“Jamais conheci um artista mais contido, vigoroso e sincero. Posso compreender muito bem quão singular deve ser sua atitude para com o mundo.”
Goethe sobre Beethoven
“A admiração, o amor e a estima, que já acalentava em minha juventude pelo único e imortal Goethe, ainda persistem. Sentimentos como esses não são expressos facilmente em palavras, particularmente por alguém inculto como eu, pois meu único desejo tem sido dominar a arte da música. Mas um sentimento estranho está me induzindo a dizer tudo isso a você, visto que vivo em seus escritos.”
Beethoven para Goethe
“Não toquei meu piano por vários dias”, afirmou Johann Wenzel Tomaschek, depois de assistir a um duelo pianístico entre Joseph Wölffl e Ludwig van Beethoven. E, de fato, o contato com Beethoven é paralisante. Mais uma vez, graças à biografia de Lewis Lockwood, lançada no Brasil pela editora Códex. O que se pode acrescentar, em termos de comentário, à obra do compositor alemão? À obra de possivelmente um dos maiores, senão o maior artista do mundo ocidental, segundo nos deixou sugerido Otto Maria Carpeaux? Beethoven é auto-suficiente e, a não ser que se esteja no mesmo nível para acrescentar algo em termos musicais, como fizeram, por exemplo, Berlioz e Wagner, o melhor mesmo é calar. E estudar seu legado. A atitude, humilde, dos biógrafos de personalidades desse porte tem sido, ultimamente, a mais correta: pesquisar, cruzar dados, montar uma narrativa e não conjecturar nada ou quase nada. Os adendos, proveitosos, estão fora do nosso alcance. Pelo menos, no caso de Beethoven. Diante da constatação dessa impossibilidade, digamos, de se reescrever a História, resta, a nós, passar ao largo de alguns pontos interessantes. E só. Por enquanto.
Provavelmente, a coisa que mais chama a atenção, hoje, tomando-se o universo de Beethoven, é o germanismo – e a certeza do quanto ele perdeu de terreno, tornando-se até pejorativo, obviamente depois de Hitler. Ou antes. O “germanismo” (se é que estamos tomando a acepção mais correta do termo) terminou associado ao nazismo, à suposta superioridade da “raça ariana” e aos delírios de grandeza do Terceiro Reich. E claro: depois da carnificina, da destruição e do evidente absurdo da Primeira e da Segunda Guerras, qualquer consideração sobre o caráter genuinamente alemão, vá lá, passou pelo resultado desses dois conflitos, onde a Alemanha foi um dos atores principais (infelizmente, para o mal), já que – como diz George Steiner – por pouco não tirou a Europa do mapa e não enterrou nossa civilização. Como se falar em germanismo depois desses horrores incorresse na inevitável conclusão: por mais portentosas e esplendorosas que tenham sido as realizações das nações e dos povos germânicos, redundaram em duas guerras mundiais que por pouco não nos soterraram. Ou seja: colocando de uma maneira bastante simples, valeu a pena? De que nos serviu, afinal de contas, o germanismo e a cultura “germânica”? Freud, por exemplo, no período entre guerras, revisou toda a sua teoria e incluiu, em contraponto à pulsão de vida (Eros), uma pulsão de morte (Tânatos) – uma vez que era a única forma de justificar uma barbaridade aparente inexplicável: a guerra mundial.
Ainda assim, o germanismo é um assunto do qual não se escapa quando se pensa em Beethoven. Em música, fala-se em Classicismo a partir de Haydn e Mozart e, em seguida, em Romantismo, a partir de Beethoven. Entre as muitas intenções por trás do termo clássico, deve estar a de aproximar as criações musicais do período à era dourada do “classicismo” grego, depois, romano, por último, renascentista. É o mínimo que se pode afirmar dessa fase, que teve, justamente, seus primórdios relacionados a Haendel e Bach. Coincidência ou são todos autores oriundos do mundo germânico? A tendência, natural, é objetar, evocando os italianos, como Vivaldi e os pais fundadores da ópera, como Monteverdi (tendo-se em conta, ainda, o quanto Beethoven admirava Rossini), mas a presença germânica na consolidação do que foi a música a partir daí não parece ameaçada. Nem com a inclusão dos franceses (Beethoven tinha muito respeito por Cherubini), nem com a inclusão dos espanhóis (Nietzsche, para se contrapor a Wagner, caiu de amores por Bizet), consegue-se fazer frente à trinca Bach, Mozart e Beethoven.
