Eugène Delacroix: uma tela, uma revolução: Dante e Virgílio no Inferno
Por Jardel Dias Cavalcanti
Delacroix anota em seu Diário que, quando jovem, depois de ser examinado por um astrólogo, ele profetizou: “Esta criança será um homem célebre, mas sua vida será muito difícil e atormentada, sempre sob o poder da contradição”.
A profecia começa a se concretizar no momento da exibição da tela Dante e Virgílio no Inferno, no Salão de 1822, quando se criou o primeiro escândalo e ao mesmo tempo o início da consagração de Delacroix como grande pintor.
Na obra ecoavam como principais referências dramático-plásticas as obras de dois artistas: A Balsa do La Meduse, de Géricault e “Os náufragos abandonados”, do Dilúvio (Capela Sistina), de Michelângelo. O tom trágico da cena em que o remador transporta os dois poetas, Dante e Virgílio, sob um céu infernal, reforçado pela pose michelangesca dos danados que se agarram à embarcação e certa liberdade no tratamento plástico, não encontrou aprovação da crítica e do púbico que atacaram violentamente Delacroix.
No que a tela tem de poder, abundância e dinamismo ardente, não se pode deixar de pensar também na influência de Rubens. Mas Delacroix vai além, imprimindo na pintura um efeito de expressividade levado até o limite da vitalidade e do dinamismo. Tudo isso reforçado pela cor, elemento revolucionário na sua obra, que revela uma influência da pintura veneziana (Ticiano, Veronese, Tintoretto).
O que importava para o artista é que a tela não passou despercebida. Como ele mesmo dizia, “com essa obra eu tentava um golpe de sorte”. Um dos membros do júri do Salão, Antoine-Jean Gros, gostou da obra e a definiu como um “Rubens atormentado”. Delacroix exaltou-se com a definição e a comparação com um dos artistas que mais admirava.
Outro juízo positivo sobre Delacroix e seu quadro apareceu no jornal Constitutionnel, na coluna de Adolphe Thiers, futuro presidente da República : “O autor possui, além dessa imaginação poética que o pintor compartilha com o escritor, essa imaginação do desenho, que é muito diferente da anterior. Não acredito estar enganado: o senhor Delacroix recebeu a genialidade”.
Jules e Edmond de Goncourt afirmaram que “a ação é o gênio e o demônio de Delacroix”. Comentário que resume bem a maioria das obras do artista, sempre marcadas por uma forte movimentação ou nas palavras de Baudelaire, por uma “turbulência”. Nesse sentido, vale observar, principalmente, A Liberdade Guiando o Povo, dentre outras obras. Baudelaire, ao ver a pintura, vai dizer que “ninguém, depois de Shakespeare, consegue como Delacroix fundir numa unidade misteriosa o drama e o devaneio”.
Por causa desse caráter de sua pintura, o pintor seria sempre visto como um “perturbador da ordem pública”. Isso porque a obra de Delacroix era daquelas que “transmitiam convicções fortes, davam um corpo, muitas vezes inesperado, às idéias”, como anota Jorge Coli, em um dos textos mais importantes sobre Delacroix, recentemente publicado no livro O Corpo da Liberdade (CosacNaify).
Apesar de ter sido aluno de Guérin, pintor fiel aos princípios clássicos, Delacroix identificava-se com uma tradição literária e pictórica mais romântica (lia Shakespeare e Dante sob esta perspectiva) e retomava pintores barrocos, interessado na tragicidade de suas obras.
Em seu brilhante ensaio “A luta com o anjo: Baudelaire e Delacroix”, Leyla Perrone-Moisés comenta que em Dante e Virgílio no Inferno “os corpos nus não têm a nobreza do ideal; mostram uma lividez cadavérica e manchas de decomposição. Não são figuras alegóricas, mas restos humanos lutando por uma sobrevivência que parece ditada mais pelo instinto animal do que pela aspiração à graça divina. O gesto de Dante e a capa de Virgílio imprimem à barca um balanço inquietante. Os representantes do Bem e do Belo parecem tão ameaçados de naufrágio quanto os condenados. A cena toda se passa numa pavorosa escuridão apenas rompida, ao fundo, por vagos clarões de incêndio”.
As palavras acima nos mostram o quanto Delacroix era um pintor imaginativo, um apaixonado pelos temas que escolhia e um individualista que encontrou sua própria forma de criar. Defensor da individualidade na arte, jamais abriu seu ateliê para formar discípulos (não suportaria essa incoerência hoje praticada em cursos de artes).
Seu conceito de imaginação se aproximava do de Baudelaire, que a via como “a rainha das faculdades” e como a capacidade de criar imagens de uma qualidade particular, feita de intensidade, de ardor, de paixão, de sonho, de magia, de melancolia. Este conceito se relaciona com a idéia de “desenho de criação”, que é aquele que negligencia a natureza para representar uma outra, análoga ao espírito e ao temperamento do artista. Mas a imaginação não está livre da razão para Delacroix, que a vê “não como um devaneio espontâneo mas como uma capacidade construtiva, a aptidão para combinar e compor imagens”.
