sábado, 8 de setembro de 2012


MARX E A QUESTÃO JUDAICA

 

"Sobre a Questão Judaica" (em alemão: "Zur Judenfrage") é um ensaio de Karl Marx escrito no outono de 1843. É uma das primeiras tentativas de Marx de lidar com categorias que seriam chamadas mais tarde de Materialismo histórico - concepção materialista da história. Tem-se argumentado que que a obra contém manifestações de anti-semitismo - ver seção Interpretação abaixo.

O ensaio critica dois estudos sobre a tentativa dos judeus de conseguir emancipação política na Prússia de autoria de outro jovem hegeliano, Bruno Bauer. Bauer argumentou que os judeus somente poderiam atingir a emancipação política se renunciassem a sua consciência religiosa particular, uma vez que a emancipação política requer um estado secular, que ele assume não deixar muito "espaço" para identidades sociais como a religião. De acordo com Bauer, as demandas religiosas são incompatíveis com a idéia de "Direitos do Homem." A emancipação política verdadeira, para Bauer, requer a abolição da religião.

Marx usa o ensaio de Bauer como uma oportunidade para a sua própria análise dos direitos liberais. Marx argumenta que Bauer está equivocado na sua suposição de que num "estado secular" a religião não iria desempenhar um papel proeminente na vida social, e, como exemplo se refere à persistência da religião nos Estados Unidos, que, ao contrário da Prússia, não tinha religião de estado. Na análise de Marx, o "estado secular" não está em oposição à religião, na verdade a pressupõe. A remoção das qualificações de cidadãos relacionadas à religião ou à propriedade não significava a abolição da religião ou da propriedade, apenas introduzia uma nova forma de ver o cidadão desconexo dessas coisas.

[1] Nessa nota Marx vai além da questão da liberdade religiosa em direção à sua preocupação maior - a análise de Bauer da "emancipação política." Marx conclui que enquanto indivíduos podem ser 'espiritualmente' e 'politicamente' livres em um estado secular, eles ainda podem estar presos à restrições materiais sobre a sua liberdade pela desigualdade de renda, uma suposição que iria formar mais tarde de sua crítica ao capitalismo.

No ponto de vista de Marx, Bauer falha em distinguir emancipação política e humana: como assinalado acima, a emancipação política em um Estado moderno não requer que os judeus (ou os cristão, por esse motivo) renunciem à religião; apenas a emancipação humana completa envolveria o desaparecimento da religião, mas isso ainda não seria possível, não "na a ordem mundial ora existente".

Na segunda parte do ensaio (que é significativamente mais curta, no entanto uma das mais discutidas e citadas atualmente), Marx questiona a análise "teológica" de Bauer do judaísmo e sua relação com o cristianismo. Bauer afirmara que a renúncia da religião seria especialmente difícil para os judeus, uma vez que judaísmo é, a seu ver, um estágio primitivo no desenvolvimento do cristianismo; assim, para alcançar a liberdade através da renúncia da religião, os cristãos teriam que atravessar apenas um estágio, enquanto os judeus teriam de atravessar dois. Em resposta a isso, Marx argumenta que a religião judaica não precisa ter todo o significado que assume na análise de Bauer, porque ela é apenas um reflexo da vida econômica dos judeus. Esse é o ponto de partida de um argumento complexo e um tanto metafórico que parte do estereótipo do judeu como um "trambiqueiro" financeiramente hábil e estabelece uma conexão entre o judaísmo enquanto religião e a economia da sociedade burguesa contemporânea. Dessa forma, a religião judaica não apenas não precisaria desaparecer naquela sociedade, como argumenta Bauer, mas é na verdade parte natural dela. Tendo equacionada figurativamente o "judaísmo prático" com "trambicagem", Marx conclui que "os cristãos tornaram-se judeus"; e, em última instância, é a humanidade (tanto cristãos quanto judeus[2]) que necessitam se amancipar do judaísmo ("prático"). [3] Excertos desse trecho do ensaio são frequentemente citados como prova do anti-semitismo de Marx. Para análise a esse respeito, ver a seção Interpretações.

Zur Judenfrage foi primeiramente publicado por Marx e Arnold Ruge em Fevereiro de 1844 no Deutsch–Französische Jahrbücher. De dezembro de 1843 a outubro de 1844, Bruno Bauer publicou o mensal Allgemeine Literatur-Zeitung (Gazeta Literária Geral) em Charlottenburg (hoje Berlim). Nele, ele respondeu às críticas feitas aos seus próprios ensaios sobre a questão judaica feitas por Marx e outros. Então, em 1845, Friedrich Engels e Marx publicaram a polêmica crítica dos Jovens Hegelianos intitulada Sagrada Família. Em partes[4] do livro, Marx novamente apresentou sua visão, distinta da de Bauer, sobre a questão judaica e a emancipação política e humana.