Falar em germanismo, além de tabu, está na base de toda incorreção política durante o século XX. Pois qualquer pessoa sabe da adoração de Hitler por Wagner e da apropriação, pelos ideólogos do nazismo, das filosofias de Nietzsche e Schopenhauer. A ligação, quando se pensa nas qualidades da música a partir de Beethoven, passando seqüencialmente por Wagner, e na força dos filósofos como Schopenhauer, passando pelo discípulo Nietzsche, é feita, inconscientemente ou não, com o que há de mais monstruoso, desumano e abominável no hitlerismo e nas suas conseqüências, físicas e psíquicas, para a humanidade. Mas, assim como na música, é inegável também, no pensamento, a influência da filosofia produzida no seio dos povos germânicos. Desde Kant, que fundou praticamente sozinho a modernidade, até Marx, justamente responsabilizado por outro dos maiores desenganos do século passado: o totalitarismo de esquerda. Como esquecer, além dos referidos Nietzsche e Schopenhauer, Leibniz, Hegel, Husserl, Heidegger e Wittgenstein – eternamente plasmados por seus vizinhos franceses, que, desde Rousseau e Montaigne, provavelmente não surgiram com nada que não tivesse os pés fincados no pensamento de autores da língua alemã?
Saindo da controvérsia política e entrando no reino da arte, é impressionante como Beethoven pode embasbacar eternamente qualquer mortal. Desde as constatações já na adolescência e a infância de que seria um segundo Mozart (mesmo que Haydn achasse que isso “nem em cem anos”) até a vida adulta e a “velhice” (morreu com 57 anos), em que seguiu se reinventando até o final, bebendo nas águas de Haendel e Bach (pré-Clássicas), culminando com o contraponto duplo da Nona – quase indubitavelmente a maior obra de arte jamais concebida pelo espírito humano. Passando, claro, pela Eroica, pela Quinta, pela Sétima (o triunfo da dança, segundo Wagner), e também pela Quarta e pela Sexta – pois, feita a homenagem (depois cancelada) ao imperador, na Bonaparte, Beethoven responderia assim sobre a dúvida lançada a respeito de suas sinfonias de número par: “[Você estranhou?] É porque fiz muito melhor”. Aliás, a propósito de Napoleão, anotaria, do cume da montanha em que se encontrava: “É uma pena eu não compreender a arte da guerra tão bem quanto compreendo a arte da música. Eu o teria vencido”. Ou, então, quando se reconheceu um legislador não-autorizado do mundo (na expressão de Shelley): “Eu atingi tal grau de perfeição que me encontro acima de quaisquer críticas”. Ou, ainda, ciente de que não poderia realizar tudo o que seu desejo demandava: “Oh, seria tão maravilhoso poder viver milhares de vidas!”.
E outra fonte infinita de encantamento e surpresa é o que Lochwood chama de “força interior granítica”, transcendendo as dificuldades impostas pelo corpo e pela mente, mais notadamente as resultantes da sua progressiva surdez, que o fizeram registrar: “Para você, pobre Beethoven, nenhuma felicidade pode vir de fora; você precisa criá-la dentro de si mesmo”. Ou, quem sabe, de acordo com o relato de Haydn, autobiográfico, mas que poderia ter sido escrito por ele, Beethoven: “Eu vivia à parte do mundo, não existia ninguém ao meu lado para me confundir ou me aborrecer pelo caminho, e assim tive que me tornar original”. Fechando com a citação, biográfica, do poeta e escritor Marge Piercy, casando com a observação do próprio Beethoven, de que se sentia um filósofo aos 28 anos, e encerrando de vez a questão entre vida exterior e vida interior, onde sabiamente se exilou o autor da Sonata ao Luar: “Não posso permanecer nesse lugar excitante por muito tempo, mas, quando estou nele, nada mais importa”. O que talvez explique o desligamento crescente da realidade, cujo exemplo mais gritante foi a tentativa de suicídio de Karl Beethoven, na época sob os cuidados de seu tio Ludwig, que não abalou nem um pouco a composição dos últimos e, para variar, impressionantes quartetos de Beethoven.
