em uma carta de Paul Gauguin
sobre a sua obra
Auto-Retrato, Os Miseráveis, de 1881.
por Jardel Dias Cavalcanti
por Jardel Dias Cavalcanti
“Quem é ele então? Ele é Gauguin, o selvagem que odeia uma civilização incômoda, alguma coisa do Titã que, ciumento do Criador, nas horas vagas, faz sua pequena criação, a criança que desmonta seus brinquedos para deles fazer outros, aquele que renega e que afronta preferindo ver vermelho o céu do que azul como a multidão”. (Auguste Strindberg)[1]
“Carta a Émile Schuffenecker, Quimperlé, 8 de outubro de 1888.
"Este ano sacrifiquei tudo, a execução, a cor, pelo estilo, no desejo de me impor algo diferente do que sei fazer. Creio que é uma transformação que não deu ainda seus frutos, mas que os dará.
Fiz um retrato meu para Vincent, que me havia pedido. Acho que é uma das minhas melhores coisas; absolutamente incompreensível (por exemplo), de tão abstrato. À primeira vista, cara de bandido, de Jean Valjean (Os Miseráveis), personificando também um pintor impressionista desconsiderado, carregando sempre uma cadeia para o mundo. O desenho é absolutamente especial, abstração completa. Os olhos, a boca, o nariz são como flores de tapete persa, personificando também o lado simbólico. A cor é uma cor distante da natureza. Imagine uma vaga lembrança da cerâmica deformada pelo grande fogo! Todos os vermelhos, os violetas, riscados pelos clarões de fogo como uma fornalha brilhando nos olhos, sede das lutas do pensamento do pintor. Tudo isso sobre um fundo cromo salpicado de buquês infantis. Quarto de jovem pura. O impressionista é um puro, ainda não maculado pelo beijo podre da École des Beaux-Arts.”[2]
Ao fazer o fundo de seu auto-retrato como o “quarto de uma jovem pura”, Gauguin quer apresentar visualmente o sentido da inocência e integridade do artista.
Numa série de auto-retratos Gauguin representa-se simbolicamente ora como mártir, ora como santo.
No “auto-retrato com o cristo amarelo” Gauguin se coloca ao lado da figura de Jesus crucificado, nos fazendo pensar nessa relação que ele evidencia entre a missão divina do Cristo que, no entanto, é crucificado e a missão do artista, outro ser de natureza divina e que também é perseguido pela sociedade. Tecnicamente falando o artista anula os espaços intermediários entre as figuras: o Cristo, o rosto de Gauguin e o pote têm a mesma importância.
Para Gauguin a luz não deve incidir sobre um objeto, mas emanar dele.
A sua busca por um novo sistema de organização plástica relaciona-se a duas questões: retorno às sensações básicas e questionamento dos elementos objetivos.
No outro retrato, aparece com a auréola sobre a cabeça, numa menção direta ao simbolismo cristão da santidade. Em seguida faz dois retratos como o próprio Cristo. A origem do auto-retrato realizado por Gauguin em 1881 é comentado numa nota, publicada no livro de H; B. Chipp:
“Este quadro foi resultado de um pedido de Van Gogh, para que tanto Gauguin como Bernard, que estavam em Port-Aven,, pintassem seus respectivos retratos e os mandassem para Arles. Nenhum dos pintores foi capaz, por diferentes razões, de pintar o rosto do outro, e resolveram então fazer auto-retratos, que incluiriam um esboço do outro, no fundo. Gauguin fez uma observação adicional numa carta a Van Gogh, de que ´ao pintá-lo [Jean Valjean] à minha semelhança, você tem uma imagem de mim mesmo, bem como um retrato de todos nós, pobres vítimas da sociedade, que só retaliamos fazendo o bem`. (De uma carta inédita em poder de Ir. V. W. Gogh)”.[3]
Em outra carta a Émile Schuffenecker, escrita de Pont-Aven, datada de 14 de agosto de 1889, diz Gauguin:
“Um conselho, não pinte excessivamente de acordo com a natureza. A arte é uma abstração; extraia-a da natureza meditando diante dela e pense mais na criação que resultará. É o único meio de subir em direção a Deus fazendo como nosso Divino Mestre, criar.”[4]
No momento em que Gauguin vai para as “ilhas dos Mares do Sul”, Taiti, “estava cada vez mais convencido de que a arte corria o perigo de se tornar leviana e superficial, de que todo o engenho e conhecimento acumulado na Europa tinham privado os homens do maior dos dons: vigor e a intensidade dos sentimentos, e um modo direto de expressá-los. (...) Enfim, Gauguin estava profundamente insatisfeito com a vida e a arte como as encontrara. Ambicionava realizar algo mais simples e mais direto, e esperava encontrar entre os primitivos os meios para consegui-lo. Aquilo a que chamamos arte moderna nasceu desses sentimentos de insatisfação (...)”[5]
Gauguin não sentia a menor satisfação na habilidade que poderia ser adquirida nas escolas de belas-artes. Ao contrário, ansiava por um estilo que não fosse um mero estilo, mas algo forte e poderoso com o a paixão humana.