Uma tradução francesa apareceu em 1850 em Paris no livro 'Qe'est-ce que la bible d'apres la nouvelle philosophie allemand, de Hermann Ewerbeck.

Em 1879, o historiador Heinrich von Treitschke publicou o artigo Unsere Aussichten (Nossos Prospectos), no qual ele demandou que os judeus fossem assimilados à cultura germânica e descreveu os imigrantes judeus como uma ameaça à Alemanha. Esse artigo inflamaria uma controvérsia, à que o jornal Sozialdemokrat, editado por Eduard Bernstein, reagiu republicando quase a totalidade da segunda parte de Zur Judenfrage em junho e e julho de 1881.

O ensaio foi republicado na íntegra em outubro de 1890 no Berliner Volksblatt, então editado por Wilhelm Liebknecht. [5]

Uma tradução para a língua inglesa de Zur Judenfrage foi publicada juntamente com outros artigos de Marx em 1959 sob o título "A World Without Jews".[6] O editor, Dagobert D. Runes, tinha a intenção de revelar o alegado anti-semitismo de Marx.[7] Essa edição é criticada porque o leitor não é informado que seu título não da autoria de Marx e por distorções no texto.[8]

Um manuscrito do ensaio ainda não foi transmitido.[5]

INTERPRETAÇÕES

Hyam Maccoby tem argumentado que o anti-semitismo de Marx se manifesta primeiramente no seu ensaio de 1843, "Sobre a Questão Judaica." Nele Marx argumenta que o mundo moderno comercializado é o triunfo do judaísmo, uma pseudo-religião cujo deus é o dinheiro. Maccoby sugere que Marx ficava constrangido por causa das suas origens judias e usava os judeus como um "yardstick of evil." Em anos posteriores, o anti-semitismo de Marx era na sua maior parte limitado a cartas e conversas privadas por causa da forte identificação pública com o anti-semitismo que tinham seus inimigos políticos tanto à esquerda (Pierre-Joseph Proudhon e Mikhail Bakunin) e à direita (a aristocracia e a Igreja).[9] Bernard Lewis encontrou muitas indicações de linguagem anti-semita nos trabalhos posteriores de Marx. Por exemplo, em um artigo Marx fala de judeus poloneses como "a mais suja das raças."[10]

De acordo com vários acadêmicos, para Marx os judeus eram a corporificação do capitalismo e os criadores de todos os seus males. A identificação de Marx do judaísmo com o capitalismo, junto com seus pronunciamentos sobre os judeus, influenciaram fortemente movimentos socialistas e moldaram suas atitudes e políticas e relação aos judeus. Seu ensaio influenciou anti-semitas nacional-socialistas, soviéticos e árabes.[11]

Abram Leon, no seu livro The Jewish Question (publicado em 1946)[12] examina a história dos judeus de um ponto de vista materialista. De acordo com Leon, o ensaio de Marx afirma que “não é necessário começar pela religião para explicar a história judaica; pelo contrário: a preservação da religião ou nacionalidade judaica pode ser explicada somente pelo 'judeu real', isto é, pelo judeu no seu papel econômico e social”.

Isaac Deutscher (1959)[13] compara Marx com Elisha ben Abuyah, Bento de Espinosa, Heinrich Heine, Rosa Luxemburgo, Leon Trotsky, e Sigmund Freud, todos tidos por ele como hereges que trasncendem o judaísmo, e no entanto ainda pertencendo à tradição judaica. De acordo com Deutscher, a “idéia de socialismo e de sociedade sem classes ou estado” de Marx expressada no ensaio é tão universal como a ética e o Deus de Spinoza.

Shlomo Avineri (1964)[14], enquanto considera o anti-semitismo de Marx como um fato amplamente reconhecido, assinala que a crítica filosófica de Marx sobre a emancipação judaica não o teria levado a rejeitar a emancipação como um objetivo político imediato.[14] Em uma carta a Arnold Ruge, escrita em março de 1843, [15] Marx escreve que ele tinha a intenção de apoiar uma petição dos judeus à Assembléia Provincial. Ele explica que apesar do fato dele detestar o judaísmo como religião, ele também permanece não convencido da visão de Bauer (de que os judeus não deveriam ser emancipados antes de abandonarem o judaísmo, ver acima).

