quinta-feira, 22 de março de 2012

Nuno Ramos: entrevista





Como você se envolveu com as artes plásticas?

Eu tive uma adolescência marcada pela vontade de escrever. Fui fazer Filosofia para, talvez, perceber que eu não era um intelectual no sentido estrito. Gosto muito de ler, mas a minha recepção do que leio é muito confusa, defeituosa, pouco ordenada. Eu escrevia desde adolescente, mas sempre fui muito insatisfeito com o que produzia. As artes plásticas foram, de certa forma, a liberação de uma energia que a literatura não me estava possibilitando naquele momento.

Como você se preparou para isso?

A verdade é que comecei sem preparo algum – técnico ou mesmo cultural. Conhecia bem mais literatura do que artes plásticas. Não sei desenhar, não sei gravar. Fui fazendo, orientando o meu trabalho com essa coisa física, nessa relação com a matéria. No começo eu fazia tudo, metia a mão na massa. Depois, com a evolução do trabalho, comecei a usar o serviço de terceiros. Hoje não sou mais eu que derreto o sabão que vou usar em uma obra. Mas ainda assim a presença da matéria em meu trabalho é quase sempre muito forte. Talvez esses aspectos tenham me levado para as artes plásticas, coisas que a literatura não me daria. Esse imediato, essa luta com a matéria, foi o que me atraiu logo. Mas, aos poucos, voltei a escrever. Hoje divido as duas coisas quase em pé de igualdade, apesar de fazer minha vida, economicamente falando, nas artes plásticas. Mas a minha energia, no sentido do imaginário, cada vez mais está dividida entre as duas áreas.




Como você descreveria Bandeira Branca, que apresentou na Bienal de 2010?

Bandeira Branca é uma obra que expus em outra versão, geometricamente mais simples – em escala grande, mas menor do que na Bienal –, há uns três anos, em Brasília. A obra é composta de três esculturas de areia socada. No topo delas há três caixas de som, das quais saem três canções: Carcará, Boi da Cara Preta e Bandeira Branca, que dá título à obra. Há ainda três urubus que vivem ali durante o período da exposição. A obra é isolada, o público não pode entrar. Ela é uma espécie de ecossistema, é autossuficiente – a força interna dela é maior do que a força externa. Nesse sentido, acho que ela é o “antipenetrável”. Nossa tradição de arte contemporânea vem muito do penetrável, do Hélio Oiticica e da Lygia Clark, quando o público entra numa obra e participa dela, como se acessasse nesse momento o lugar do artista. Para mim, a obra de arte está tão perturbada, tão violentada pelos discursos, que é importante que tenha vida própria. No meu caso, vida própria literalmente, por conta da vida interna que os urubus davam ao trabalho. Eles não eram símbolos, eram também. Eles não eram marcas alegóricas do pessimismo, eram também. Mas principalmente eram acionadores de um mecanismo interno da obra. Eles comiam, faziam cocô, voavam, sujavam.
Por conta desses urubus, você se viu envolvido em uma das maiores polêmicas das artes plásticas brasileiras. Como vê hoje a questão?
O que é chato na polêmica é a substituição de uma coisa pela outra. Aquilo que seria uma parcela de significado que a obra contém acabou tomando o lugar do todo. Aí todo mundo perde. Arte é um lugar de ambivalência, de ambiguidade, não de doutrina. Em geral, as polêmicas convertem essa ambiguidade em doutrina, e doutrina burra. Com a proibição dos urubus no trabalho, causada pela gritaria em torno da obra, vivi um episódio de fraqueza institucional clássica. Eu obtive duas licenças da instituição que concede autorizações para criar obras com animais, o Ibama. Sob pressão pública e de alguma luz da mídia que produz cegueira, me retiraram as duas licenças. Essa fraqueza institucional foi dura. Afinal, a questão, antes de ser ética, é legal.
Os que se manifestaram contrariamente à obra alegavam que os animais estavam sendo maltratados. Como você lida com a crítica?
Se os protestos viessem de pessoas que acham que animais não podem ser instrumentos estéticos – assim como não podem ser instrumento de devoração – eu poderia discutir. Não é o meu jeito de ver, mas acho perfeitamente pertinente. Aí discutiríamos as questões éticas envolvidas; se os animais são tão sagrados quanto nós, e se, portanto, eles podem ou não fazer parte de uma cadeia alimentar, uma cadeia econômica, ou de um trabalho artístico. Mas não foi isso o que veio a público. O que surgiu foi uma reação ensandecida, uma sucessão de calúnias primárias que era difícil de responder porque não havia nem por onde começar.


