-30. Propõem uma arquitetura mais leve, dando mais importância à fachada e aos elementos decorativos. Pela pura função, substituem a "função-ficção simbólica". Agrada-lhes integrar formas do passado, recorrer aos estilos antigos, sem todavia quebrar o caráter funcional da arquitetura.

            Declaram-se então pós-modernos, apesar do caráter rebarbativo deste neologismo. Charles Moore, o arquiteto da Piazza d'Itália em Nova Orleans - um dos exemplos mais espetaculares do pós-modernismo - não gosta da palavra. Se a adota, é somente porque a arte, a moda e a decoração de interiores já se apropriaram dele. Em 1978, Charles Jencks, crítico da arquitetura, declara empregar a palavra pela primeira vez no seu livro L'architecture postmoderne[4][5].

            La condition postmoderne, de Jean-François Lyotard aparece no ano seguinte (1979). A obra da filosofia francesa, elaborada nos Estados Unidos, conhece uma repercussão considerável. O autor explica como as grandes teorias científicas, morais, ideológicas e artísticas do período moderno tendem a se tornar caducas. Os "grandes relatos": conhecem uma crise de legitimidade. Ninguém mais acredita seriamente no tema do progresso da humanidade nem no da emancipação iminente do homem graças às ciência e técnica. Segundo Lyotard, este processo de crise é irreversível. O termo pós-moderno é para ele pejorativo. Não tem nada a fazer, diz ele, com a ideologia da pós-modernidade, nem com as paródias e citações que invadem todas as artes.

            O vocábulo pós-moderno encontra-se, então, afetado por duas significações contrárias. Mas a moda e o espírito da época fazem sua obra. O primeiro sentido ganha. Torna-se sinônimo de crítica da modernidade enquanto Lyotard pedia somente que se reavaliasse a modernidade. Seus protestos contra o amálgama não mudam nada. A época "moderna" é declarada terminada, e a "pós-vanguarda", versão artística da pós-modernidade, propaga-se, na música e filosofia.

            O neologismo "pós-vanguarda", ainda mais que o de pós-modernidade, pode fazer rir pelo fato de sua construção curiosa a partir de dois prefixos antagônicos, "pós" e "avant" [antes]. Ele propõe um "após" ainda que conservando um semblante de nostalgia em relação ao passado. Dá esta impressão estranha de querer predizer o futuro [escovando a história no sentido contrário].

            Esta ambigüidade caracteriza efetivamente as correntes artísticas dos anos 80, especialmente nas artes plásticas: os "anacrônicos" ou "citacionistas" italianos e franceses, consagraram para a bienal de Veneza em 1984, o movimento Trans-vanguarda de Achille Bonito Oliva, os [Novos Faunos] alemães exprimem ao mesmo tempo uma firme vontade de ultrapassar o modernismo e uma grande perplexidade diante do desaparecimento das vanguardas. Os artistas esgotam na memória histórica, justapõem ou misturam de modo eclético estilos heterogêneos em uma mesma obra, abraçam o decorativo, a citação, o folclore em um caos sempre lúdico e humorístico.

            Trata-se de conjurar o medo de entrar na "pós-história" e comemorar no final com um buquê brilhante o fim do espetáculo oferecido pela modernidade? Achille Bonito Oliva parece pensar isto quando declara, em 1980, que o contexto atual da arte é um contexto de catástrofe, "ajudado por uma crise generalizada de todos os sistemas". Este sentimento de crise global afeta tanto a arte, a cultura quanto a economia e a política. Conduz a conceber um fim possível da história. O que não significa evidentemente que a história pare, mas que a única maneira de responder à ausência das antigas referências e à dissolução dos valores tradicionais consiste em extrair dos fundos inesgotáveis da história da humanidade.

