O
POETA NUMA OFICINA DE INUTENSÍLIOS, OU NUMA USINA DE SONHOS
Rogério Barbosa da Silva[1]
Guarda letras
Em sua exposição “Desambientes – Lavratório (oratório de
palavras), o poeta, artista plástico e professor Mário Alex Rosa apresenta-nos
uma série de objetos que se inscrevem fronteiriçamente entre as artes plásticas
e a poesia, e através dos quais nos levam a pensar na poesia existente nas
coisas que nos rodeiam todos os dias.
Já
de saída os cerca de 30 objetos expostos em “Desambientes” sinalizam-nos com a
proposta de sua ressignificação através da arte. A ideia, em si, de retirar os
objetos do cotidiano e despragmatizá-los de sua função industrial, não é nova e
nos faz remontar aos trabalhos dadaístas do início do século XX, como Kurt Schwitters ou Marcel Duchamp, bem como os de
alguns surrealistas que adotaram o ready-made.
No Brasil, ao fim dos anos 50 do século passado, poetas e artistas ligados ao
neoconcretismo retomaram criticamente essas propostas, acreditando que os
artistas das primeiras vanguardas teriam sido vencidos pelos objetos. Isto é, suas
obras ter-se-iam enfraquecido ao serem novamente envolvidas pelo halo
característico da coisa. Propõem,
então, a “Teoria do não-objeto”. Nessa formulação, sem querer se opor à
materialidade ou à natureza do objeto, os neoconcretos compreendem-no como “um
corpo transparente ao conhecimento fenomenológico, integralmente perceptível,
que se dá à percepção sem deixar rastro. Uma pura aparência.” (GULLAR, F. Teoria do não-objeto. In: COCCGIARALE,
Fernando & GEIGER, Anna Bella. Abstracionismo;
geométrico e informal – a vanguarda brasileira nos anos cinquenta. Rio de
Janeiro: FUNARTE, 1987).
poema para a massa
Em claro diálogo com essas propostas, que constituem um
importante capítulo da história da arte, e consoante a atração que a forma sempre
exerceu sobre artistas e poetas de tendências várias ao longo das tradições
criativas ocidentais, os objetos criados por Mário Alex Rosa seguem uma senda
própria. São, por um lado, exercícios de desvelamento de seu próprio imaginário
(experiência e imaginação) e, por outro, constituem um diálogo especial com os
poetas de sua admiração. O poeta catalão Joan Brossa, o mineiro Carlos Drummond
de Andrade e o paulista Oswald de Andrade são evidências captadas já num
primeiro olhar. Em cada um, Mário Rosa busca um elemento que se converte num
insight poético e se materializa em linguagem-objeto a partir da potência
lúdica de seu trabalho. No trocadilho de “Uma broca para Brossa” inscreve-se
também uma linhagem do poeta designer, a qual pertencerá também o mineiro Mário
Alex Rosa. Na irônica referência ao Drummond de “A procura da poesia”, o objeto
formado por cadeados e letras, com o título “Trouxeste a chave?”, do verso
drummondiano, parece insinuar, numa transmutação de linguagens, os limites do
ato interpretativo na poesia. E por outra maneira, ressoando o Drummond de “A
vida passada a limpo”, o ferro elétrico ressignificado a partir do jogo de
letras e palavras recortadas, e que resulta no “Passando o poema a limpo”, faz
também ecoar o trabalho medido e controlado da tradição cabralina. Evoca-se o
João Cabral da poesia lúcida e que busca nos instrumentos vários (a borracha, a
faca, o bisturi e outros) um meio de atingir a precisão do poema, isto é, um
meio de dobrar a palavra na sua exata dimensão poética. Por aí também
poderíamos ler os objetos “O cortador do poema” e o “Guarda-letras” - este que
irremediavelmente nos faz lembrar os versos de Cabral para Drummond, em “A
Carlos Drummond de Andrade”: “Não há guarda-chuva/contra o poema/subindo de
regiões onde tudo é surpresa/como uma flor mesmo num canteiro”.
