quinta-feira, 25 de outubro de 2012


MOEMA, A PINTURA DE UMA PERSONAGEM LITERÁRIA

Alexander Gaiotto Miyoshi1

 

 

No sexto canto de Caramuru, Poema Epico do Descobrimento da Bahia, o português Diogo Álvares deixa a América num navio rumo à Europa. Parte com ele a indígena Paraguaçu, pronta para se converter à fé católica. Será a sua esposa. Outras indígenas seguem-no a nado. Todas desistem, menos Moema, que se agarra ao leme do navio, amaldiçoa o casal e submerge.

Em Caramuru, publicado em 1781, a presença de Moema é breve. Mas no século XIX, contrapondo-se à de Diogo e Paraguaçu, ela foi sentida como nenhuma outra. Antologias poéticas e histórias literárias destacaram desde então o trecho da “morte de Moema”, segundo muitos críticos o melhor do Caramuru2.

Em 1866, Victor Meirelles expôs a sua pintura de Moema. Não é uma cena de Caramuru, mas sim o que poderia ter ocorrido à indígena depois de ela “sorver-se n’água”; o pintor a retratou na praia: uma imagem “ideal”. Moema écuma das obras mais sugestivas de Meirelles. Uma pintura que renova a tradição dos nus horizontais e, ao mesmo tempo, transgride a fábula épica de Caramuru, conferindo à personagem secundária um protagonismo inédito e perturbador.

 

DA LITERATURA

Moema parece ter sido uma invenção de frei José de Santa Rita Durão, autor do Caramuru, que provavelmente a criou para acentuar o drama do episódio das nadadoras, reputado como verídico em alguns relatos. O episódio valoriza a fábula épica3, mote central do poema, destacando os feitos de Diogo. Condensando em Moema a rebeldia dos gentios, Durão reforçou, por contraste, o poder de conquista e resistência de Diogo, e também as qualidades pias de Paraguaçu. Antonio Candido apontou, na década de 1960, que o afogamento de Moema representou igualmente o afogamento das demais indígenas recusadas por Diogo4. O episódio serviria, portanto, para fortalecer a união simbólica do herói com Paraguaçu, amálgama do bravo colonizador lusitano com a dócil selvagem americana, supressão da barbárie pagã pelo sucesso da civilização cristã. Para entender um pouco mais a função do episódio, analisemos o canto VI do Caramuru, entre as oitavas 36 e 43:

 

XXXVI.

He fama então que a multidão formosa

Das Damas, que Diogo pertendião,

Vendo avançar-se a náo na via undosa,

E que a esperança de o alcançar perdião:

Entre as ondas com ansia furiosa

Nadando o Esposo pelo mar seguião,

E nem tanta agoa que fluctua vaga

O ardor que o peito tem, banhando apaga.

 

XXXVII.

Copiosa multidão da náo Franceza

Corre a ver o espectaculo assombrada;

E ignorando a occasião da estranha empreza,

Pasma da turba feminil, que nada:

Huma, que ás mais precede em gentileza,

Não vinha menos bella, do que irada:

Era Moema, que de inveja geme,

E já vizinha á náo se apéga ao leme5.

XXXVIII.

Barbaro (a bella diz) tigre, e não homem...

Porém o tigre por cruel que brame,

Acha forças amor, que em fim o domem;

Só a ti não domou, por mais que eu te ame:

Furias, raios, coriscos, que o ar consomem,

Como não consumis aquelle infame?

Mas pagar tanto amor com tedio, e asco...

Ah que o corisco és tu... raio... penhasco.

 

XXXIX.

Bem puderas, cruel, ter sido esquivo,

Quando eu a fé rendia ao teo engano;

Nem me offendêras a escutar-me altivo,

Que he favor, dado a tempo, hum desengano:

Porém deixando o coração cativo

Com fazer-te a meus rogos sempre humano,

Fugistes-me, traidor, e desta sorte

Paga meo fino amor tão crua morte?

XL.