            Baudelaire sabia que o pintor da vida estava condenado a levantar o retrato de uma modernidade transitória, fugidia e contingente. Mas esta modernidade não podia ser ultrapassada senão por uma outra modernidade também precária, e assim sucessivamente. O artista da era pós-moderna só tem a escolha da retrospectiva repetida do passado e a aceitação do presente. Livre da utopia modernista é convidado a gozar, serenamente e sem aspirações ilusórias e "futuristas", dos feitos da época atual: "A grande cultura e a cultura comum, declara Bonito Oliva com entusiasmo, operam uma junção que favorece a instauração de uma relação cordial entre a arte e o público acentuando o aspecto sedutor da obra e o reconhecimento de sua intensidade interior”.

            A pós-modernidade não é um movimento nem uma corrente artística. É bem mais a expressão momentânea de uma crise da modernidade que atinge a sociedade ocidental, e em particular os países industrializados do planeta. Mais que uma antecipação do futuro que se recusa a projetar, aparece, sobretudo como sintoma de um novo "mal-estar na civilização". O sintoma desaparece progressivamente. A crise fica: mantém um lugar considerável, hoje, no debate estético sobre a arte contemporânea.

 
 
 

 

A ARTE E A CRISE

 

 

            O sentimento de crise generalizado é próprio a cada fim de século. Todavia, esta impressão é talvez mais forte quando este fim coincide com o do milênio.

            Nada é mais revelador da morosidade ambiente dos anos 90 que os leitmotivs sobre o tema "a arte está em crise, a crise está na arte, o caos está em tudo e tudo está em caos!", que as revistas especializadas e mesmo a imprensa para o grande público fazem eco. Justapor algumas citações extraídas de comentários recentes basta para compor o quadro de um naufrágio: "mercado de arte falido", "instituição falha", "rede cultural opaca", "crítica de arte temerosa", "modernidade ditatorial", "vanguarda terrorista", "mídias recuperadoras", "ensino artístico anêmico", "pintura inexistente", "música contemporânea elitista e confidencial", "artistas charlatões", "Duchamp, pai de uma posteridade desastrosa" etc.

            Mas invertamos este triste quadro e olhemos o outro lado: as instituições públicas subvencionam a criação artística contemporânea e salvaguardam o patrimônio, as empresas privadas multiplicam seu apoio aos artistas graças ao mecenato e ao financiamento, um público zeloso e fiel apressa-se aos festivais e exposições, sem falar do papel crescente das mídias tecnológicas no domínio da experiência estética individual.

            Não teríamos tendência a esquecer que as incertezas, os problemas e exasperações marcam a história da arte? Sobretudo no decorrer dos dois últimos séculos, divididos por rupturas, a sucessão dos "ismos" e os choques repetidos das vanguardas! A crise não designaria o estado permanente da evolução artística, como o da sociedade inteira?

            Qualquer época experimenta este sentimento de estar em um momento decisivo, oscilando entre a nostalgia do "déjà vu" e o desejo do "nunca visto"; período de desconforto e incerteza em que os antigos valores perecidos não foram ainda substituídos pelos novos; instante de desespero tão profundo que "a humanidade projeta inconscientemente seu desejo de sobreviver na quimera das coisas nunca conhecidas, mas esta quimera parece com a morte[5][6]".

            Recordemos Platão caçando, fora da cidade, poetas e compositores de música voluptuosos demais, Le Brun qualificando os coloristas de embrulhões e tintureiros, Carl Maria Von Weber declarando Beethoven "bom para o asilo de alienados" e burgueses que gritavam diante do Le déjeuner sur l'herbe, antidebussystas que vociferavam na avant-première de Pelléas et Mélisande etc. Paremos essa lista interminável de qualquer modo!

            A crise atual, ilusão ou realidade? Duas interpretações enfrentam-se. Parecem tão contraditórias a ponto de mergulhar na maior perplexidade a reflexão estética contemporânea, desesperadamente em busca de uma visão global da situação presente. Mas pode-se formular uma hipótese: perguntar-se, por exemplo, se "crise" e "ausência de crise" não seriam as duas faces do mesmo fenômeno, a saber, o nascimento de um poderoso sistema econômico encarregado da gestão das práticas culturais e artísticas.

