quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Hugo Friedrich e Donaldo Schüler discutem Rimbaud



HUGO FRIEDRICH
O Barco Bêbado[1]

            Vamos falar agora da mais famosa poesia de Rimbaud, “Le bateau ivre” (1871). Ele a escreveu sem conhecer os mares e países exóticos que nela resplandecem. Supôs-se que ele havia sido incitado a tais imagens por revistas ilustradas. Pode ser verdade, mas o fato serve apenas para confirmar o que se pode deduzir da própria poesia. Esta não tem nada a ver com qualquer realidade. Uma fantasia potente e violenta cria uma visão febril de espaços dilatados, turbulentos, totalmente irreais. A pesquisa costuma apontar vagas lembranças isoladas de outros poetas. Todavia estas reminiscências – que, aliás, são reelaborações – não podem ocultar o fato de que a poesia tem um centro energético inteiramente seu. Ela foi comparada com “Plein ciel” (em La Légende des Siècles): tanto aqui como lá, aparece um navio que se choca contra o céu. Mas em Victor Hugo, as massas de imagens estão a serviço de um pathos trivial do progresso e da felicidade. “Le bateau ivre” desemboca, ao invés, na liberdade destrutiva de um solitário e náufrago. Para a tessitura de ação desta poesia não existe outro modelo que o próprio Rimbaud. É uma sobrelevação extrema, conseqüente, daquela elevação que já atua em “Ophélie”, do limitado mediante o infinito.
               O protagonista da narrativa é um navio. Não está expresso mas, de forma inequívoca, os acontecimentos denotam, ao mesmo tempo, os acontecimentos do sujeito poético. As imagens possuem uma potência tão veemente que a equivalência simbólica entre navio e homem mostra-se apenas no curso dinâmico de todo o conjunto. As próprias imagens suscitadas são particularidades visíveis, agudamente indicadas. Quanto mais estranhas e irreais se tornam as imagens, tanto mais sensível é sua linguagem. Favorece este fato a técnica poética de construir o texto exclusivamente com metáforas absolutas, falando só do navio, nunca do eu simbolizado. O fato de Banville, para quem Rimbaud havia lido a poesia, censurar que, infelizmente, ela não começasse com as palavras: “Eu sou um navio que...”, demonstra o quanto o procedimento pareceu ousado. Banville não compreendeu que a metáfora aqui já não é apenas uma figura de comparação, mas cria uma identidade. A metáfora absoluta permanecerá um meio estilístico dominante da lírica posterior. Em Rimbaud, corresponde a um traço fundamental de sua poesia que será tratado mais adiante sob o título de “irrealidade sensível”.
               “Le bateau ivre” é um ato único de expansão. Pausas ocasionais são inseridas, depois das quais a expansão recomeça, com veemência renovada, para conduzir, em alguns trechos, a uma explosão caótica. O processo narrativo começa primeiro com certa calma, o navio apenas flutua rio abaixo. Mas até esta calma era precedida por um embate: o navio não se preocupa com sua tripulação, assassinada à margem do rio. Então, de improviso, tudo se desfaz. O flutuar segundo a corrente transforma-se em uma dança do navio que se despedaça em tempestades e mares, passando por todas as terras: uma dança em noites verdes, entre putrefações, entre perigos, sinais de morte e “fosforescência cantante”, arremessado ao alto, ao éter sem pássaros, abrindo brechas no céu avermelhado como um muro – até sobrevir a reviravolta, a saudade da Europa. Mas a saudade já não conduz a pátria alguma. O navio evoca um breve idílio, o de uma criança que, no perfume do entardecer, brinca perto de uma poça. Mas isso é um sonho que não consola, porque o navio sabe estar viciado para a mesquinhez da Europa, pois respirou a amplidão dos mares e dos arquipélagos de estrelas. Como na tranqüilidade do início o embate havia sido absorvido, na tranquilidade entediante da conclusão, a expansão aniquiladora das estrofes precedentes é absorvida. É a tranqilidade do não poder mais, do naufrágio no infinito, como também da inaptidão para o que é limitado.
               A poesia apresenta um alto nível de correção técnico-estilística. Além disso, possui uma estrutura simples de período que confere ao que foi expresso uma transparência formal. A explosão ocorre não na sintaxe, mas nas representações. Ou melhor, o efeito da explosão é tanto mais violento porquanto se acha em desarmonia formal com as ligações entre os vários períodos. As representações, em si, são protuberâncias da fantasia que, não só de estrofe a estrofe, mas também de verso a verso e, às vezes, até mesmo dentro de um mesmo verso, acrescentam ao longínquo e selvagem maior selvageria e distância. As imagens são incoerentes entre si. Nenhuma deriva necessariamente da outra, de modo que delas resulta uma arbitrariedade que permitiria trocar estrofes inteiras entre si.   Como agravante, acresce o fato de que os complexos de imagens isoladas nascem da mistura das coisas mais opostas, da combinação daquilo que, objetivamente, é inconciliável, do belo com o repugnante, do sórdido com o extático, mas também de um emprego singular de expressões técnicas, preponderantemente náuticas. Num quadro sintático, ainda não abalado, fermenta o caos.
               E, todavia, também este caos tem sua articulação. De novo, as direções são mais importantes que os conteúdos suscitados. A dinâmica da poesia permite às imagens a manifestação arbitrária e incoerente, pois são apenas sustentáculos dos movimentos autônomos. Estes procedem claramente em três atos: repulsa e revolta, fuga par ao superdimensional, mergulho na tranqüilidade do aniquilamento. Estes três atos constituem a tessitura da ação, não só de “Le bateau ivre”, mas de toda a poesia de Rimbaud. Em muitos particulares, o caos do conteúdo já não se presta à interpretação. Mas tal lírica torna-se interpretável quando se penetra na tessitura de sua ação. Por consequinte, é lógico que tal lírica se torne cada vez mais abstrata. O conceito abstrato, assim como é usado aqui, não se limita à significação do não visível, não concreto. Deve antes designar aqueles versos, grupos de versos, frases que, bastando-se a si mesmos, representam dinamismos lingüísticos puros e, por meio destes, destruam até a incompreensibilidade, ou não tolerem, de modo algum, um possível vínculo de realidade dos conteúdos. Deve-se ter presente este fato ao analisar grande parte da lírica moderna, sobretudo daquela que está aparentada com o tipo da lírica de Rimbaud.
Neste poeta a tríplice tessitura da ação representa seu relacionamento tanto com a realidade como com a transcendência: deformação da realidade, ímpeto à amplidão, final na ruína pois a realidade é restrita demais, a transcendência, vazia demais. Um período em prosa resume o que acabamos de dizer numa cadeia de conceitos: “mistérios religiosos ou naturais, morte, nascimento, futuro, passado, cosmogonia, Nada”. No elo final está o Nada.