Tão dura ingratidão menos sentira,

E esse fado cruel doce me fora,

Se a meo despeito triunfar não vira

Essa indigna, essa infame, essa traidora:

Por serva, por escrava te seguíra;

Se não temêra de chamar Senhora

A vil Paraguaçu, que sem que o creia,

Sobre ser-me infrior, he nescia, e feia.

 

XLI.

Em fim, tens coração de ver-me afflita,

Flutuar moribunda entre estas ondas,

Nem o passado amor teu peito incita

A um ai somente, com que aos meus respondas

Barbaro, se esta fé teu peito irrita,

(Disse, vendo-o fugir) ah não te escondas;

Dispara sobre mim teu cruel raio...

E indo a dizer o mais, cahe n’um desmaio.

XLII.

Perde o lume dos olhos, pasma, e treme,

Pállida a côr, o aspecto moribundo,

Com mão já sem vigor, soltando o leme,

Entre as salsas escumas desce ao fundo:

Mas na onda do mar, que irado freme,

Tornando a apparecer desde o profundo;

Ah Diogo cruel! disse com mágoa,

E sem mais vista ser, sorveo-se n’agoa.

 

XLIII.

Chorárão da Bahia as Nynfas bellas,

Que nadando a Moema acompanhavão;

E vendo que sem dor navegão dellas,

Á branca praia com furor tornavão:

Nem pode o claro Heróe sem pena vellas,

Com tantas provas, que de amor lhe davão;

Nem mais lhe lembra o nome de Moema,

Sem que ou amante a chore, ou grato gema6.

Rodolfo Bernadelli - Moema
 
 
 
  Em nenhum momento Durão descreve Moema. Apenas informa sua beleza física e, pelas atitudes, nos faz conhecer parte de sua personalidade. Os sentimentos transfiguram-se em elementos da natureza, num admirável uso de metáforas, elipses e zeugmas. Na voz de Moema, Durão compara Diogo a um tigre, invoca fúrias, raios e coriscos; sugere duas imagens poderosas de terror e sublimidade: uma fera ameaçadora e uma tempestade. Com esta última, remete ao primeiro contratempo de Diogo: a “verdadeira” intempérie que o fez naufragar no Brasil. Diferente desta, porém, a tormenta imprecada por Moema é “imaginária”, veloz e fulminante, talvez por isso ainda mais intensa, temível e recompensadora ao português. De todo modo, ambas representam o enfrentamento do lado selvagem e perigoso do Novo Mundo, seja pelo ambiente arisco ou pela oferta de esposas, tudo superado por Diogo.

 

Da pintura

 

Embora Moema fosse uma das personagens mais lembradas da literatura que começava a ser compreendida como brasileira, ela não passava ainda de uma idéia, de uma imagem mental e não visual. As únicas edições ilustradas de Caramuru – uma francesa, de 1829, e a outra portuguesa, de 1836 – retratam exclusivamente os protagonistas do poema, Diogo e Paraguaçu, de modo coerente à sua fábula épica, dando corpo à mensagem central da epopéia: a união de um nobre português com a mais casta das indígenas. Moema é o oposto da indígena modelo: não cobriu a nudez, como fizera Paraguaçu, mesmo antes de conhecer Diogo. Moema não se encaixava nos padrões europeus; mas apaixonou-se por um português. Seu afogamento, ou melhor, seu desaparecimento em meio às águas, foi a solução de Santa Rita Durão ao impasse.

 

Victor Meirelles não pintou uma cena de Caramuru; escolheu retratar o que poderia ter ocorrido a Moema depois de ela “sorver-se n’água”: seu corpo aparece na praia, nu e inerte, imerso numa natureza evanescente, virado para cima, com a mão sobre o ventre, o braço estendido e as pernas juntas. Sua pose é delicada, mesmo artificial, o que se acentua em dois elementos: um arranjo de penas central no quadro, cobrindo o sexo, e os cabelos negros, longos e ramificados, impressionantemente vivos. Mais do que obedecer a obra literária, Meirelles integrou seu quadro à tradição pictórica de nus estendidos sobre paisagens naturais, prolongadas ao horizonte; nus míticos e idealizados, dormindo ou sem vida, inconscientes de sua exposição e, assim, viáveis a olhos moralistas. Acrescente-se que a nudez de Moema, sendo ela uma indígena, era condição natural, inocente e plausível, o que autorizou ainda mais a sua transposição à tela.