“O fato de os poetas louvarem o poder das cores e formas de uma obra de arte, e de expressarem isso na terminologia da visão, era naturalmente muito estimulante para os pintores. Isso fica apenas a um passo da teoria do século XX de que as cores e as formas da pintura podem transmitir o estado de espírito e a idéia de um motivo, sem sequer representar, ou mesmo sugerir, esse motivo, concretamente. Mas enquanto os pintores podiam conceber os poderes evocativos das formas e cores como dotados de existência independente do motivo, não estavam de modo algum preparados para colocar em prática, em seu trabalho, todas as implicações dessas teorias. Somente na segunda década do século XX, e por artistas de convicções bastante diferentes, é que os primeiros quadros realmente abstratos puderam ser realizados.”[6]
Sobre a questão da marginalização do pintor, Van Gogh faz um comentário em que cita, particularmente, Gauguin:
“Por mais odiosa que a pintura possa ser, por mais onerosa que seja nos tempos em que vivemos, se quem escolheu esse ofício o pratica zelosamente, será um homem do dever, sólido e fiel. A sociedade torna nossa existência bem penosa, por vezes, e daí também nossa impotência e a imperfeição de nossos trabalhos. Acredito que até mesmo Gauguin sofre muito com isso, e não pode desenvolver-se, como tem capacidade para fazer.”[7]
O próprio Gauguin definia seu distanciamento dos impressionistas nos seguintes termos:
“Esses estudaram a cor exclusivamente como efeito decorativo, mas sem liberdade, conservando os entraves da verossimilhança. Para eles, a paisagem sonhada, criada em todos os aspectos, não existe. Olham e vêm harmoniosamente, mas sem qualquer finalidade... Procuram em volta dos olhos e não no centro misterioso do pensamento, e daí caíram nas razões científicas”.[8]
Para Gauguin a obra ordena-se segundo uma lógica toda subjetiva, transposição da realidade que sugere, por formas e cores totalmente arbitrárias, uma emoção particular.
Quando Gauguin declara que “a arte é uma abstração”, o que ele quer dizer é que um quadro, antes de ser a representação de alguma coisa, é essencialmente uma superfície plana coberta de cores dispostas em certa ordem.
Sobre o uso das cores dava o seguinte conselho: “Como vê esta sombra? Azulada? Não receie pintá-la tão azul quanto possível”.[9]
Tecnicamente Gauguin limita-se ao uso das seis cores primárias, cores “pouco naturais”, contornadas por um traço escuro, perspectiva plana, elementos que vai buscar na pintura egípcia, nos afrescos romanos, nas estampas japonesas e, talvez, no primitivismo ingênuo dos livros de imagens de Kate Greenaway.
“A solução da arte de Cézanne levou, em última análise, ao cubismo, que se originou na França; a de Van Gogh converteu-se no expressionismo, que na Alemanha encontrou a sua principal resposta; e a de Gauguin culminou nas diversas formas de primitivismo.”[10]
Segundo as palavras de Delaroche, “sobre as ruínas de veneráveis edifícios e de suas sínteses levanta-se um mundo estético, inaudito, paradoxal, sem regras definidas, sem classificações, de fronteiras flutuantes e imprecisas, mas rico, intenso, poderoso, tanto que sem limites, idôneo para comover até as fibras mais misteriosas do ser humano.”[11]
“Gauguin criou sua própria lenda, a do artista que se põe contra a sociedade de sua época e dela foge para reencontrar numa natureza e entre pessoas não corrompidas pelo progresso a condição de autenticidade e ingenuidade primitivas, quase mitológicas, na qual ainda pode desabrochar a flor da poesia, agora exótica, que é destruída pelo clima da Europa industrial”.[12]
Suas escolhas e iniciativas fez com que a partir de então expressões como “primitivos” fossem colocadas, pelo menos em igualdade de valor, junto com as das culturas clássicas. Sua busca por povos de terras distantes ou da natureza não significa uma retomada do exotismo dos românticos.