Goethe sobre Beethoven
“A admiração, o amor e a estima, que já acalentava em minha juventude pelo único e imortal Goethe, ainda persistem. Sentimentos como esses não são expressos facilmente em palavras, particularmente por alguém inculto como eu, pois meu único desejo tem sido dominar a arte da música. Mas um sentimento estranho está me induzindo a dizer tudo isso a você, visto que vivo em seus escritos.”
Beethoven para Goethe
“Não toquei meu piano por vários dias”, afirmou Johann Wenzel Tomaschek, depois de assistir a um duelo pianístico entre Joseph Wölffl e Ludwig van Beethoven. E, de fato, o contato com Beethoven é paralisante. Mais uma vez, graças à biografia de Lewis Lockwood, lançada no Brasil pela editora Códex. O que se pode acrescentar, em termos de comentário, à obra do compositor alemão? À obra de possivelmente um dos maiores, senão o maior artista do mundo ocidental, segundo nos deixou sugerido Otto Maria Carpeaux? Beethoven é auto-suficiente e, a não ser que se esteja no mesmo nível para acrescentar algo em termos musicais, como fizeram, por exemplo, Berlioz e Wagner, o melhor mesmo é calar. E estudar seu legado. A atitude, humilde, dos biógrafos de personalidades desse porte tem sido, ultimamente, a mais correta: pesquisar, cruzar dados, montar uma narrativa e não conjecturar nada ou quase nada. Os adendos, proveitosos, estão fora do nosso alcance. Pelo menos, no caso de Beethoven. Diante da constatação dessa impossibilidade, digamos, de se reescrever a História, resta, a nós, passar ao largo de alguns pontos interessantes. E só. Por enquanto.
Provavelmente, a coisa que mais chama a atenção, hoje, tomando-se o universo de Beethoven, é o germanismo – e a certeza do quanto ele perdeu de terreno, tornando-se até pejorativo, obviamente depois de Hitler. Ou antes. O “germanismo” (se é que estamos tomando a acepção mais correta do termo) terminou associado ao nazismo, à suposta superioridade da “raça ariana” e aos delírios de grandeza do Terceiro Reich. E claro: depois da carnificina, da destruição e do evidente absurdo da Primeira e da Segunda Guerras, qualquer consideração sobre o caráter genuinamente alemão, vá lá, passou pelo resultado desses dois conflitos, onde a Alemanha foi um dos atores principais (infelizmente, para o mal), já que – como diz George Steiner – por pouco não tirou a Europa do mapa e não enterrou nossa civilização. Como se falar em germanismo depois desses horrores incorresse na inevitável conclusão: por mais portentosas e esplendorosas que tenham sido as realizações das nações e dos povos germânicos, redundaram em duas guerras mundiais que por pouco não nos soterraram. Ou seja: colocando de uma maneira bastante simples, valeu a pena? De que nos serviu, afinal de contas, o germanismo e a cultura “germânica”? Freud, por exemplo, no período entre guerras, revisou toda a sua teoria e incluiu, em contraponto à pulsão de vida (Eros), uma pulsão de morte (Tânatos) – uma vez que era a única forma de justificar uma barbaridade aparente inexplicável: a guerra mundial.
Ainda assim, o germanismo é um assunto do qual não se escapa quando se pensa em Beethoven. Em música, fala-se em Classicismo a partir de Haydn e Mozart e, em seguida, em Romantismo, a partir de Beethoven. Entre as muitas intenções por trás do termo clássico, deve estar a de aproximar as criações musicais do período à era dourada do “classicismo” grego, depois, romano, por último, renascentista. É o mínimo que se pode afirmar dessa fase, que teve, justamente, seus primórdios relacionados a Haendel e Bach. Coincidência ou são todos autores oriundos do mundo germânico? A tendência, natural, é objetar, evocando os italianos, como Vivaldi e os pais fundadores da ópera, como Monteverdi (tendo-se em conta, ainda, o quanto Beethoven admirava Rossini), mas a presença germânica na consolidação do que foi a música a partir daí não parece ameaçada. Nem com a inclusão dos franceses (Beethoven tinha muito respeito por Cherubini), nem com a inclusão dos espanhóis (Nietzsche, para se contrapor a Wagner, caiu de amores por Bizet), consegue-se fazer frente à trinca Bach, Mozart e Beethoven.