Segundo Perrone-Moisés, “a concepção da natureza como um depósito de imagens que o artista deve ligar e organizar, pelos sentidos e pela imaginação, é um dos legados da teoria romântica”. Para Delacroix, no entanto, “é preciso muita inteligência na imaginação”. E era justamente esse controle da inspiração pela inteligência construtiva que lançava Delacroix para a modernidade (Cézanne seria a forma acabada desta modernidade, mas menor artista que Delacroix). Nos seus “Ecrits sur l´art” Delacroix dizia que “o belo é fruto da uma inspiração perseverante, a qual nada mais é do que uma série de trabalhos obstinados”.
O pintor se incluía no que ele chamava de “anfíbios”, ou seja, artistas que pensavam e escreviam. Reivindicava para a pintura a capacidade de pensar e para o artista a capacidade de manejar a caneta, sendo criador, teórico e crítico ao mesmo tempo. “Seu diário é estimável tanto pelas reflexões estéticas, quanto pelo estilo correto e elegante. Como autor, Delacroix é um hábil expositor de idéias e usuário da retórica em seus registros mais finos, como a persuasão e a ironia. Como teórico, ele se inscreve naquela categoria dos artistas pensadores de sua arte, que se tornou freqüente desde o romantismo alemão e teve sua continuação nos maiores da modernidade”, diz Perrone-Moisés.
“Delacroix é o mais sugestivo de todos os pintores, aquele cujas obras mais fazem pensar, e mais lembram à memória sentimentos e pensamentos poéticos já conhecidos, mas que se acredita enterrados para sempre na noite do passado”. Estas palavras, escritas por Baudelaire no seu ensaio “A obra e a vida de Eugène Delacroix”, definem uma das principais características da obra do pintor francês, que é a sua capacidade de traduzir ao mesmo tempo, numa obra de arte, as potências do pensamento e do sentimento.
Para o próprio Delacroix, como ele anota no seu Diário, “o primeiro mérito de um quadro é o de ser uma festa para os olhos. Isto não quer dizer que não seja necessária a razão”. Esta festa é criada principalmente pela cor, mas organizada pela inteligência do olho e da imaginação.
Delacroix não está longe de Goethe, para quem a cor não é um simples jogo de luz, mas uma ação nas profundezas do ser, uma ação que traduz e gera os valores sensíveis essenciais. Contra Newton, que considerava a refração da luz pelo prisma como um simples fenômeno da física corpuscular, Goethe introduziu um sistema de valor, pensando num continuum psico-fisiológico, dotando de personalidade as cores que teriam o poder de restituir os estímulos, as sensações, as emoções em uma visão global do homem.
Como diz Jean Clay, no seu livro Le Romantisme, Hegel também subscreve as análises de Goethe em sua Estética, ao falar da “magia das cores” e dá a ela um primado sobre do desenho “que não forma senão a base exterior da pintura”, sendo “a cor que constitui o elemento por excelência da pintura, o extremo ponto da sua vitalidade”. Baudelaire chegará a dizer que “em Delacroix a cor pensa por si mesma independente dos objetos que elas habitam”.
A cor, segundo Delacroix, pertence ao reino da sensibilidade: “O tema, a forma, a linha se dirigem primeiro ao pensamento; a cor não tem nenhum sentido para a inteligência, mas tem poder absoluto sobre a sensibilidade”.
Dentro de sua pintura a cor funcionava como os sons dentro de uma música, deixando de ser apenas justapostas, mas imprimindo uma relação entre reflexos, animando a pintura como “massas harmônicas”, dizia Baudelaire. A cor agora torna-se uma linguagem particular, capaz de criar sentimentos, veicular idéias, fazer sofrer o espectador.
Neste sentido foi rica a relação que Delacroix estabeleceu com o oriente, que o libertou do cromatismo de ateliê, deixando sua pintura tornar-se um verdadeiro manifesto da cor. O que importa para a sua pintura é que a cor assume uma grande importância, tanto na prática quanto na teoria, como força expressiva e constituinte maior do quadro. As portas da modernidade se abriam através de Delacroix, que ensinaria os artistas futuros a contestar sempre as convenções representativas, esperando os fauves, os impressionistas e os expressionistas entrarem livremente porta à dentro da revolução artística operada por ele.
Baudelaire fez de sua descrição de Delacroix o melhor retrato do artista, mas pode ser que ai se encontra o melhor retrato da própria obra do pintor: “Tudo nele era energia, mas energia derivada dos nervos e da vontade. O tigre atento à sua presa tem menos luz nos olhos e menos estremecimentos impacientes em seus músculos do que o nosso grande pintor, quando toda a sua alma estava dirigida para uma idéia ou queria agarrar um sonho”.
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obs: texto originalmente publicado em:
http://www.digestivocultural.com/colunistas/coluna.asp?codigo=3314&titulo=Eugene_Delacroix,_um_quadro_uma_revolucao
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http://www.digestivocultural.com/colunistas/coluna.asp?codigo=3314&titulo=Eugene_Delacroix,_um_quadro_uma_revolucao
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