No seu livro Por Marx (1965), Louis Althusser afirma que “em Sobre a Questão Judaica, Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, etc., e até geralmente em Sagrada Família (...) Marx estava meramente aplicando a teoria da alienação, isto é, e teoria da 'natureza humana' de Feuerbach, à política e às atividades concretas do homem, antes de estendê-la (em grande parte) à economia política nos Manuscritos”.[16] Ele se opõe a uma tendência que considera que o “Capital não é mais lido como Sobre a Questão Judaica, Sobre a Questão Judaica é lido como se fosse o Capital”.[17] Para Althusser, o ensaio “é um texto profundamente 'ideológico'o”, “comprometido com a luta pelo comunismo”, mas sem ser marxista; “então ele não pode, teoricamente, ser identificado com os últimos textos que definiriam o materialismo histórico”.[18]

David McLellan, no entantor, tem argumentado que "Sobre a Quastão Judaica" deve ser compreendido em termos do debate de Marx com Bruno Bauer a respeito da natureza da emancipação política na Alemanha. De acordo com McLellan, Marx usou a palavra "Judentum" no seu sentido coloquial de "comércio" para argumentar que os alemães sofrem de capitalismo e devem ser dele emancipados. A segunda metade do ensaio de Marx, conclui McLellan, deve ser lido como "um trocadilho estendido às custas de Bauer."[19].

Hal Draper (1977)[20] observou que a linguagem da Parte II de Sobre a Questão Judaica seguiu a visão do papel dos judeus dado no ensaio On the Money System do judeus socialista Moses Hess .

Stephen Greenblatt (1978)[21] compara o ensaio com a peça de Christopher Marlowe, The Jew of Malta. De acordo com Greenblatt, “ambos escritores esperam trazer atenção à atividade vista como alienígena e ainda assim central para a vida da comunidade e dirigir a ela o sentimento anti-semita da audiência”. Greenblatt está atribuindo a Marx uma “afiada, até histérica, negação do seu background religioso”.

Y. Peled (1992)[22] vê Marx transpondo o debate sobre a emancipação judaica do plano teológico para o plano sociológico, assim limitando um dos principais argumentos de Bauer. No ponto de vista de Peleds, isso foi uma resposta menos que satisfatória a Bauer, mas permitiu a Marx apresentar suas próprias idéias sobre a emancipação enquanto, ao mesmo tempo, deslanchava sua crítica à alienação econômica. Ele conclui que os avanços filosóficos de Marx foram uma consequência do seu comprometimento com a emancipação judaica, e a ela integralmente relacionados.

Outros argumentam que Sobre a Questão Judaica é primariamente uma crítica dos direitos liberais em vez de uma crítica ao judaísmo e que passagens aparentemente anti-semíticas devem ser lidas nesse contexto.[23]

Para o sociólogo Robert Fine (2006)[24] o ensaio de Bauer “ecoava a representação geralmente preconceituosa do judeu como ‘mercador’ e ‘moneyman’”, enquanto que “o alvo de Marx era defender o direito dos judeus de completa emancipação civil e política (isto é, a posse de direitos civis e políticos iguais) junto com todos os outros cidadãos alemães”. Fine argumenta que “a linha de ataque que Marx adota não não tem o intuito de contrastar o rude estereótipo que Bauer tem dos judeus com a real situação dos judeus na Alemanha atual”, mas sim o de “revelar que Bauer não tinha a menor noção da natureza da democracia moderna”.

Enquanto o sociólogo Larry Ray em sua resposta (2006)[25] reconhece a leitura de Fine do ensaio como uma irônica defesa da emancipação judaica, ele assinala a polivalência da linguagem de Marx. Ray traduz uma frase de Zur Judenfrage e a interpreta como um oposição assimilacionista “na qual não há espaço dentro da humanidade emancipada par os judeus como uma identidade étnica ou cultural separada”, e que advoga “uma sociedade em que a diferenca, tanto cultural como econômica é eliminada”. Aqui Ray enxerga Marx em um a “linha de pensamento esquerdista que tem se mostrado incapaz de abordar formas de opressão não diretamente ligadas à classe social”.

 

REFERÊNCIAS:

1.     Marx 1844:

[O] anulamento político da propriedade privada não apenas falha em abolir a propriedade privada como até mesmo a pressupõe. O Estado abole, a sua própria maneira, distinções devido ao nascimento, posição social, educação e profissão, quando declara que nascimento, posição social, educação ou profissão são distinções não-políticas, quando proclama, sem levar em conta essas distinções, que todo membro da nação é um participante igual da soberania nacional, quando trata todos os elementos da vida real da nação do ponto de vista do Estado. Ainda assim, o Estado permite à propriedade privada, educação, ocupação, que ajam à sua maneira - i.e., Nevertheless, the state allows private property, education, occupation, to act in their way – i.e., enquanto propriedade privada, educação, profissão, e a fim de exercer a influência da sua natureza especial. Longe de abolir estas reais distinções, o Estado apenas existe na pressuposição da sua existência; ele se sente um Estado político e assevera sua universalidade somente em oposição a esses elementos de seu ser.

