quarta-feira, 11 de outubro de 2017

HÁBITOS ERÓTICOS - por JORGE COLI

HÁBITOS ERÓTICOS - por JORGE COLI


Todas as obras de arte são eróticas. Foram feitas para os sentidos e para a imaginação. Estão lá para nos dar prazer, seja de forma direta, seja de forma oblíqua, seja de forma perversa. Até um Mondrian. Até os branco sobre branco de Malévich. Sobretudo o branco sobre branco de Malévich, diria um mais brejeiro.




Malévitch- Quadrado branco sobre branco

Isso tudo é segundo, terceiro, quinto, décimo grau. Aqui, o que se trata, pelo o que eu entendi do que me pediram, é outra coisa, franca, sem muito disfarce. É séquiço, como diria a falecida Rê Bordosa. Não explícito, está claro, que a Bravo! é uma revista de família. Mas adulando o baixo-ventre.

Nem pensar em ser objetivo. Eu próprio não escolheria o branco sobre branco do Malévich, embora o brejeiro de serviço possa estar sendo sincero. No país do erotismo, existe de tudo. 


Parto da idéia de um erotismo mais direto. Tenho que eliminar, assim, toda a arte moderna, a arte de vanguarda. Ela tratou de sexo, está claro, tantas vezes. No entanto, é elevada demais, intelectual demais, sofisticada demais para oferecer-se como estímulo. O erotismo dos surrealistas é mental; as obsessões de Picasso são sinais, são marcas inquietas e, no final de sua vida, angustiadas e violentas explosões dos seus desejos. Contudo, não estão lá para estimular os apetites de ninguém. As Demoiselles d’Avignon eram prostitutas e estão nuas. Mas quem jamais olhou aquilo com apetite erótico nos olhos?



Picasso - Senhoritas de Avignon

Os artistas contemporâneos que enfrentam a sexualidade terminam por melhor esvaziá-la. Em suas fotos, Mapplethorpe eleva os motivos mais obscenos à pureza da forma, uma pureza quase intangível, clássica. A pornografia continua ali, e alguns puritanos particularmente obcecados censuraram, condenaram e expulsaram essas imagens de exposições. É preciso ter muito recalque na cabeça para ver nelas a obscenidade. Pois perderam a força de desejo. O erotismo é que fortalece a obscenidade.




Mapplethorpe

As vanguardas, na verdade, eliminaram o erotismo que triunfava nos salões de pintura, nas academias. Era um mar de nus maravilhosos e descarados. Haverá pintura mais safada do que aquele quadro de Oscar Pereira da Silva, na Pinacoteca do Estado de São Paulo? É uma tela vertical, grande. Representa uma escrava romana (escrava: pronto, posso ir ao mercado, comprar, levar para casa e fazer dela o que eu quiser) de pé, nua, linda, com o olhar despudorado, convidativo. Em volta do pescoço, tem uma tabuleta onde se lê: virgo (virgem). Quadro feito com a intenção cristalina de provocar delírios sexuais imaginários.

Ou então, o Rolla, de Gervex, que Huysmans tratou, em 1878, de “tela abjeta e priápica”. Rolla (não posso fazer nada, é o nome do personagem, e deve ser pronunciado com acento no a, assim: Rollá), o homem, perto da janela, contempla um nu adormecido, pintado com extraordinário sentimento da epiderme e das carnes: um esplendor absoluto. A história vem de Musset: mistura erotismo, ruína financeira e suicídio. Os devaneios sensuais do século XIX iam à fervura com o mito da mulher fatal.


Henri Gervex- Rolla

A arte do século XVIII está saturada de erotismo. De Fragonard, Fogo na pólvora, em que um anjinho leva uma tocha ao sexo de da jovem que dorme para provocar-lhe sonhos vívidos; a Gimblette, no qual um cachorrinho afaga, com seu rabinho, o sexo nu de sua dona. De Boucher, Odalisca, que deve ter sido uma amante de Luís XV, e que exibe seu traseiro em meio a sedas e veludos, como uma jóia num escrínio. Mas o século XVIII tem lençóis demais, travesseiros demais, é empoado demais.




Fragonard – O fogo ao pó


Fragonard- Menina com o cão


Boucher - Odalisca


Nisso, é diferente do renascimento florentino, para quem a dimensão erótica é disciplinada pela secura do desenho. Os maneiristas foram mestres a partir desses princípios, e a primeira obra na qual eu pensei, antes de começar a escrever este artigo, foi A Luxúria descoberta pelo Tempo, de Bronzino, pintada no século XVI, que está na National Gallery, de Londres. É uma imagem em princípio moralizadora, destinada a mostrar os horrores do vício que os prazeres podem acarretar. 


Bronzino – Alegoria da luxúria...

Em princípio, apenas. Porque sua composição põe em evidência, dentro do discurso alegórico, a relação entre Venus e Cupido, entre a mãe e o filho.  O enlace é indisfarçável, as línguas se tocam, o bico do seio vem apertado entre os dedos da mão direita do menino. Panofsky (em Ensaios de iconologia) propõe uma análise do quadro. Assinala que Cupido está ajoelhado numa almofada, símbolo da luxúria. No entanto, diz também que o jovem deus é assexuado. Nada menos evidente. O velho e pudico professor fechou os olhos à posição inequívoca do rapaz, com as pernas afastadas e a bundinha arrebitada, convidativa, muito oferecida aos olhares de todos.

Quanto ao erotismo da Antiguidade, ele é eminentemente masculino, e o Fauno Barberini, da Gliptoteca de Munique, deve ser o seu apogeu.



Fauno Barberini


Enfim, depois de muitas voltas, escolhi. A obra mais erótica, é o Êxtase de Santa Teresa, do Bernini, em Roma, na Igreja de Santa Maria della Vittoria. O artista partiu da descrição que fez a própria santa de sua visão: um anjo, “formosíssimo”, carregando um dardo de ouro, que se punha “algumas vezes a metê-lo pelo meu coração adentro, de modo que chegava às entranhas”, misturando prazer e dor. Ela diz ainda: “O corpo fica despedaçado, incapaz de mover os pés e os braços. (...) Dá uns gemidos, baixinhos pela falta de forças, mas bem altos pelo sentimento”.

Nada mais erótico, em todos os sentidos, incluindo o mais elevado, que é o amor divino. Bernini esculpe a santa sob a agitação do hábito, mostrando apenas o pé esquerdo nu, a mão que pende, a boca entreaberta, o rosto transfigurado pelo desejo. O anjo da visão revela mais generosamente suas formas. 




Bernini – Êxtase de Santa Tereza, detalhe e orgasmo feminino


Trata-se de uma escultura, arte que, por princípio, atrai a mão de quem contempla. Mas Bernini frustrou o toque: dispôs a cena no alto, como se anjo e santa levitassem, emoldurados por um palco de mármore. O espectador fica atraído pelo inaccessível, o que exaspera ainda mais o desejo pelo objeto. 


É melhor assim. A santa e o anjo: Venus e Cupido, renovados pela sensibilidade católica nos tempos do barroco. Entre Teresa e o enviado de Deus, tal como Bernini nos mostra, há uma conexão invisível, um orgasmo divino, uma densidade tão fortemente erótica, que é preferível ficar à distância, contemplando, e não atrapalhar a união dos dois.

Nenhum comentário:

Postar um comentário