O corte do poema
Muito sugestivos e importantes para essa apreciação
crítica são dois outros trabalhos, intitulados “Preparos para um poema ou a
primeira refeição do aluno Mário Alex Rosa” e “Santa Letra”. No primeiro, a referência imediata é o Oswald
de “O primeiro caderno do aluno de poesia Oswald de Andrade”, no qual, como nos
lembrou Raúl Antelo, pratica-se a “enunciação-criança”. Segundo o crítico, a
partir de observações de Elisa A. Kossovitch, nesse modo de enunciação “não se
encena [o] verossímil porque se efetua anamnese, a fala pretérita, recuada, em
que a criança se constitui como objeto do narrador mesmo quando este enuncia
‘eu’. Mas ‘ela também é sujeito do enunciado, personagem, actante-sujeito ou
actante-objeto (...)’” (ANTELO, R. Prefácio. In: ANDRADE, Oswald. Primeiro caderno do aluno de poesia Oswald
de Andrade. São Paulo: Globo, 1994. p. 9). Nesse sentido, o objeto-arte de
Mário Alex Rosa constitui-se portador de múltiplos discursos ao trazer à cena uma
interseção simultânea da experiência do visto e do imaginado, na medida em que
a experiência vivida pode ser ativada tanto pela poesia infantil de Oswald
quanto pela lembrança do poema “Sentimental”, do Drummond, de Alguma Poesia: “Ponho-me a escrever teu
nome/ com letras de macarrão”. Um “romântico trabalho” repentinamente
interrompido pela razão pragmática na voz daqueles que o contemplam: “- Está
sonhando? Olhe que a sopa esfria!”. E a reação do poeta-menino: “Eu estava
sonhando.../ E há em todas as consciências um cartaz amarelo:/’Neste país é
proibido sonhar’” (DRUMMOND, C. In: DRUMMOND, C. Nova Reunião – 19 livros de poesia. Rio de Janeiro: José Olympio,
1985, p. 14).
pinçando
O sonho, na poesia, opõe-se ao pragmatismo da vida, ao
pragmatismo das coisas. Portanto, para o poeta, antes esfriar a sopa, que se abdicar
da escrita. As letras de macarrão desse poema ressoam na “preparação” do poema
do aluno Mário, poeta-designer, que, em diálogo com os seus mestres poetas, parece
encontrar em “Santa Letra” a talvez faltante letra drummondiana - a que lhe
permite inscrever o nome numa possível anamnese de sua formação cristã na
juventude. De fato, o objeto poético intitulado “Santa Letra” utiliza também as
letrinhas de macarrão, algumas pintadas, para compor uma alusão às famosas
representações da Santa Ceia. As taças, dispostas numa superfície circular,
trazem inscritos nomes que sugerem os dos doze apóstolos, inclusos, entre eles,
o de Jesus e o nome “poeta”. Assim, para além de uma possível remissão a sua
juventude e talvez a nomes comuns de amigos e colegas de infância que, com o
poeta, compartilharam experiências comuns, há no poema-objeto também a
perspectiva de se entender a letra como um alimento espiritual – esse ponto de
vista reforça, de certa maneira, a leitura do objeto poético comentado
anteriormente, já que os materiais embasam o procedimento são os mesmos. Quanto
à questão em torno do nome, há que se ver o objeto poético “Eu Lírico”, caixa
composta por letras varetas, pregos e pequenas placas, ao que parece de madeira,
em que letras coloridas estabelecem um paradoxo entre a negação e a afirmação
do “eu” como matéria corpórea do poema: “E u / p o e m/ a N A O/ S O U” (ROSA,
Mário Alex). Além disso, o título “EU LÍRICO”, em cores diferentes, aparece
como que gradeado por varetas enxertadas na tampa da caixa, como que a sugerir
um possível cerceamento deste EU.