            As instituições e as indústrias culturais têm de fato conhecido um desenvolvimento sem precedente no curso das duas últimas décadas. O sistema cultural moderno tem a vantagem de suprimir o antigo antagonismo entre a arte burguesa, sempre elitista, e a arte de massa, reservada ao vasto público. Governado pelo princípio da rentabilidade, distribui ao maior número o máximo de bens culturais e funciona como um gigantesco país de Cocagne onde cada um pode à vontade satisfazer seus desejos e paixões.

            Esse sistema tolerante e laico aceita todas as formas e estilos da arte passada, moderna e contemporânea. Todavia, faz passar para segundo plano as hierarquias de valores e diferenciações estéticas, não por isso se desinteressa do valor das obras. Mas dispõe de seus próprios critérios, conhecidos unicamente pelos experts e especialistas do mundo da arte e só deles. Seus meios promocionais são tais que podem chegar a criar um consenso em torno de obras contemporâneas, mais apreciadas em função do renome do artista do que em razão de suas próprias qualidades, e cuja chave escapa, na maior parte das vezes, ao grande público.

            Criador de seus próprios valores e de seus critérios de excelência, o cultural pode então poupar-se de fazer a reflexão estética que, inevitavelmente, interessa-se prioritariamente às resistências que cada obra opõe a sua absorção no circuito do consumo cultural. Apesar dos fatores econômicos, sempre conjunturais, o mal-estar contemporâneo é bem real. Paradoxalmente, resulta do próprio sucesso de um sistema cultural hegemônico, apto a desarmar qualquer crítica graças à sua generosidade e à abundância de suas prestações.

            É bastante significativo que o termo cultura tende a se substituir ao de arte nas expressões mais correntes da vida cotidiana. A arte ou as artes tornam-se um sub-conjunto de uma esfera em constante expansão. Esta esfera é a da "comunicação cultural" que dispõe de todos os meios tecnológicos e das mídias a serviço da difusão e da promoção de seus produtos; outra palavra que, muito freqüentemente, substitui a de obras, considerada ligada demais à uma concepção tradicional da criação artística.

            Pode-se então falar de uma "lógica cultural" para designar o processo de universalização respondendo à exigência de democratização na sociedade moderna. Mas esta lógica cultural não satisfaz todas as expectativas da experiência estética coletiva ou individual. Sabe-se bem, por exemplo, que o público, sempre perplexo diante de certas criações inéditas da arte contemporânea, espera em vão a revelação dos critérios estéticos que permitiram a seleção de tais produções e não de outra. Seguramente, estes critérios existem, mas permanecem freqüentemente propriedade de experts e de tomadores de decisão, quase sempre competentes, mas discretos.

            Excluído de um jogo do qual ignora as regras, o público não demora a se convencer da existência de um consenso entre iniciados que o condena a representar o papel de consumidor profano e dócil. Frustrado e desorientado, deixa-se desde então ganhar pelo espírito da época, o da dissolução total dos critérios estéticos; época de grande beatitude, em que tudo é soi-disant possível na arte, inclusive o "qualquer coisa", Walter Benjamin não predisse o fim da crítica no dia em que o homem chegasse a realizar seu sonho de viver em uma Disneyworld?

 

 

A QUESTÃO DOS CRITÉRIOS ESTÉTICOS

 

 

            A reflexão atual sobre a arte consagra parte de seus esforços em resolver esta tensão entre a "lógica cultural" e a "lógica estética", entre a aceitação passiva dos feitos do sistema cultural e a vontade de legitimar a apreciação e os julgamentos aos quais se expõem as obras.

            Já fizemos alusão ao gesto provocador e iconoclasta de Marcel Duchamp desde o início do século XX: expor, em uma galeria de arte, um objeto já pronto, um ready-made, estilo roda de bicicleta, pente, porta-garrafas, ou o máximo: um urinol. Dito de outro modo, nada que não solicite realmente o sentido estético. Duchamp declara-se anartista, hostil à pintura que define como retiniana, pintura de cavalete, suspensa nas molduras e destinada a mobilizar o olhar unicamente.