Moema respira o ar de mudanças profundas na pintura internacional. Os anos de 1860 são profícuos em variados nus, cruciais para a diversidade do gênero. O ano de 1863 é particularmente significativo por dar lugar, em Paris, a “uma verdadeira batalha de nus”, nas palavras do historiador Henri Zerner7. De um lado, Édouard Manet expôs o Almoço na relva no Salão dos Recusados, um piquenique de dois homens, ambos elegantemente vestidos, e duas mulheres, uma delas completamente nua. De outro, Alexandre Cabanel expôs no salão oficial um quadro imediatamente aclamado pela crítica e público, logo comprado por Napoleão III: O Nascimento de Vênus. A tela exibe a deusa do amor despertando do sono, evidentemente nua, com os olhos entreabertos demonstrando sua consciência de ser observada. Essa obra ambígua, evocando igualmente a divindade pagã e a modelo viva, devia atiçar o público masculino tanto quanto este, vendo-se espelhado nos rapazes do Almoço na relva, devia se sentir surpreendido, constrangido e ultrajado. Numa litografia de 1864, Daumier ironizou: “Este ano, mais Vênus... Sempre Vênus!... Como se existissem mulheres assim”. A presença de Afrodites, ninfas e ondinas, nuas e voluptuosas à moda de Cabanel, tornava-se cada vez maior. Mas não apenas deidades despidas eram retratadas; pintavam-se também, em meio às águas, personagens do teatro e da literatura, comportadamente vestidas, sacrificadas por amor, demência ou causas nobres. A mais célebre dessas personagens é Ofélia, de Hamlet, dama dileta de pintores prérafaelitas e vitorianos, secundada, entre outras, por Elaine de Astolat, do ciclo arturiano, e Virgínia, de Paul et Virginie.

Entre Vênus e Ofélia, Moema é uma espécie de meio-termo, uma personagem que, na adaptação magistral de Meirelles, conciliou o gênero pictórico da mulher sobre as águas e a busca pelo assunto pátrio, ambos muito apreciados em meados do século XIX. Toda a concepção do quadro, incluindo o minúsculo navio no horizonte e os indígenas acenando, é criação de Meirelles, amparada em referências diversas que incluem desde a sua obraprima A Primeira Missa no Brasil (1860) até a famosa A Balsa da Medusa (1819), de Géricault, copiada por Meirelles entre 1857 e 58. Parte da crítica tomou Moema como plágio da Morte de Virgínia, de Eugène Isabey8, torpe acusação. Moema, como toda realização artística, alimentou-se generosamente de citações, em processo legítimo de imitatio, transformandose ela mesma em poderosa fonte de citação.

 

Desbravadora, original e influente a outras obras formidáveis (lembremos Marabá e O último tamoio, de Rodolpho Amoêdo, além da escultura Moema, de Rodolpho Bernardelli), a tela de Meirelles permanecerá insuperable em termos de força, criação e sensibilidade. Como observou Jorge Coli, Moema é abstrata e sintética, purista e geométrica, mais romana que francesa9, e embora compartilhe aspectos da arte de Courbet e da literatura de Baudelaire, ela nega a matéria, diferente dos quadros de indígenas mortos ou abandonados que a seguiram, todos mais “realistas” ou “naturalistas” que ela. Coli identificou em Moema a mais representativa imagem dos decantados apelos exóticos e eróticos daqueles anos banhados em morbidez. Ela é igualmente o mais delicado retrato de uma mulher que, momentos antes, havia se mostrado uma terrível virago. A Moema de Victor Meirelles expressa o sucesso da personagem no século XIX, mas também reforça um outro sentido: o da indígena vitimada em prol das conciliações entre brancos e selvagens, por fim apaziguada10, mesmo ao custo de sua vida11.

