sexta-feira, 2 de novembro de 2012


Ballet de Londrina dança Petruchka

(Por Jardel Dias Cavalcanti)
 
 

Em Petruchka, balé estreado em 1911, já se observa a ousadia com que Stravinski tratava as construções harmônicas, superpondo tonalidades em franco desacordo, não relacionadas entre si, e fazendo as combinações rítmicas mais inesperadas, abrindo caminho para uma série de experimentações politonais e polirrítmicas que já anunciavam A Sagração da Primavera.

A história da peça é a da marionete Petruchka, que corteja uma encantadora bailarina que o prefere a um Mouro lindamente vestido. O Mouro enciumado acabará matando seu rival, cujo espectro ameaçador aparecerá no fim.

Parece que Leonardo Ramos, o coreógrafo do Ballet de Londrina, encontra na música de Stravinski elementos que dialogam diretamente com suas pesquisas (não deve ser à toa que criou coreografias tanto para A Sagração da Primavera quanto para Petruchka).

          A obra de Stravinski é executa por pianos martelados, de forma elíptica e brutal, com timbres rudes. Enfrentando essas novas possibilidades sonoras, o que o Ballet de Londrina tem feito é conseguir ampliar os limites do gesto, dentro de princípios completamente novos.
         A música de Stravinski obriga os bailarinos a contorções inacreditáveis, suscitando a impressão de algo decomposto que rompe as habituais forças de equilíbrio típicas nos balés mais conservadores. Cesuras musicais exigem do corpo a mesma desmedida feitura de movimentos. E a coreografia, no seu sentido de conjunto, também acompanha esses cortes e desmedidos musicais.
 


A composição coreográfica de Petruchka pelo Ballet de Londrina se realiza não através de um desenvolvimento corporal coerente, mas em virtude dos hiatos que a música trás e, consequentemente, a marcam. O excitante dessa coreografia é justamente, por isso, a aguda tensão entre os elementos que querem se concretizar e na promoção de sua rápida dissolução. O que se relaciona com a ideia de um boneco que ganha vida somente para cair na agonia do amor.

O escamoteamento da narrativa coerente traduz-se num mal fait engenhoso. Esses “descuidos calculados” são parte de uma tradição radical em arte, absolutamente legítimos, onde os contornos borrados desmentem todo o caráter compacto da configuração da imagem. A criação é pensada como algo não inteiramente domada, mas obliquamente viva; por isso, o desrespeito ao bien fait dos modelos engessados.
 
 

A coreografia de Leonardo Ramos renuncia a fazer de si mesma a imagem compacta de uma realização acabada, com acentos temporais previsíveis. Ao contrário, a energia física é empregada na experiência de uma coreografia hostil ao que é convencionalmente esperado. Os gestos vazios de plenitude são mais expressivos que a coerente construção de gestos domados pela formatação. A obra se organiza na formulação de sua decomposição, não na composição de uma organização.

Esse comportamento é um ritual que serve para superar a frieza da padronização; com movimentos sincopados irregulares anuncia-se ao espectador a possibilidade de agonizar junto ao périplo de Petruchka.
A força da coreografia alimenta-se justamente da explosão de gestos que prescindem do pré-estabelecido, como uma criança que desmonta brinquedos, intercalando seus destroços às imagens de sua imaginação, para recriá-los de forma não convencional.



Mais uma vez Leonardo Ramos nos mostra que somente a ousadia de corpos prontos para a radicalidade e para a constante inovação dissolve a lógica medíocre de uma arte acomodada. Quem ganha é o espectador, que tem, com isso, a possibilidade plena de mergulhar no reino da sensibilidade, lugar por excelência da experiência da liberdade que só grande a arte pode possibilitar. Com a dança, a imaginação se coloca no lugar onde a função do irreal vem seduzir ou inquietar despertando o ser adormecido em seus automatismos.
 

 

Anotação:
Sobre ‘Petrouchka’
O amor pode parecer tão perfeito que é capaz de enganar aos que acreditam que, aonde existe amor existe vida. Ilusão. Desejos inconfessos, vaidade, ciúme e, por que não, a ruína habitam os corações. Aos que se lançam nessa tentativa de ser feliz, esperando e confiando nos sentimentos alheios, o risco da decepção é grande. O Ballet de Londrina leva às últimas consequências em Petrouchka, a enganosa teia da paixão não correspondida, alimentada pelo amor a si próprio.
 

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