2.     Marx 1844:

Por outro lado, se o judeu reconhece que essa sua natureza prática é fútil e trabalha no sentido de abolí-la, ele se dissocia do seu desenvolvimento anterior, trabalha pela emancipação humana e se volta contra a expressão prática suprema do auto-estranhamento.

3.     Marx 1844:

O judeu se emancipou de maneira judaica, não apenas porque ele adquiriu poder financeiro, mas também porque, inclusive através dele, o dinheiro se tornou o poder do mundo e o espírto judeu prático se tornou o espírito prático das nações cristãs. Os judeus se amanciparam na mesma medida em que os cristãos se tornaram judeus.

...

Na análise final, a emancipação dos judeus é a emancipação da humanidade do judaísmo.

4.     Engels, Marx: The Holy Family 1845, Chapter VI, The Jewish Question No. 1, No. 2, No. 3

5.     a b Marx-Engels Gesammtausgabe (MEGA), Volume II, apparatus, pp. 648 (German) Dietz, Berlin 1982

6.     A World Without Jews, resenha em: The Western Socialist, Vol. 27 - No. 212, No. 1, 1960, pgs. 5-7

7.     Marx and Anti-Semitism, discussão em: The Western Socialist, Vol. 27 - No. 214, No. 3, 1960, pgs. 11, 19-21

8.     Draper 1977, Note 1

9.     Hyam Maccoby. Antisemitism and Modernity: Innovation and Continuity. Routledge. (2006). ISBN 041531173X p. 64-66

10.  Bernard Lewis. Semites and Anti-Semites: An Inquiry into Conflict and Prejudice. (1999). W. W. Norton & Company. ISBN 0393318397 p.112

11.  Edward H. Flannery. The Anguish of the Jews: Twenty-Three Centuries of Antisemitism. Paulist Press. (2004). ISBN 0809143240 p. 168, Marvin Perry, Frederick M. Schweitzer. Antisemitism: Myth and Hate from Antiquity to the Present. Palgrave Macmillan. (2005). ISBN 1403968934 p. 154-157

12.  Leon 1950, Chapter One, Premises

13.  Isaac Deutscher: Message of the Non-Jewish Jew na revista American Socialist 1958

14.  a b Avineri, Shlomo (1964). "Marx and Jewish Emancipation". Journal of the History of Ideas 25 (3): 445-50.

15.  “(...) Eu acabo de receber a visita do chefe da comunidade judaica daqui, que me pediu que escrevesse uma petição em nome dos judeus a Assembléia Provincial e eu estou disposto a fazê-la. Não importa o quanto eu deteste a fé judaica, a visão de Bauer me parece demasiado abstrata. O ponto é fazer tantas brechas quanto possível no Estado cristão e incorporar nele tanto quanto podemos do que é racional. Pelo menos, deve ser tentado -- e a amargura cresce com cada petição que é rejeitada sob protestos”, postscript de uma carta de Marx a Arnold Ruge em Dresden, escrita em: Colônia, 13 de março de 1843

16.  Althusser 1965, Part One: 'Manifestos Filosóficos' de Feuerbach, publicado primeiramente em La Nouvelle Critique, em dezembro de 1960.

17.  Althusser 1965, Part Two: On the Young Marx: Theoretical Questions, apareceu primeiro em La Pensée, março-abril de 1961

18.  Althusser 1965, Part Five: ‘The 1844 Manuscripts’, apareceu primeiramente em La Pensée, fevereiro de 1963.

19.  David McLellan: Marx before Marxism (1970), pp.141-142

20.  Draper 1977

21.  Stephen J. Greenblatt: Marlowe, Marx, and Anti-Semitism, in: Critical Inquiry, Vol. 5, No. 2 (Winter, 1978), pp. 291-307; Excerto

22.  Y. Peled: From theology to sociology: Bruno Bauer and Karl Marx on the question of Jewish emancipation, in: History of Political Thought, Volume 13, Number 3, 1992, pp. 463-485(23); Abstract

23.  Brown, Wendy (1995), "Rights and Identity in Late Modernity: Revisiting the 'Jewish Question'", in Sarat, Austin; Kearns, Thomas, Identities, Politics, and Rights, University of Michigan Press, pp. 85-130

24.  Robert Fine: Karl Marx and the Radical Critique of Anti-Semitism in: Engage Journal 2, May 2006

25.  Larry Ray: Marx and the Radical Critique of difference in: Engage Journal 3, September 2006.

 

 

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