ENTREVISTA
COM
NIURA BELLAVINHA
DONIZETE GALVÃO: Você estudou canto e violão. Depois, foi para a litografia. Como você vê o seu trajeto? Quando descobriu que sua vocação era a pintura?
NIURA BELLAVINHA: Sempre pintei, desde criança. Não aconteceu em minha vida aquela ruptura entre infância e adolescência, quando os pais proíbem o desenho e as horas de "bagunças que sujam tudo". Continuei pintando. Um dia percebi que não eram mais brincadeiras que me levavam àquilo. Algo mais estava me interessando. Além disso, tive o privilégio de crescer tendo meus olhos nos Atlantes e nos Profetas do Aleijadinho. Aí estava a melhor escola, o lugar onde a vida tem uma vibração indescritível. O violão foi uma paixão que me levou até a Escola Música de Minas, do Milton Nascimento, onde tive aulas de composição. Cheguei a compor umas 32 músicas instrumentais.
Ao mesmo tempo, me interessei muito pelo teatro. Aos 15 anos, participei de uma peça, A exceção e a regra de Brecht, em Belo Horizonte. O teatro é um movimento muito importante para o meu trabalho. Gosto de investigar todas as possibilidades do espaço. Até hoje me envolvo muito com o teatro, sempre que gosto do que me é proposto aceito imediatamente e mergulho. Me lembrei agora que John Cage participou de uma performance com meus objetos e figurinos na Bienal de São Paulo em 85, junto ao Grupo Pagu. Foi maravilhoso !
Já a litografia veio bem no início de minha entrada para a Escola Guignard. Eu fazia aulas com o Amilcar de Castro e a Lotus Lobo (uma gravadora de renome internacional e que mora em Belo Horizonte) viu uns desenhos meus. Primeiro ela me chamou para trabalhar no ateliê de Lito da escola e em seguida me convidou para participar da Casa Litográfica. A litografia foi um dos mais importantes fundamentos para a minha pintura. A pintura que vem da gravura tem uma outra abordagem, uma outra fatura, muito mais densa.
DONIZETE GALVÃO: Neste período de formação, o que Amilcar de Castro lhe ensinou?
NIURA BELLAVINHA: O Amilcar me ensinou o mais importante: a ter coragem para assumir o meu trabalho e brigar por ele. Uma tarde, há alguns anos, eu tinha um ateliê em um galpão na periferia de BH. Ele apareceu, como as vezes fazia, de surpresa. Abri a porta e ele me olhou e disse que eu parecia um samurai. Na parede estava uma pintura vermelha, de verticais, 5 metros de altura, o chão era um vermelho só, líquido, parecia sangue, o trabalho havia ficado pronto há poucas horas. Ele parecia ter vindo batizá-lo. Eu andava impressionada com a Floresta Crepuscular de Lasar Segall. Havia viajado varias vezes até São Paulo para ver a tela que data de 56, anterior ao meu nascimento, paralela à pintura de Barnett Newman. Estava tudo ligado.
As conexões também aprendi a fazê-las um tanto com o Amilcar, um tanto com o teatro e um tanto com a literatura, além da observação, da crônica diária sempre na ponta do lápis, como um exercício de memória.
DONIZETE GALVÃO: Que conexões você via entre Lasar Segall e Barnett Newman?
NIURA BELLAVINHA: Acho que ambos chegaram ao mesmo ponto, sem que um conhecesse o trabalho do outro. Newmam persistiu nesta questão do espaço verticalizado como se fosse um muro para o olhar. O olhar não atravessa essas pinturas. Não há menor possibilidade de perspectiva ou de gerar uma ilusão, o que eu, em particular, acho ótimo. Barnett vinha trabalhando nesta linha desde os anos 40. O quadro de Segall eu já conhecia de outros tempos, mas naquele época senti-me mais influenciada por ele, queria confirmar e reconfirmar.
DONIZETE GALVÃO: Além desses dois, quem você apontaria como influenciadores de sua arte?
NIURA BELLAVINHA: Eu tenho uma influência enorme da corrente que passa por Pollock e Iberê Camargo. Para mim, é evidente que Pollock vinha pensando a partir do cubismo de Picasso. Acho que o Iberê Camargo também bebeu nesta fonte. Ele partiu de um trabalho figurativo e chegou à explosão, a fragmentação, ao “all over” como composição. É a mesma linha de Pollock, fundada no morfológico mas que atinge em sua construção uma unidade abstrata.