Falar em germanismo, além de tabu, está na base de toda incorreção política durante o século XX. Pois qualquer pessoa sabe da adoração de Hitler por Wagner e da apropriação, pelos ideólogos do nazismo, das filosofias de Nietzsche e Schopenhauer. A ligação, quando se pensa nas qualidades da música a partir de Beethoven, passando seqüencialmente por Wagner, e na força dos filósofos como Schopenhauer, passando pelo discípulo Nietzsche, é feita, inconscientemente ou não, com o que há de mais monstruoso, desumano e abominável no hitlerismo e nas suas conseqüências, físicas e psíquicas, para a humanidade. Mas, assim como na música, é inegável também, no pensamento, a influência da filosofia produzida no seio dos povos germânicos. Desde Kant, que fundou praticamente sozinho a modernidade, até Marx, justamente responsabilizado por outro dos maiores desenganos do século passado: o totalitarismo de esquerda. Como esquecer, além dos referidos Nietzsche e Schopenhauer, Leibniz, Hegel, Husserl, Heidegger e Wittgenstein – eternamente plasmados por seus vizinhos franceses, que, desde Rousseau e Montaigne, provavelmente não surgiram com nada que não tivesse os pés fincados no pensamento de autores da língua alemã?
Saindo da controvérsia política e entrando no reino da arte, é impressionante como Beethoven pode embasbacar eternamente qualquer mortal. Desde as constatações já na adolescência e a infância de que seria um segundo Mozart (mesmo que Haydn achasse que isso “nem em cem anos”) até a vida adulta e a “velhice” (morreu com 57 anos), em que seguiu se reinventando até o final, bebendo nas águas de Haendel e Bach (pré-Clássicas), culminando com o contraponto duplo da Nona – quase indubitavelmente a maior obra de arte jamais concebida pelo espírito humano. Passando, claro, pela Eroica, pela Quinta, pela Sétima (o triunfo da dança, segundo Wagner), e também pela Quarta e pela Sexta – pois, feita a homenagem (depois cancelada) ao imperador, na Bonaparte, Beethoven responderia assim sobre a dúvida lançada a respeito de suas sinfonias de número par: “[Você estranhou?] É porque fiz muito melhor”. Aliás, a propósito de Napoleão, anotaria, do cume da montanha em que se encontrava: “É uma pena eu não compreender a arte da guerra tão bem quanto compreendo a arte da música. Eu o teria vencido”. Ou, então, quando se reconheceu um legislador não-autorizado do mundo (na expressão de Shelley): “Eu atingi tal grau de perfeição que me encontro acima de quaisquer críticas”. Ou, ainda, ciente de que não poderia realizar tudo o que seu desejo demandava: “Oh, seria tão maravilhoso poder viver milhares de vidas!”.
E outra fonte infinita de encantamento e surpresa é o que Lochwood chama de “força interior granítica”, transcendendo as dificuldades impostas pelo corpo e pela mente, mais notadamente as resultantes da sua progressiva surdez, que o fizeram registrar: “Para você, pobre Beethoven, nenhuma felicidade pode vir de fora; você precisa criá-la dentro de si mesmo”. Ou, quem sabe, de acordo com o relato de Haydn, autobiográfico, mas que poderia ter sido escrito por ele, Beethoven: “Eu vivia à parte do mundo, não existia ninguém ao meu lado para me confundir ou me aborrecer pelo caminho, e assim tive que me tornar original”. Fechando com a citação, biográfica, do poeta e escritor Marge Piercy, casando com a observação do próprio Beethoven, de que se sentia um filósofo aos 28 anos, e encerrando de vez a questão entre vida exterior e vida interior, onde sabiamente se exilou o autor da Sonata ao Luar: “Não posso permanecer nesse lugar excitante por muito tempo, mas, quando estou nele, nada mais importa”. O que talvez explique o desligamento crescente da realidade, cujo exemplo mais gritante foi a tentativa de suicídio de Karl Beethoven, na época sob os cuidados de seu tio Ludwig, que não abalou nem um pouco a composição dos últimos e, para variar, impressionantes quartetos de Beethoven.