            É, bem entendido, perfeitamente consciente da blasfêmia: "Meu urinol partia da idéia de fazer um exercício sobre a questão do gosto: escolher o objeto que tenha a menor chance de ser amado. Um urinol, tem pouca gente que acha isso maravilhoso. Pois o perigo é o deleite artístico. Mas, pode-se fazer as pessoas engolirem qualquer coisa; foi o que aconteceu." Efetivamente, "aconteceu", se bem que por uma curiosa ironia da sorte, gerações de artistas e amadores chegaram desde 1917, a deleitar-se com o não-deleitável.

            Há múltiplas interpretações do gesto de Duchamp. Deve-se, então, limitar-se às que nos interessam e que se atém a poucas palavras. Esqueçamos a vontade do artista de questionar um modo de representação pictórica solidamente ancorada na cultura ocidental, sobretudo desde o Renascimento. Esqueçamos também a armadilha colocada na instituição artística, e a resposta dessa instituição que, finalmente, se presta ao jogo.

            Restam traumatismos e seqüelas do que parece ainda sofrer nossa época. O ready-made coloca de fato a questão da definição da arte: nada ou quase nada de início, um objeto banal ou trivial se transforma miraculosamente em "obra de arte" pela graça do batismo do "artista" e da "confirmação" da instituição. O milagre deve-se a pouca coisa: basta deslocar as fronteiras da arte. Não se pergunta mais: "O Que é a arte?" Mas como diz Nelson Goodman: "Quando há arte?", a partir de que momento e em que condições opera-se a transmutação?

            De fato, o problema está aqui mal colocado. Não há transmutação nem conversão do ready-made em objeto de arte mas simplesmente erupção no campo artístico de uma ação inédita, do tipo Dada. A implicação do mundo da arte transforma esta falácia em brincadeira séria.

            De fato é. Pois este ato sacrílego - ou dessacralizante - tem por conseqüência um abalo de todos os critérios clássicos que servem habitualmente para julgar e criticar uma obra, ou mais geralmente como objeto de arte. Não é espantoso que o século XX terminando, já perturbado pelo desaparecimento dos critérios modernos ou vanguardistas e o ecletismo pós-moderno, considere Duchamp - erradamente - como o grande responsável pela decadência da arte contemporânea.

 

            Que soluções propor para a decadência dos critérios estéticos? Três apresentam-se evidentemente ao espírito: restaura-se os critérios antigos, substitui-se a obrigação de julgar e avaliar pela imediatez e espontaneidade do prazer estético ou pesquisa-se novos critérios.

            A revalorização dos critérios tradicionais coloca problemas insolúveis. Que tipo de critérios? Tomados de que época? Antiga, clássica, romântica, moderna?

            As normas e convenções estéticas exprimem a sensibilidade de uma sociedade em dado momento; não são entidades abstratas que se pode levar como quiser na história. Ir adiante é provar uma nostalgia pelo passado, às vezes respeitável, mas inapta para compreender a evolução da arte. A menos que já não seja, nela mesma, um julgamento, implícito e desfavorável, sobre a arte contemporânea.

            A segunda solução consiste em erigir o prazer e o gozo estéticos como critérios de qualidade ou de sucesso de uma obra. Essa atitude não é nova. Remonta ao século XVII e lembra os intermináveis debates sobre o gosto, entre os partidários do sentimento e os defensores do julgamento fundado na razão. Todo mundo concorda facilmente com reconhecer que a falha insuperável de uma obra de arte é de suscitar a indiferença ou o aborrecimento. Deve-se, portanto, dizer que prazer vale julgamento?

            Certo, resolve-se o problema dos critérios [irreconhecíveis], especialmente para a arte contemporânea. Elimina-se a questão do julgamento, da avaliação, da hierarquia de valores, pedra angular da estética. Mas simplifica-se ao extremo a noção de prazer. Freud bem mostrou que o domínio do prazer e do gozo estéticos apresenta a mesma complexidade que o gozo erótico: tanto um quanto o outro é ambivalente. Isso significa que o gozo e o prazer guardam boa dose de seus contrários, assim como o ódio é amigo-inimigo do amor.