Minha descoberta pessoal da pintura passa por tudo isso. A abstração a qual cheguei passa pelo entendimento do cubismo. É uma decorrência desse entendimento. Considerando que tive os olhos no barroco mineiro essa mistura deu ao meu trabalho uma sutileza especial.
DONIZETE GALVÃO: O grupo Pagu foi muito importante na sua carreira e também possibilitou que você criasse figurinos e cenários. Fale sobre este período bastante rico da sua vida e quais foram as suas descobertas.
NIURA BELLAVINHA: O Grupo Pagu foi um divisor de águas em Minas Gerais, era transgressor. Nosso trabalho foi, inclusive, no plano comportamental. Éramos na maioria adolescentes querendo descobrir e inventar uma vida especial. A orientação de Carmen Paternostro (diretora de teatro) , mais uma vez foi fundamento básico para a coragem , fazendo com que levássemos sempre adiante o trabalho em artes. E isto se cumpriu. Quase todos continuam trabalhando com artes. A atriz Bete Coelho, Nelson Fonseca, Kalluh Araújo, fizeram comigo parte das duas formações, participamos de todos os trabalhos da companhia.
Estudei naqueles idos de 80 a antropofagia de Mário de Andrade, Oswald, Tarsila e Pagu. Depois, os concretos e neoconcretos, o expressionismo alemão no cinema, teatro e artes plásticas, a Bauhaus e muito mais. Fiquei impressionada por Joseph Beuys e dele uma frase me acompanha até hoje: “Só o flexível é inabalável ". Na verdade, o primeiro espetáculo do grupo Pagu, Noturno para Pagu era uma ópera caipira, maravilhosamente encenada. Quantas saudades.
DONIZETE GALVÃO: Você falou de Oswald de Andrade e de Mário de Andrade? O que você leu e achou que foi importante para sua formação? E a paixão por Guimarães Rosa que você comentou na Galeria Milan?
NIURA BELLAVINHA: Leio de tudo um pouco, com preferência para Borges, Kipling, Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto, Murilo Mendes, Kafka, Beckett e um tanto de filosofia.
Acho importante também ler crítica de arte. Clement Greenberg, cujas colocações acho importantes, Harold Rosenberg quando fala de Barnett Newman em especial. Giulio Carlo Argan continua sendo um norte. No Brasil, leio Ronaldo Brito, Rodrigo Naves e Paulo Sérgio Duarte. É importante a teoria na crítica de arte até mesmo para concordarmos ou não com ela. O que me preocupa é que há gente inexperiente escrevendo em jornais que são lidos em todo o país.
Tenho verdadeira paixão por Guimarães Rosa. Venho de uma infância próxima aos negros e aos lavradores, de conversas à tardinha na porta da cozinha, cigarro de palha atrás da orelha, cheiro de terra e suor. Seu Joaquim, Seu Geraldo, Etelvina, Deusdete, Lia, Vó Conceição, Dinga, Geralda. Esta era minha turma depois da aula. Turma de pé no chão e enxada na mão. Ficava com eles nas pausas para o café e a prosa.
Mergulhei profundamente Grande Sertão: Veredas. Fiz um cenário que era uma montanha de terra trazida das regiões por onde Rosa havia passado “escrevinhando”. Os adereços eram bandeiras enormes pintadas com terra e sangue. As roupas de malha de algodão bem grossa, todas em tons de terra. Como se o homem estivesse sendo engolido pela terra. Estudei a relação de Rosa com os números. A trilha era do Milton Nascimento. Fiz incontáveis desenhos e projetos. Foram nove meses de trabalho duro.
DONIZETE GALVÃO: Suas telas do início dos anos 90 eram densas, sombrias. Você sempre buscou esta densidade? Desde adolescente, você já se via dessa forma?
NIURA BELLAVINHA: Eu sempre persegui uma densidade singular para os meus trabalhos. O trabalho do início da década de 90 não era particularmente mais denso. Mais sombrio, sem dúvida, mais obscuro, mas não mais denso. Acredito que na arte sempre existirá um mistério. Ouvi isto do José Resende certa vez e nunca mais me esqueci.