Trouxeste a chave
Enfim, para retomar essa ideia do poeta em meio aos
inutensílios, que corresponderia num primeiro momento ao deslocamento dos
objetos de sua função ordinária. No entanto, podemos dizer que os
objetos-poéticos expostos em “Desambientes” são resultantes de uma espécie de
transfiguração desses objetos ordinários de nosso cotidiano. Sua obscuridade
transcendente, tão combatida pelas vanguardas artísticas, dissolve-se à medida
que Mário Alex Rosa dota-os de um poder comunicativo que eclipsa o vetor de sua
funcionalidade. Invocam-nos, por conseguinte, a noção de “coleção”, numa
perspectiva da sociologia dos objetos. É preciso, no entanto, lembrar que, em
seu sentido etimológico, o objeto significa a coisa existente fora de nós, algo
que resiste ao indivíduo. Portanto, é também o produto do homo faber. Conforme nos lembra Abraham Moles, o objeto só se
constitui como tal em sua apropriação ou função social, pois é “um elemento do mundo exterior fabricado pelo
homem e que este deve assumir ou manipular. Um machado de sílex é um
objeto, enquanto que o sílex não o é...” (Grifos originais) (MOLES, A. Objeto e
comunicação. In MOLES, A et. al. Semiologia
dos objetos. Petrópolis, RJ: Vozes, 1972).
Nesse sentido, uma dimensão poética presente nos objetos-poéticos que visitamos nessa Exposição é a do poeta-inventor, do poeta-designer. Isto é, aquele que inventaria os objetos do cotidiano e os vê como portadores de morfemas, e que através dessa percepção os transforma. Nesse trabalho, o poeta acaba por denunciar aquela moral social que rejeita a ociosidade do objeto, como já demonstrou Jean Baudrillard. Algo que também está presente no poema “Sentimental”, de Drummond, conforme já apontamos. Pensando nessa exposição, poderíamos repetir para Mário Alex Rosa, as palavras de João Cabral de Melo Neto dirigidas a Vicente do Rego Monteiro: “(...) E é por isso/ que quando a mim/ alguém pergunta/ tua profissão/ não digo nunca/ que és pintor/ou professor/ (palavras pobres/ que nada dizem/ de tais surpresas);/ respondo sempre:/ - É inventor, trabalha ao ar livre/ de régua em punho,/ janela aberta/ sobre a manhã.” (MELO NETO, J. Cabral. A Vicente do Rego Monteiro. In: Poesia crítica. Rio de Janeiro: José Olympio, 1982, p. 88).
Torneletras
Nesse sentido, uma dimensão poética presente nos objetos-poéticos que visitamos nessa Exposição é a do poeta-inventor, do poeta-designer. Isto é, aquele que inventaria os objetos do cotidiano e os vê como portadores de morfemas, e que através dessa percepção os transforma. Nesse trabalho, o poeta acaba por denunciar aquela moral social que rejeita a ociosidade do objeto, como já demonstrou Jean Baudrillard. Algo que também está presente no poema “Sentimental”, de Drummond, conforme já apontamos. Pensando nessa exposição, poderíamos repetir para Mário Alex Rosa, as palavras de João Cabral de Melo Neto dirigidas a Vicente do Rego Monteiro: “(...) E é por isso/ que quando a mim/ alguém pergunta/ tua profissão/ não digo nunca/ que és pintor/ou professor/ (palavras pobres/ que nada dizem/ de tais surpresas);/ respondo sempre:/ - É inventor, trabalha ao ar livre/ de régua em punho,/ janela aberta/ sobre a manhã.” (MELO NETO, J. Cabral. A Vicente do Rego Monteiro. In: Poesia crítica. Rio de Janeiro: José Olympio, 1982, p. 88).
[1]
Rogério Barbosa da Silva é doutor em Literatura Comparada pela UFMG e professor
do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais.
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