            Além disso, pode-se dificilmente admitir que o prazer seja uma espécie de dado em estado puro na obra de arte. Uma obra de arte agrada-me! Mas o prazer que sinto, sou eu que o elaboro em função do meu temperamento, do despertar da minha sensibilidade para a arte e de minha educação. O prazer, nada específico à esfera estética, não é um critério de qualidade artística. Que seja um dos múltiplos elementos do julgamento, pode ser, mas ensina-me muito mais sobre mim mesmo do que sobre a obra a qual estou confrontado.

            Enfim, o prazer não poderia indicar o que quer que fosse da qualidade artística da obra. O prazer sentido pela leitura de um romance policial ou por um espetáculo de um filme destinado a divertir não incita, portanto, a julgar que se trata de obras-primas, nem mesmo obras de arte. Ao inverso, pode acontecer que uma coreografia moderna, desconhecida para meu gosto ou então uma pintura realista e crua acabem por forçar a minha atenção a despeito de qualquer atração espontânea. Tudo aqui é questão de nuances, e são essas diferenciações, às vezes sutis, que permitem considerar a estética - o que, aqui, agrada aos sentidos - e ao artístico, que supõe um mínimo de objetividade.

            A terceira via orienta-se para a definição de critérios estéticos específicos às obras contemporâneas. Concebe-se sem pesar a dificuldade desse tipo de pesquisa. Os critérios, vimos, são expressão de uma situação histórica e social particulares. Não existem critérios atemporais imutáveis que permitam apreciar nas mesmas bases um quadro de Botticelli e uma obra de Francis Bacon, a música de Palestrina e a de Ligeti.

            Se se atém absolutamente a falar de critérios, é preciso então procurá-los não em uma esfera transcendente qualquer, a-histórica, mas na obra mesma. Admitir-se-á, por exemplo, que é difícil considerar como obra de arte bem sucedida, e ainda mais como obra-prima, um objeto suscetível de passar desapercebido. Assim como uma composição pictórica, musical ou literária incoerente, elaborada de modo arbitrário, totalmente aleatória, a partir de materiais e formas justapostas de modo heterogêneo, impõe-se raramente como obra de arte... Salvo se esta incoerência deve-se a um procedimento intencional e inscreve-se em um projeto coerente do artista, tal como a escritura automática dos surrealistas.

            A "obra de arte" designa habitualmente um objeto, uma ação, um gesto que apresenta um mínimo de lógica e de rigor no seu procedimento. Contrariamente ao preconceito corrente, as obras de arte não se perdem nesta falta de nitidez artística ou estética que serve muito freqüentemente para depreciar a arte aos olhos dos cientistas.

            Pode-se dizer que o gesto do escultor, a técnica contrapúntica, o toque do pintor, a escritura poética, a regragem coreográfica, o gestual do ator são desprovidos de precisão? Censura-se ao Traité d'harmonie de Schönberg, ao Clavecin bien temperé de Bach, ao Traité de la peinture de Leonardo da Vinci, às Demoiselles d'Avignon de não serem claros? Até o primeiro ready-made de Marcel Duchamp, se é "qualquer coisa", não está em qualquer lugar, em qualquer tempo, não importando como!

            Mas as obras citadas aqui produziram, sobretudo, critérios mais que obedeceram à modelos pré-estabelecidos. Como dissemos antes, são as obras de arte que engendram os critérios e não o inverso. Todas as obras de arte não são obras-primas. Quando se tornam significa que souberam transgredir as normas em vigor na sua época. Mas isso, só o tempo pode provar.

            Aplicada à arte contemporânea, a questão dos critérios aparece então como um falso problema. Imaginemos um critério aparentemente indubitável como o evocado acima: o caráter racional da obra. Quem me diz que este critério é e será sempre o bom? Qual é o critério do critério, e assim sucessivamente? Não valeria mais dizer que o aspecto "lógico" é, ele também, um dos parâmetros entre outros de uma obra. Certo, é importante porque constitui um elemento de inteligibilidade e de compreensão da obra. Permite a análise crítica e a interpretação e logo o discurso conceitual comunicável ao outro.