Como todo mundo, fui uma adolescente estranha. Pude fazer várias viagens para outros lugares, fui ao México e visitei a casa de Frida Kahlo e Diego Rivera no meio dos anos 70. Frida ainda não era tão conhecida quanto hoje e a casa nem estava aberta para visitação pública.
Fui à Jamaica e vi Bob Marley ao vivo na terra dele. Estive no Havaí e as aventuras radicais marcaram muito a viagem. Pude também ver Picasso, Giacometti, Brancusi, Pollock, Barnett Newman, Rembrandt, Monet, Marcel Duchamp e principalmente Matisse e Cézanne. Viajei muito pelo Brasil também, sempre que podia ia para a Bahia. Depois tive uma fase de ir direto pra São Paulo. O Rio também sempre foi um lugar de passeio para minha família, desde criança passávamos as férias nos hotéis da avenida Atlântica ou em apartamentos que eram alugados para temporadas. Eu, na minha estranheza, odiava ir à praia.
DONIZETE GALVÃO: Como você chegou ao trabalho das telas de linho superpostas? Como você lida com a intenção e o acaso?
NIURA BELLAVINHA: Fui avançando na pintura, entendendo o tempo da pintura, querendo a essência daquilo cada vez mais. Até chegar as telas superpostas foi um caminho, mas foi muito bom ter feito aqueles primeiros trabalhos. Sou muito inteira no que estou buscando e isto me dá um diferencial. Quero sempre a subversão do olhar. Acredito na transgressão como impulso e como uma das verdades da arte. Nelas residem a intenção e o acaso.
Falo no meu trabalho da incompletude do ser, muitos deles parecem inacabados, na verdade estão incompletos, outros se completam. Os superpostos, tratam do ver e do não ver. Eu explico: quando coloco duas telas brancas, uma sobre a outra, vou trabalhando a que está visível, trabalho com meus jatos de ar e água e também com a tinta no pincel. Depois de pronta e seca a tela separo-a da outra, coloco-as lado a lado e obtenho o resultado, o contraponto. O ver e o não ver. Isto para mim é intenção e acaso.
DONIZETE GALVÃO: Como você explica esta necessidade de subversão?
NIURA BELLAVINHA: O medo de romper é inerente ao humano. Quando falo de subversão e transgressão, estou falando de alguma coisa relacionada não apenas com a busca de liberdade, não apenas na transgressão como objeto, o que poderia se transformar numa prisão. A transgressão para mim é um compromisso em fazer o que se quer fazer e romper com as expectativas. Muitas vezes precisamos tirar da boca dos outros o argumento dos nossos trabalhos. Um pensamento teórico poderá criar uma ponte para o entendimento do trabalho plástico. A verdade do trabalho, entretanto, sempre estará nele mesmo. Os artistas precisam retomar o poder do argumento. Enquanto isso não acontecer, seremos peças de um jogo de interesses e egos alheios.
DONIZETE GALVÃO: Você vê em seu trabalho uma relação com barroco mineiro? Você não usa ícones evidentes do barroco, mas estabelece uma espécie de questionamento com ele. Há um conflito, uma relação de atração e distanciamento?
NIURA BELLAVINHA: A subversão do olhar é o caminho que me leva sempre ao barroco. Há sempre um conflito estabelecido, mas isto é a mola, o que me move. Quero sempre falar da contradição e não propor uma harmonia. O barroco que influencia meu olhar é muito poderoso porque Ouro Preto é uma grande instalação. Quando entro em Ouro Preto minha alma treme, aquilo tudo provoca uma reação química em mim, que vai além da contemplação. Muitas vezes o sentido original das peças está evaporado e este é o habitat da abstração. Lotus Lobo e Amilcar de Castro reforçaram isto em mim. Na década de 70, aos 13 anos, em Nova York, vi Guernica de Picasso e outros trabalhos dele, vi Pollock, voltei transformada e transtornada. A pintura tem uma relação muito forte, essencial, com a memória e a expectação.
DONIZETE GALVÃO: Fale um pouco sobre aquela fase das “despinturas” em que você usava jatos de água.