O que argumentavam esses manifestantes?
Eles diziam que eu não alimentava os bichos, que ninguém cuidava deles, que os urubus estavam enfraquecidos, que os tirei da natureza. Eu peguei os animais num criadouro. Não havia som, tiramos o som. Havia veterinários, alimentação diária, gente cuidando deles. Ainda assim, eu posso estar errado, mas vamos começar a discussão de fatos. Só que a coisa veio de uma volúpia, que só posso lembrar do fascismo, quando se repetia tantas vezes uma acusação, desconsiderando a defesa, que aquilo se tornava a verdade.

Na mídia, houve quem propusesse que você fosse colocado em um paredão.
Uma colunista falou isso. Disse que eu deveria ser colocado num paredão, de cueca, enquanto me lançavam um jato d’água. Depois, ela disse que era uma piada. Não vejo graça alguma. Eu fui à delegacia para impedir que o pichador que pichou “Liberte os urubu” na minha peça fosse preso. Foi uma cena de pesadelo. De repente, tive o carro cercado, enquanto as pessoas batiam nas janelas e gritavam: “A-li-men-ta-eles!”. Hoje esses bichos estão em Sergipe sem que ninguém tenha jamais se preocupado com seu estado atual.


Você diria que houve um empobrecimento interpretativo da obra?

Acho que sim. A obra tinha um elemento de pessimismo, elemento de uma beleza sombria, de um peso, em um prédio que é todo veloz, para cima. Ela dava uma paralisada naquilo. Era a grande obra da Bienal, no sentido de causar espécie. Era uma obra de um nanquim escuro. Acho que esse barco encalhado, a forma de negá-lo foi acusá-lo de ser ecologicamente inadequado. No entanto, por outro lado, não tenho lembrança de as artes plásticas brasileiras causarem uma polêmica que escapou do meio da arte dessa forma, de parar em jornal, na tevê e em outras mídias. Isso tem lá a sua vida.

 
Acha que a discussão é representativa do momento que vivemos hoje?

Diria que nossa época esqueceu que a arte é o lugar da ambiguidade. Ela é fundo e figura ao mesmo tempo. Ela não é nem fundo nem figura se for boa. Não é uma coisa nítida, que enquadra. Ela não substitui um discurso. Não substitui uma doutrina, mas põe em questão uma doutrina. Uma parte dela dá conta, outra foge, outra nega. Ela é ambígua, é um buraco no mundo. O que senti, como nunca senti com tanta clareza, é como a nossa época é careta, como ela é empobrecedora daquilo que a arte, o balé, a literatura têm de próprio, que é resistir às doutrinas. As artes foram inventadas para isso. Para isso elas existem, para que não digam para nós o que a vida é.



Há uma falta de disposição do público para determinados tipos de trabalho?

A partir do minimalismo e da pop art, com sua crítica da ilusão da representação, a literalidade passou a ser o grande elemento da arte. O público é muito literal. As pessoas batem o olho e perguntam: “O que você quer dizer com isso?” – uma questão primária. Tudo é muito raso. Nunca senti com tanta força quanto nesse episódio dos urubus esse direcionamento. A obra tinha 200 leituras, mas para o público só havia uma, e não podia haver outra. Tudo que escapasse a isso seria uma ilusão, uma manipulação estética formal – essas baboseiras que as pessoas falam. Com isso, se dá as costas para aquilo, por exemplo, que se vai buscar diante de um Matisse. Ninguém vê um Matisse porque a mulher é bonita, mas, sei lá, para a vida ficar mais alegre, para começar de novo – qualquer coisa que se pergunte para uma obra de arte. Não as condições econômicas, políticas, étnicas, sexuais que geraram aquilo. Hoje vivemos uma sociologia soviética, um marxismo vulgar, que não é mais de esquerda. É liberal.

Como você vê o mercado das artes plásticas hoje?