            Todavia, esse parâmetro não diz nada sobre a qualidade da obra. Vale o que valem a técnica, a profissão e o saber. Úteis para distinguir o charlatão do verdadeiro artista, não são esses critérios nem necessários nem suficientes: quantas obras não resultam de um evento contingente, de um acidente, às vezes de um gesto imprevisível como o que conduziu o artista americano Jackson Pollock a "inverter" a técnica do dripping [gotejar, molhar, ensopar]! Quantas obras, em revanche, nasceram de um profissionalismo rigoroso, realçando o indizível aborrecimento do dever bem feito?

            Pode-se admitir que nas obras mais desconstruídas, mais extravagantes reina uma ordem oculta, ligada ao inconsciente, ao jogo das "pulsões primárias" como demonstrou o psicólogo Anton Ehrenzweig[6][7]. Entretanto, mesmo essas pulsões não resultariam, com freqüência, como Freud também mostrou, de uma pequena desordem... na origem?

 

 

O DESAFIO DA ESTÉTICA

 

 

            Nenhuma teoria estética dispõe hoje de guia que permitiria atribuir infalivelmente as estrelas do mérito às obras, na maior parte, a espera de interpretação. No fim do século XX, a filosofia da arte é obrigada a renunciar a sua ambição passada: a de uma teoria estética geral abarcando o universo da sensibilidade, do imaginário e da criação.

            Não se pode estar ao mesmo tempo na janela e se ver passar na rua, dizia Auguste Comte. Ao mesmo tempo perto e longe das obras, a estética encontra-se nesta situação; ela apenas pode lastimar não ter o dom da ubiqüidade [onipresença]. Imersa na sua época, é legítimo que sonhe em realizar uma outra universalidade que a proposta pelo sistema cultural; legítimo, também, que tente elaborar critérios livres dos imperativos do mercado de arte, da promoção pela mídia e do consumo.

            Sua tarefa parece então com a de Sisyfe: exumar uma obra desaparecida por anos de indiferença e esquecimento ou proceder para a valorização de um artista contemporâneo, é também correr o risco da sua próxima integração ao universo indiferenciado dos bens culturais. Este risco seria suficiente para obrigá-la a renúncia? Seria esquecer que a estética é caso de "distância conveniente[7][8]". Próxima demais da "mundanidade", contenta-se em aspirar o ar da época; cede aos modos efêmeros e renuncia a sua vocação filosófica que é de ver "além". Longe demais da realidade, afunda-se na especulação abstrata.

            A visão correta? Basta acomodar o olhar sobre proposições de artistas e reter seu convite a viver intensamente uma experiência em ruptura com a cotidianidade. Estas proposições podem intrigar, chocar, desviar, angustiar, às vezes também, entusiasmar e maravilhar. A tarefa da estética consiste precisamente em dar uma extrema atenção às obras a fim de perceber "simultaneamente todas as relações que estabelecem com o mundo, com a história, com a atividade de uma época[8][9]. Religa-se, então, com a exigência de Kant: sair da solidão da experiência individual, subjetiva, e abrir esta experiência, senão a todos, ao menos ao maior número.

            Baumgarten já pressentia que a estética era uma "ciência" particular. É dizer pouco! Como toda ciência, ela evolui em função de seu objeto. Mas, ao inverso, deve sempre esperar ser ultrapassada por ele. Na realidade, ela não espera jamais; faz-se sempre surpreender pelas rupturas e choques intempestivos da criação artística.

            Lembra-se da alternativa colocada por Friedrich Von Schlegel: ou a arte, ou a filosofia. Não é proibido pensar que a estética deve-se reconciliar em permanência uma a outra. Como toda disciplina, ela se constrói sobre a base das dificuldades que encontra mas também das solicitações das quais é objeto. Nos dias de hoje, estas solicitações resultam precisamente do desespero causado por uma crise da qual agrada dizer que é sem equivalente na história. Como se nossa época devesse gozar o privilégio da originalidade! Mas nem a estética, nem a filosofia têm por vocação repetir periodicamente a oração fúnebre da arte, dos critérios, da crítica, dos valores, dos ideais perdidos ou momentaneamente perdidos.