DONALDO SCHÜLER
O Barco Bêbado de Rimbaud[2]

               O poema situa o leitor aparentemente numa paisagem romanesca e romântica: um barco deslizando desgovernado rio abaixo, após um ataque de índios peles-vermelhas. Já ninguém se preocupa pela carga, trigo flamengo e algodão inglês. O barco, rompidas as sirgas, vai em busca de seu próprio destino. O poema, no entanto, remete o leitor para além dessa realidade plástica. Em breve se percebe que o barco não é o barco, rios não são rios, índios não são índios, sirgas não são sirgas, equipagem não é equipagem. A referência ao mundo dos sentidos se volatiza, no momento em que o eu lírico se identifica com o barco. O barco passa a ser símbolo de um eu que anda sem norte. Os rios simbolizam a vida. Os pele-vermelhas simbolizam forças indômitas, desordeiras que rompem as normas pelas quais o homem é conduzido significativamente nos caminhos retos de um mundo legislado.
 Em que o poeta se banha, em absoluta liberdade, rompidos todos os vínculos com a realidade da gente sensata, é um Mar irreal e belo. O Mar não é nenhum mar localizável nos mapas, é um mar que compõe a geografia dos sonhos, criação artística, feita com a substância verbal do poema.  Uma imagética alucinante construiu, sem entraves, uma paisagem delirante, que olhos nenhuns jamais viram. A noite é verde em neves deslumbrantes, beijos sobrem lentos às pálpebras dos mares, santelmos cantam, os pés radiosos das Marias curvam as jubas aos arfantes Oceanos. A proa, em Floridas utópicas, vê homens-panteras, de olhos fulvos e estranhos, o arco-íris freia glaucos rebanhos, nos distantes confins do mar...
O Mar simboliza o mundo da beleza supra-sensível que busca, mundo que o poeta gostaria de mostrar a crianças. Mas o símbolo tomba no vazio, no nada. O mundo é construído pelo poema não é um mundo concreto, tem a precariedade dos sonhos e, como os sonhos, desfaz-se. A água que lhe resta é uma poça escura e fria, a sua realidade física e material, em que um menino, agachado e triste, solta um barco frágil como uma borboleta.
Se o nada é o mar em que navega o poeta, simbolizado pelo Mar do poema, a fragilidade se insere do próprio eu de quem navega. O eu é um barco fendido, inevitável é o naufrágio, o aniquilamento, o nada.
Le Bateau Ivre de Rimbaud é o antípoda do mito da caverna de Platão. Platão povoa o mundo ideal de realidades concretas; Rimbaud constrói o mundo ideal com as imagens fugidias do sonho. Platão dá sentido a vida do homem; Rimbaud desvenda a falta de sentido do homem. Platão afirma o ser; Rimbaud, o nada.


[1] - Texto que integra parte do capítulo “Rimbaud”, do livro seguinte: FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da Lírica Moderna. Trad. Marise M. Curioni. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1991. pp. 73-5.
[2] - Este texto faz parte do ensaio “As Raízes da Poesia Moderna”, de Donaldo Schüler, publicado em: Aspectos do Modernismo Brasileiro. Porto Alegre: UFRGS, 1970. pp.57-9.
Para quem quiser se aprofundar um pouco mais na interpretação de Le Bateu Ivre fornecemos a seguinte referência: MEYER, Agusto. Le Bateu Ivre – Análise e Interpretação. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1955.

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