Ao contrário, porém, do que possa parecer, Beethoven não enfiou a cabeça na terra, como um avestruz, e esperou que o mundo consagrasse seu gênio criador. Foi, mais uma vez no dizer de Lockwood, um administrador incansável de sua produção e negociava diretamente com vários editores, procurando obter os maiores ganhos, a fim de que pudesse se dedicar, com certa folga, a uma das duas coisas que elevava o homem até o patamar dos deuses (junto com a ciência): a arte. Apesar de seu caráter conhecidamente misantropo, Beethoven tinha certeza de que era preciso “cortejar”, “como a um rei”, a sociedade. E foi assim, cioso de seus princípios, que se estabeleceu em Viena ainda jovem, partindo de Bonn, sua terra natal. Foi, como é sabido, aluno de Haydn (um Haydn mais requisitado do que se podia esperar – para prestar atenção no pupilo prodígio), e existe a hipótese de que haveria visto Mozart (“Preste atenção nele. Algum dia o mundo falará sobre ele” – apesar da suspeita, é uma declaração sem base factual), e também de que teria abençoado Schubert (“Realmente ele tem a centelha divina”, outra suspeita sem comprovação), mais um na lista de seus possíveis visitadores, no fim da vida, quando acontecia o que Wagner apropriadamente chamou de “peregrinação a Beethoven”.
Tão impressionante quanto o caráter “germânico” e a incomparável arte (e força) de Beethoven, contudo, foi sua capacidade – não apenas de artista, mas de profeta clarividente – de forjar o futuro e de condenar a música posterior (até hoje) aos moldes por ele lançados. O “futuro”, aqui, no mesmo sentido de Wagner, um dos maiores “teóricos” em cima do espólio de Beethoven, que construiu todo o seu projeto, de compositor, a partir da Nona – a qual, na mistura sem precedentes de canto e música instrumental, numa estrutura sinfônica, apontava o caminho que Beethoven supostamente indicava a seus sucessores. Do mesmo jeito, a música programática é “filha” de Beethoven. Do mesmo modo, o atonalismo. Stravisnki, Schoenberg. E Brahms, chamado de “retrô”, porque quis emular o Primeiro e o Segundo Beethoven(s), mas não o Último. O Primeiro Beethoven, obviamente, clássico (Haydn & Mozart); o Segundo, “beethoveniano”, pré-romântico...; o Terceiro, romântico, pré-...? (de Wagner a Schoenberg, e depois). Se estamos aprisionados no tempo da incompreensão da música contemporânea, pelo menos desde o século anterior, é, de certa maneira, por causa de Beethoven. Se, em termos eruditos, não conseguimos mais encontrar saída que não seja a dissonância, que não sejam as experiências terríveis de Boulez e, mais recentemente, de Stockhausen, é por “culpa” de Beethoven. Beethoven inventou o humano muito mais do Shakespeare, no dizer de Harold Bloom – pelo menos de lá pra cá, e no que diz respeito à “trilha sonora”. Aquele homenzinho “baixo e de aparência comum, com um rosto feio, avermelhado e cheio de marcas, (...) cabelo (...) muito escuro”, caindo desarrumado, “em torno do rosto” – segundo a descrição de uma contemporânea sua – trancafiou nossas esperanças musicais e levou consigo a chave, para a posteridade, para o túmulo. “(...) e se fica esperando sua volta”.
Por isso, apesar do germanismo ser hoje inadmissível (e estar fora de moda), graças à obra incomparável, ao exemplo de vida (e determinação) do futuro (ao menos, na música), continuamos louvando Beethoven. E continuaremos por muitos anos. Arrisco: até o fim dos tempos (embora essa expressão não tenha sentido, como provou Kant). Beethoven, quando não é fonte inesgotável de inspiração, em suas sinfonias, suas sonatas, seus quartetos, etc., é um porto seguro para quem quer desenvolver seus talentos, superando-se sempre. Beethoven, quando não é, digamos, um guia para o trato social e para, vá lá, a convivência em família, é um caso, no mínimo, interessante de sobrevivência a si mesmo, às próprias debilidades, psicológicas, orgânicas, humanas, enfim. E Beethoven, quando não é comparável a “gente como a gente”, graças a seu gênio, revela-se, ao mesmo tempo, extremamente palpável, pelas anotações, pelos cadernos, pelas cartas, pelos autógrafos – de um ser humano sempre cindido entre uma tarefa hercúlea, que se sabia capaz de realizar, e uma época comezinha, como todas, mas que lhe permitiu abrir asas e voar. Por isso, estamos salvos (ou temos onde nos resguardar). Por isso, leia-se Lewis Lockwood e quantos outros bons biógrafos de Beethoven se puder encontrar.
