quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

A loucura, a inspiração e o demônio da Arte


por Jardel Dias Cavalcanti



“olha, repara, ausculta (...)
vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo”.
(Drummond)

Platão dizia que a inteligência do artista não é discursiva, nem intuitiva, mas a do arrebatamento e do entusiasmo, que toma o criador numa possessão que provém de algo quase inumano. Estava ele falando da inspiração ressuscitada posteriormente pelos românticos? Sim. E esta inspiração, segundo ele, não é diferente do delírio que acomete os participantes das orgias dionisíacas. Em sua obra Íon, diz que o artista só pode criar “quando se transforma num homem que a divindade habita e que, perdendo a cabeça, fica inteiramente fora de si mesmo. Sem que essa possessão se produza, nenhum ser humano será capaz de criar e de vaticinar”.
Para o filósofo, a verdadeira arte não depende apenas da póiesis (operação produtiva controlada), mas do delírio, categoria bem maior que o bom-senso puramente humano. É o delírio do artista que produz as asas que levarão os receptores à recordação da beleza universal imperecível.
E Aristóteles dizia que enquanto a História narra os acontecimentos de natureza apenas circunstanciais e singulares, a arte representaria aquilo que é essencial. Se se pode falar em mimese em arte, podemos dizer que o artista não imita o que é individual e contingente, mas o que é essencial, não imita as coisas como são, mas como devem ser, de acordo com os princípios dos universos profundos.
O artista é aquele ser de exceção, como dizia Schelling, que pode elevar-se, por intermédio da Arte, ao conhecimento dos segredos da natureza. Mas essa elevação existe, como indicou Thomas Mann, no Doutor Fausto, porque está não só “sob o influxo de forças infernais, mas necessita ser fecundado pelo contato com elas”.
Ele prossegue: “uma inspiração deveras deleitosa, fascinante, indubitável, fervida; uma inspiração na qual não há nem escolha nem correção nem remendos e na qual se escolhe tudo como um benfazejo ditado; uma inspiração que faz com que o passo estaque e tropece, com que sublimes tremores percorram da cabeça aos pés o ente agraciado e lhe arranquem dos olhos uma torrente de lágrimas de felicidade – não, tal inspiração não é possível com Deus, que abandona demasiado trabalho ao intelecto. É possível unicamente ao Diabo, o verdadeiro senhor do entusiasmo.”
É o mesmo Mann, ou melhor, seu personagem infernal, quem questionará o desaparecimento da inspiração no mundo moderno: “Quem sabe ainda hoje, quem sabia até mesmo na época clássica o que é inspiração, o velho estro autêntico, primevo, não deteriorado pela crítica, pela lerda ponderação, pelo mortífero controle do intelecto, o sagrado transe?”

Segundo Octávio Paz, a inspiração existe desde a antiguidade, mas sua existência no mundo moderno sofreu sua maior condenação pela ordenação econômico-social-racional-burocrática-burguesa que invadiu o reino da estética. O verdadeiro nome da inspiração era preguiça, descuido, amor pela improvisação, facilidade. O ato poético passou a ser o mesmo ato social burguês: trabalho e disciplina. Transferia-se dessa forma as noções da moral burguesa para o campo das artes. O artista inspirado torna-se, para a sociedade em geral, irmão do criminoso e do demente, porque fecundado por forças “irracionais”.
Mais do que fecundado por estas forças, ele assusta porque inspira o mesmo delírio: “Que felicidade inefável! Estou fora de mim! Eis o que chamo de novo e grande! Oh, fervorosa delícia da inspiração! Minhas faces estão em brasa, qual ferro derretido. Deliro, e vós delirareis, quando isso chegar a vossas mãos!” (Thomas Mann - Doutor Fausto).
Seguindo a mesma idéia, o pintor alemão Friedrich dirá que “toda obra autêntica é concebida em um momento sagrado, um impulso de dentro a cria, freqüentemente à revelia do artista”.
Segundo Nise da Silveira, comentando a relação entre o artista e o esquizofrênico, esses seres que vivem fora do mundo banal cotidiano, o artista é aquele que desce às funduras imensas do inconsciente, às vezes até a divindades arcaicas e ao próprio centro ordenador da psique (self), o qual, sendo uma totalidade, inclui necessariamente aspectos luminosos e escuros”.
O artista, como o louco, é um veículo de conhecimentos extraordinários, inacessíveis à maioria dos homens; como um adivinho, possuído por forças misteriosas que são instrumentos de seus designos, fala de mundos sem saber muito bem do que fala. Mas ele intui que a vida obscura está em constante comunicação com uma outra realidade, mais vasta, anterior e superior à vida individual comum. O artista e o louco pressentem que existe uma unidade, perdida na idade da razão, entre um mundo exterior, real, e um mundo interior, imaginário. Eles não perderam a memória do tempo em que a separação entre esses mundos ainda não havia ocorrido.
Ser artista, no sentido mais elevado do termo, é um dom metafísico, algo essencial: é um estrutura e um destino. É ser original, conservar-se próximo das fontes da vida, erguer-se e sacudir as amarras de uma civilização obsoleta, ousar o que os outros não têm coragem de arriscar, e saber voltar a imergir no elementar – ou seja, viver com plena vitalidade a parte natural do ser e seu lado demoníaco: a criação artística.

Habitar poeticamente o mundo, isto é, experimentar uma situação originária que se quer dizer, é a maneira de ser do artista. A obra do artista nasce desse encantamento que se experimenta quando, repentinamente, as coisas retomam por um instante a sua novidade primeira. Nesse momento, segundo Foucault, é quando “o homem mergulha na noite e descobre, ao fim desta noite, uma luz que é das coisas em seu primeiro começo”.
E os deuses, os demônios, os infinitos, dão tudo, inteiramente, a seus favoritos, os artistas: todas as alegrias, as infinitas, todas as dores, as infinitas, inteiramente.

***
As obras que ilustram esse artigo são, por ordem de aparição, dos seguintes artistas plásticos: Ronald Polito, Maria Ioe, Aprigio Fonseca.

4 comentários:

  1. acho que na verdade os críticos fogem disso, a paixão, a loucura, a isnpiração, são a cruz da crítica

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  2. A arte expressa a forma de conhecimento humano,oportuniza ao indivíduo,disciplina e manifestação estética.A comunicação é o sentimento do artista, revelando a concepção poética.

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