            A estética toma partido se responde às demandas crescentes de interpretação, de elucidação e de sentido; demonstra-se que circular nos parques de atrações da cultura é agradável, mas é mais importante ainda que a cultura circule em cada um de nós.

            Desde os Tempos modernos, a filosofia teve que fazer seu luto da metafísica, da verdade, do Ser, da ciência, das grandes ideologias, das utopias da modernidade; do homem também, que confiou aos bons cuidados das ciências humanas. Mas nunca pôde realmente cortar o laço com a arte. Instrumento pedagógico, argumento teológico, instrumento de propaganda, cópia da natureza, aparência inofensiva, reflexo da realidade, projeção de fantasmas, paixão narcísica, objeto de prazer, meio de conhecimento, a arte sempre foi o joguete da filosofia. A filosofia, todavia, leva esse joguete a sério, talvez, secretamente invejosa do artista capaz de captar num gesto, numa cor, num simples acorde o que o discurso e os conceitos não chegam jamais realmente a exprimir.

            A arte revela-se assim como a questão essencial da filosofia. Bem raros são os filósofos que não entraram no jogo, antes mesmo que a estética nasça um dia da filosofia. E é porque o filósofo da arte não pode, sob pena de desaparecer, acreditar seriamente em uma morte da arte. Ou bem, se acredita, é à maneira de Francis Picabia declarando: "A arte está morta! Sou o único a não tê-la herdado”.





[9][1] In: Le tournant du XX siècle, Le tournant culturel de l'esthétique. Jimenez

[10][2][1][2] Arthur Danto, La Transfiguration du banal. Une philosophie de l'art, Paris, Le Seuil, 1989, p. 160.

[11][3]Ibid, p. 160-161

 

Tradução de Mirian Magda Giannella

 

[12][4] Jean Clair, Considérations sur l'État des beaux-arts. Critique de la modernité,

Paris, Gallimard, 1983, p. 12-13.

[13][5] Charles Jencks, L'architecture postmoderne, Paris, Denoël-Gonthier, 1978.

[14][6] T.W.Adorno, Minima Moralia. Réflexions sur la vie mutilée, Paris, Payot, 1980, trad. E. Kaufholz e J. R. Ladmiral, p.222.

[15][7] Anton Ehrenzweig - L'ordre caché de l'art. Essai sur la psychologie de l'imagination artistique, Paris, Gallimard, trad. F. Lacoue-Labarthe e c. Nancy, 1974.

[16][8] Expressão de Walter Benjamim.

[17][9] .Jean Starobinski, La relation critique, Paris, Gallimard, 1970, p. 195.

 



[1][2][1][2] Arthur Danto, La Transfiguration du banal. Une philosophie de l'art, Paris, Le Seuil, 1989, p. 160.
[2][3]Ibid, p. 160-161
 
Tradução de Mirian Magda Giannella
 
[3][4] Jean Clair, Considérations sur l'État des beaux-arts. Critique de la modernité,
Paris, Gallimard, 1983, p. 12-13.
[4][5] Charles Jencks, L'architecture postmoderne, Paris, Denoël-Gonthier, 1978.
[5][6] T.W.Adorno, Minima Moralia. Réflexions sur la vie mutilée, Paris, Payot, 1980, trad. E. Kaufholz e J. R. Ladmiral, p.222.
[6][7] Anton Ehrenzweig - L'ordre caché de l'art. Essai sur la psychologie de l'imagination artistique, Paris, Gallimard, trad. F. Lacoue-Labarthe e c. Nancy, 1974.
[7][8] Expressão de Walter Benjamim.
[8][9] .Jean Starobinski, La relation critique, Paris, Gallimard, 1970, p. 195.
 
 
 
 
 
 
 
 
 

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