Tão impressionante quanto o caráter “germânico” e a incomparável arte (e força) de Beethoven, contudo, foi sua capacidade – não apenas de artista, mas de profeta clarividente – de forjar o futuro e de condenar a música posterior (até hoje) aos moldes por ele lançados. O “futuro”, aqui, no mesmo sentido de Wagner, um dos maiores “teóricos” em cima do espólio de Beethoven, que construiu todo o seu projeto, de compositor, a partir da Nona – a qual, na mistura sem precedentes de canto e música instrumental, numa estrutura sinfônica, apontava o caminho que Beethoven supostamente indicava a seus sucessores. Do mesmo jeito, a música programática é “filha” de Beethoven. Do mesmo modo, o atonalismo. Stravisnki, Schoenberg. E Brahms, chamado de “retrô”, porque quis emular o Primeiro e o Segundo Beethoven(s), mas não o Último. O Primeiro Beethoven, obviamente, clássico (Haydn & Mozart); o Segundo, “beethoveniano”, pré-romântico...; o Terceiro, romântico, pré-...? (de Wagner a Schoenberg, e depois). Se estamos aprisionados no tempo da incompreensão da música contemporânea, pelo menos desde o século anterior, é, de certa maneira, por causa de Beethoven. Se, em termos eruditos, não conseguimos mais encontrar saída que não seja a dissonância, que não sejam as experiências terríveis de Boulez e, mais recentemente, de Stockhausen, é por “culpa” de Beethoven. Beethoven inventou o humano muito mais do Shakespeare, no dizer de Harold Bloom – pelo menos de lá pra cá, e no que diz respeito à “trilha sonora”. Aquele homenzinho “baixo e de aparência comum, com um rosto feio, avermelhado e cheio de marcas, (...) cabelo (...) muito escuro”, caindo desarrumado, “em torno do rosto” – segundo a descrição de uma contemporânea sua – trancafiou nossas esperanças musicais e levou consigo a chave, para a posteridade, para o túmulo. “(...) e se fica esperando sua volta”.
Por isso, apesar do germanismo ser hoje inadmissível (e estar fora de moda), graças à obra incomparável, ao exemplo de vida (e determinação) do futuro (ao menos, na música), continuamos louvando Beethoven. E continuaremos por muitos anos. Arrisco: até o fim dos tempos (embora essa expressão não tenha sentido, como provou Kant). Beethoven, quando não é fonte inesgotável de inspiração, em suas sinfonias, suas sonatas, seus quartetos, etc., é um porto seguro para quem quer desenvolver seus talentos, superando-se sempre. Beethoven, quando não é, digamos, um guia para o trato social e para, vá lá, a convivência em família, é um caso, no mínimo, interessante de sobrevivência a si mesmo, às próprias debilidades, psicológicas, orgânicas, humanas, enfim. E Beethoven, quando não é comparável a “gente como a gente”, graças a seu gênio, revela-se, ao mesmo tempo, extremamente palpável, pelas anotações, pelos cadernos, pelas cartas, pelos autógrafos – de um ser humano sempre cindido entre uma tarefa hercúlea, que se sabia capaz de realizar, e uma época comezinha, como todas, mas que lhe permitiu abrir asas e voar. Por isso, estamos salvos (ou temos onde nos resguardar). Por isso, leia-se Lewis Lockwood e quantos outros bons biógrafos de Beethoven se puder encontrar.
“Há alguns homens misteriosos que só podem ser grandes. E por quê? Nem eles mesmos sabem. Por acaso quem os enviou sabe disso? Têm na pupila uma visão terrível que nunca os abandona. Viram o oceano como Homero, o Cáucaso como Ésquilo, Roma como Juvenal, o inferno como Dante, o paraíso como Milton, o homem como Shakespeare. Ébrios de sonho e intuição em sua marcha quase inconsciente sobre as águas do abismo, atravessaram o raio estranho do ideal, e este os penetrou para sempre... Um pálido sudário de luz cobre-lhes o rosto. A alma lhes sai pelos poros. Que alma? Deus.”
Victor Hugo
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Texto originariamente publicado no site http://www.digestivocultural.com.br/
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