A pintura de Gauguin não tem relevo nem profundidade, mesmo não sendo inteiramente plana.
Gauguin situa a sensação na dimensão da imaginação. Ao contrário de Cézanne, por exemplo, que dava à sensação uma dimensão intelectual.
“Se, para dar um sentido ativo à função da imaginação, é preciso afastar-se da sociedade moderna, é porque nela não há mais espaço nem tempo para a imaginação. Sua vontade de “rejuvenescer” numa mítica barbárie é uma sugestão ao mundo “civilizado” para que inverta sua rota.”[13]
A poética de Gauguin baseia-se numa exigência ética. Para Gauguin um quadro é um campo perceptivo que contém e no qual se expressa um pensamento. A comunicação e a mensagem, no entanto, são comunicados através da percepção dos signos coloridos.
Para Baudelaire a arte não só deve ser independente da moral e da ciência, mas também da natureza. Esta idéia encontra eco nas características da arte moderna, no seu propósito de independência em relação à natureza, tendo como conseqüência capital abrir caminho a todas as deformações da pintura de Gauguin até a pop art, passando por Picasso. A arte, segundo Baudelaire, deve separar-se tanto quanto seja possível da natureza. A natureza é monótona e banal. Escreverá o poeta: “Quisera os prados fossem roxos, os rios amarelos de ouro e as árvores pintadas de azul. A natureza não tem imaginação”. Gauguin realizará este sonho do poeta.
BIBLIOGRAFIA
ARGAN, Carlo Giulio. A Arte Moderna. São Paulo: Cia das Letras,1992.
CHIPP, H. B. Teorias da Arte Moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
CLAY, Jean. L´Impressionisme. Hachette Réalités: Paris , 1971.
FRANCASTEL, Pierre. Pintura e Sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
GAUGUIN, Paul. Antes e Depois. Porto Alegre: L&PM, 1997.
GOMBRICH, E. H. A História da Arte. Rio de Janeiro: Guanabara, 1985.
MATHEY, François. O Impressionismo. Editorial Verbo: s/l. 1972.
REWALD, John. História do Impressionismo. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
SERULLAZ, M. O Impressionismo. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1965.
[1] - GAUGUIN, Paul. Antes e Depois. Porto alegre: L&PM, 1997. pp.32-4.
[2] - CHIPP, H. B. Teorias da Arte Moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p.64.
[3]- CHIPP, H. B. Teorias da Arte Moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p.64.
[4] - CHIPP, H. B. Teorias da Arte Moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p.56.
[5] - GOMBRICH, E. H. A História da Arte. Rio de Janeiro: Guanabara, 1985. p. 439-441.
[6] - CHIPP, H. B. Teorias da Arte Moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p.47.
[7] - CHIPP, H. B. Teorias da Arte Moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1996. p.42.
[8] - MATHEY, François. O Impressionismo. Editorial Verbo: s/l. 1972. p. 150.
[9] - Citado por: MATHEY, François. O Impressionismo. Editorial Verbo: s/l. 1972. p. 153.
[10] - GOMBRICH, E. H. A História da Arte. Rio de Janeiro: Guanabara, 1985. p. 441.
[11] - DELAROCHE, Achille. “De um ponto de vista estético a propósito do pintor Paul Gauguin”. Citado por: GAUGUIN, Paul. Antes e Depois. Porto Alegre: L&PM, 1997. p.35.
[12] - ARGAN, Carlo Giulio. A Arte Moderna. São Paulo: Cia das Letras,1992. p. 130.
[13] - ARGAN, Carlo Giulio. A Arte Moderna. São Paulo: Cia das Letras,1992. p. 131.
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