Acho que ele nasceu no Brasil dos anos 1990 pra cá. É uma economia ainda menor que as principais, mas é uma novidade. Quando comecei, nos anos 1980, éramos conhecidos como a geração que emplacou o mercado da arte – e éramos menos de 15 pessoas. O atual momento tem a ver também com a força do mercado financeiro. Infelizmente, as instituições não acompanharam esse movimento. Não podemos dizer que a Bienal seja mais forte do que era nos anos 1980 – na verdade, só está voltando a ocupar um lugar forte agora. O Masp, o MAM estão melhores do que estavam, mas igual ao que já foram no passado – um pouco porque o Brasil não tem tradição de instituições fortes, um pouco porque a dinâmica da Lei Rouanet premiou novas instituições e deixou as antigas à míngua.

E os artistas do passado, ocupam o lugar que deveriam no mercado?

O Brasil tem uma gama de artistas a serem valorizados que me parece importante serem lembrados. Que Amilcar de Castro seja um artista que ninguém conhece, que Volpi seja visto lá fora como naïf, que Sérgio Camargo pareça um artista formalista, que Goeldi até hoje não tenha um acervo... Esses são artistas fortes que a leva de recuperação da nossa arte não incluiu. Basicamente entraram Lygia Clark, Hélio Oiticica e Mira Schendel. Eles são extraordinários, mas os outros também são grandes.



Seu reconhecimento como escritor, quando ganhou o Prêmio Portugal Telecom de Literatura com Ó, em 2009, fez você pensar em mudar de carreira?
Acho que sou muito mais desinibido como artista plástico do que como autor de textos. Eu tenho o superego muito mais pesado quando escrevo. Sou até um pouco naïf como artista plástico – claro que me formei num meio severo; é um pouco besta dizer que sou naïf; acho que sou mais solto. Na verdade, considero essas duas atividades, essas duas regiões muito interessantes. Nunca pensei em parar de fazer artes plásticas nem um segundo. O que acontece é que tenho muito mais interferências externas como artista plástico. Há demandas de museus, galerias, projetos; questões orçamentárias severas, em que não se pode errar; questões de transporte infernais. Há artistas plásticos hoje que têm ateliê com mais de 100 pessoas. São empresas. Como escritor, não há isso. Só dependo de mim mesmo para escrever. E escrevo todo dia.

 
Como você direciona as ideias para os diferentes tipos de obra que produz?

O trabalho normalmente não vem do nada. Está num contexto: uma escultura conversa com a outra, que conversa com a outra, e vai se formando um conjunto. Em literatura também é assim. O próximo livro que vou lançar se chama Junco. Ele reúne uma série de poemas antigos. Mas há uma unidade, uma cena numa praia, onde bichos morrem, troncos afundam, e o oceano vai lavando tudo. Os 47 poemas que foram entrando nesse conjunto pertencem a essa cena. Quando escrevi Ó, era uma coisa falsamente ensaística. Eu precisava estudar um assunto e acabava saindo um texto. Aí quando vinha outro, a junção, eu sentava e fazia. Já O Mau Vidraceiro, de 2010, foi uma espécie de compensação narrativa. Como Ó fala de tudo e não fala de nada, eu sentia falta de narrar pequenos episódios, coisas mais simples, com uma concretude.

Você também se relaciona com o universo da música, tendo canções gravadas por músicos como Romulo Fróes, Gal Costa e Mariana Aydar. Como isso se encaixa em seu trabalho?

Eu tocava violão na adolescência, e comecei a compor. Componho com recursos muito pequenos: toco mal, harmonizo mal, a harmonia demora para se fixar. Tenho pouco jeito. Mesmo assim, formei com o Romulo Fróes e com o Clima um núcleo muito interessante de partilha musical, por isso a música ocupa um lugar importante na minha vida.


O samba tem uma presença marcante em algumas de suas obras, não?

Tem. Às vezes, ele entra como um verso de Nelson Cavaquinho – O sol há de brilhar mais uma vez... –, mas, de modo geral, a cultura brasileira tem presença em meu trabalho. O Drummond está lá, o Goeldi, o João Cabral... Durante um período, eu juntava matérias. Depois passei a juntar matérias e registros culturais. A canção, de modo geral, é o éden popular brasileiro. Nelson Cavaquinho parece uma obra de Shakespeare. O cara toca coisas incríveis com apenas três dedos. Esse é um imaginário que a gente não explorou ainda.




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