NIURA BELLAVINHA: Outro dia falei sobre isto em outra entrevista. Tenho gostado de falar sobre elas. Foi um momento de virada no meu trabalho, fiquei no ateliê até às 4 horas da manhã pintando, pintando, acumulando tinta sobre tinta. Num dado momento, depois de raspar muito a tela e voltar a colocar mais tinta, resolvi puxar a mangueira de água que vinha do tanque e passei a lavar a tela e foi ficando tudo preto e muito molhado. Bem, já eram 4 horas da manhã. Troquei a roupa e fui pra casa. Não dormi, queria que a tela secasse para voltar a trabalhar. Dei a noite por perdida. O dia amanheceu, a empregada chegou, serviu meu café, dei alguns telefonemas e voltei para o ateliê. A tela estava seca, mas o que se revelou foi algo surpreendente. Percebi de imediato que ali estava o meu invento pessoal, minha pequena máquina de pintar que seria constituída de jatos de água e ar comprimido para tinta a óleo. Sem dúvida, eu buscava mais e mais uma arqueologia do gesto. Eu estava em busca do gesto original, escavando a tela. O Charles Cosac certa vez me disse que o meu processo era como o das escavações nas minas de pedras preciosas. Fui até lá ver e realmente o que ele disse fazia sentido. Minha pedra preciosa, a repetição do gesto, dar alma à matéria.
DONIZETE GALVÃO: Você não acredita em rótulos como geração. Sempre preferiu uma criação mais solitária? Mas quem você vê como seus pares ou interlocutores? Com quem você sente afinidade?
NIURA BELLAVINHA: Hoje, no Rio, tenho estado com o Paulo Sérgio Duarte e com a artista Gabriela Machado. Gosto muito de conversar sobre o trabalho, são duas pessoas muito queridas e que estão interessadas verdadeiramente na arte. Realmente não acredito em rótulos para uma geração, não creio que seja certo colocar todo mundo dentro de um mesmo termo. O que mais me preocupa são as novas normas e formas a serem cumpridas, uma predeterminação enorme, imposta, vinda de fora, algo que deve representar a América Latina. É tudo muito reduzido. Sinto afinidade com aqueles que acreditam na verdade que a arte contempla, muito mais que mercado e a curadores e marchands.
DONIZETE GALVÃO: O que você tem a dizer sobre a difícil relação do artista com o mercado? Ser exposta no Gabinete do Presidente trouxe algum retorno além da polêmica?
NIURA BELLAVINHA: Não creio que haja no Brasil o exercício pleno de um mercado de arte. Talvez agora esteja começando uma nova onda, mas sempre será assim. São ondas que vão se sucedendo. Hoje, dá para se viver do trabalho sempre com instabilidade.
A tela para o Gabinete do Presidente provocou polêmica, me disseram que ele mesmo não gostou da referência que fiz aos sem-terra. Pintei o tríptico sob o impacto da notícia da chacina do Pará (Eldorado dos Carajás), as telas eram vermelhas. Enviei-as para o Planalto e no dia da inauguração havia uma passeata dos sem- terra, eles grudaram um adesivo no meu casaco, fui a única a entrar no Palácio com o adesivo, a segurança pediu que eu o retirasse, não o retirei e entrei. Eu estava muito emocionada, era uma coincidência incrível. O Fernando Cochiaralli falara sobre meu trabalho, ele disse que era um grito, essencialmente um grito, sem ter a figura de alguém gritando. O Presidente me perguntou se eu concordava com o Cochiaralli, ao que respondi sim e coloquei minha referencia à instabilidade e ao cinza que estavam e permanecem à nossa volta.
Muitas pessoas me procuraram para comprar trabalhos e também para entrevistas. Eu na verdade só havia aceitado o convite pensando em falar com o Ministro da Cultura e o Presidente sobre as dificuldades pelas quais passamos, principalmente sabendo que ao expor no Gabinete não receberíamos nenhum pró-labore. Foi um momento agitado, não havia clima nem espaço para uma conversa mais consistente, a chacina era recente e o paralelo foi entendido, segundo o que me disseram como injustiça de minha parte. A verdade é que não sou eu a responsável pelo sentimento de culpa dos outros.
DONIZETE GALVÃO: Na Casa das Rosas você colocou uma imensa escultura de vidro. Por que você decidiu voltar-se para a escultura e em que o vidro lhe interessa? Quais as possibilidades que ele oferece?