 

NOTAS

1 IFCH-Unicamp. Email: alexmiyoshi@hotmail.com

2 Ver entre outros: PATO MONIZ, Nuno Alvares Pereira. Exame analytico e parallelo do poema Oriente do R. do José Agostinho. Lisboa: Typografia Lacerdina, 1815, pp. 170-171. GARRETT, Almeida. “Bosquejo da historia da poesia e lingua portugueza” [1826]. In O retrato de Venus e estudos de historia litterária. 3ª ed. Porto: Ernesto Chardron, 1884, p. 210. SILVA, João Manuel Pereira da. Parnaso brazileiro: ou, Selecção de poesias dos melhores poetas brazileiros desde o descobrimento do Brasil. Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique Laemmert, 1843 (republicado em 1848). VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. Florilegio da poesia brasileira ou collecção das mais notáveis composições dos poetas brasileiros fallecidos, contendo as biographias de muitos delles, tudo precedido de um ensaio historico sobre as lettras no Brazil. Lisboa: Imprensa Nacional, 1850. WOLF, Ferdinand. Le Brésil littéraire. Histoire de la literatura brésilienne suivie d’un choix de morceaux tirés des meilleurs auteurs bésiliens. Berlim: A. Asher & CO. (Albewrt Cohn & D. Collin), 1863.

3 Compreendendo o episódio de Moema como “episódio da fábula épica”: “O episódio é parte da fábula, devendo ter relação com o assunto do poema. Mais extenso que o episódio cômico e trágico, é uma sequ!.ncia narrativa paralela da ação principal dotada de começo, meio e fim, mas sem concluir o todo da fábula narrada pelo poema. Por outras palavras, o episódio é funcional: situação narrativa ou dramática, amplifica e diversifica a ação narrada como ornato e exemplo que tornam o poema mais variado e versátil, enquanto relaciona o que veio antes com o que vem depois, para que o herói continue agindo.”  HANSEN, João Adolfo. “Introdução: Notas sobre o Gênero Épico”. In TEIXEIRA, Ivan (Org.). Épicos: Prosopopéia: O Uraguai: Caramuru: Vila Rica: A Confederação dos Tamaios: I-Juca-Pirama. São Paulo: Edusp/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2008, pp. 57-58.

4 CANDIDO, Antonio. “Estrutura literária e função histórica”. In Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. 5ª edição revista. São Paulo: Editora Nacional, 1976 (Obs.: O texto de Candido foi publicado com o

título “Estrutura e função do Caramuru”. In Revista de Letras, nº 2, Assis, SP, 1961).

5 Numa das compilações do século XIX, no lugar do termo “vizinha” lê-se “risonha”, o que muda

significativamente o sentido do verso. O lapso ocorreu em PINHEIRO, Joaquim Caetano Fernandes. Curso

elementar de litteratura nacional. Rio de Janeiro: Garnier, 1862, p. 433.

6 DURÃO, Frei José de Santa Rita. Caramurú. Poema Epico do Descobrimento da Bahia. Lisboa: Regia Offician Typographica, 1781, pp. 179-181.

7 ZERNER, Henri. “O olhar dos artistas”. In CORBIN, Alain (org.). História do Corpo: Da Revolução à

Grande Guerra. Vol. 2. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 128.

8 S. PAIO, Rangel de. O quadro da Batalha dos Guararapes seu autor e seus criticos. Rio de Janeiro: Typographia de Serafim José Alves, 1880, pp.96-97.

9 Sobre o purismo romano de Victor Meirelles, ver COLI, Jorge. A Batalha de Guararapes de Victor Meirelles e suas relações com a pintura internacional. Campinas: Unicamp, 1997 (Tese de Livre docência; sobre “Moema”, pp. 315-320), ou COLI, Jorge. Como estudar a arte brasileira no século XIX? São Paulo: Senac Editora, 2005.

10 “A Batalha dos Guararapes” (1879), também de Meirelles, pode ser entendida de modo semelhante: “sem

violência”. Ver COLI, Jorge. Como estudar..., pp.76-77.

11 Ver também MIYOSHI, Alex. “O retrato do bom selvagem”. Revista História Viva, nº. 62, São Paulo:

Duetto Editorial, dezembro de 2008, pp. 58-63.

 

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