NIURA BELLAVINHA: Trabalhar com escultura, o tridimensional, sempre esteve no meu interesse. Quero trabalhar uma escultura que venha de dentro da minha pintura. O vidro fala da repetição, da transparência, do anonimato em se tratando daquele trabalho especificamente. Há também a questão da dimensão pública da arte. Há alguns anos falei sobre isto com o Walter Sebastião, dizia que minha pintura tinha esta atenção para o espaço público. Eu não quero ficar restrita à coleções e casas particulares. O acesso difícil não me interessa. Quero uma relação com o passante, com a rua, quero “aprender a falar com desconhecidos", como dizia Paulo Leminski. A pintura fica encerrada dentro de construções. A escultura se prolonga, se propaga no exterior. Aquele vidro tinha uma leve inclinação, uma referencia à gravidade, o que também na pintura é contingência e me sirvo disto para trabalhar.
DONIZETE GALVÃO: Seu ateliê fica num lugar maravilhoso que é a Urca, no Rio. A geografia da cidade lhe influenciou, mudou alguma coisa em sua pintura?
NIURA BELLAVINHA: Meu ateliê é onde eu estou, na verdade é o meu pensamento, minha idéia. Estou aprendendo isto a cada dia, tenho sofrido, mas estou aprendendo. Agora, por exemplo, estou desenvolvendo um trabalho em uma indústria, em São Paulo, para a mostra da Pinacoteca. Parece que vai ser muito bom trabalhar este outro lado da criação. No teatro me vi envolvida com projetos a serem executados, no caso das esculturas não tenho projetos, vou direto às peças, mas é fundamental que sejam executadas industrialmente. E para estes trabalhos o que eu quero é usar da arquitetura e da geometria para escapar delas. Pensando bem, no vidro já foi assim e o mesmo para as pinturas em grandes dimensões que venho fazendo há mais de 7 anos. A geografia do Rio em nada me influenciou. Na verdade, eu queria estar mais perto das pessoas com as quais troco idéias, sobretudo em relação à arte.
DONIZETE GALVÃO: Como é seu dia de trabalho? Você acredita em inspiração ou trabalha com projetos mais conceituais? Você gosta deste embate físico com as telas?
NIURA BELLAVINHA: Meu dia de trabalho é intenso. Muitas vezes, quando estou envolvida na pintura quase não consigo parar. Vou noite adentro. Sem dúvida em alguns casos há uma relação física com o trabalho, principalmente os de dimensão pública. Eu adoro isto. Trabalho ouvindo todo tipo de música. Chopin, Schubert e Wagner. Tive uma fase de ouvir muito Phillip Glass. Atualmente, ouço muito Ry Cooder, P.J. Harvey, muita MPB e o Buena Vista de Cuba.
DONIZETE GALVÃO: Apesar de ver a arte de uma forma transgressora, você não abandona as formas tradicionais que são a pintura e, agora, a escultura. O que você acha desta febre de instalações das últimas bienais?
NIURA BELLAVINHA: Para mim, transgredir hoje é pintar, fazer esculturas, enxergar nisso a modernidade. Estamos em outra fase da modernidade. Quando penso no Hélio Oiticica e na Lygia Clark percebo que o que faziam estava no cerne da questão importante naquele período. Hoje, o que estão fazendo é banalizar aquilo. A globalização acabou trazendo estereótipos para rotular a arte dos países ditos do terceiro mundo. Parece-me que o tempo todo eles ainda estão paralisados pela revelação, no início do século, da complexidade de linguagem de povos não civilizados. Isto causa um descompasso. Percebo que há um grupo de artistas, que poderiam fazer um trabalho coerente e profundo, pegar carona neste “bundalelê” que virou tudo. Alguém precisa distribuir analgésicos para a febre e descongestionar o olhar urgentemente. Muitos querem a fama e o sucesso muito rápidos. Os artistas precisam mudar de atitude e não colocar nas mãos dos marchands e curadores a responsabilidade por essa direção equivocada. O problema nem está na instalação em si, mas na sua banalização. O artista e seu trabalho de ateliê vão desaparecendo, o que é uma perda irreparável. Alguma coisa precisa ser feita, pois estamos tratando do nosso trabalho, nossa identidade e cultura.
Nenhum comentário:
Postar um comentário