MOEMA,
A PINTURA DE UMA PERSONAGEM LITERÁRIA
Alexander
Gaiotto Miyoshi1
No
sexto canto de Caramuru, Poema Epico do Descobrimento da Bahia, o
português Diogo Álvares deixa a América num navio rumo à Europa. Parte com ele
a indígena Paraguaçu, pronta para se converter à fé católica. Será a sua
esposa. Outras indígenas seguem-no a nado. Todas desistem, menos Moema, que se
agarra ao leme do navio, amaldiçoa o casal e submerge.
Em
Caramuru, publicado em 1781, a presença de Moema é breve. Mas no século XIX,
contrapondo-se à de Diogo e Paraguaçu, ela foi sentida como nenhuma outra. Antologias
poéticas e histórias literárias destacaram desde então o trecho da “morte de Moema”,
segundo muitos críticos o melhor do Caramuru2.
Em
1866, Victor Meirelles expôs a sua pintura de Moema. Não é uma cena de Caramuru,
mas sim o que poderia ter ocorrido à indígena depois de ela “sorver-se n’água”;
o pintor a retratou na praia: uma imagem “ideal”. Moema écuma das obras
mais sugestivas de Meirelles. Uma pintura que renova a tradição dos nus
horizontais e, ao mesmo tempo, transgride a fábula épica de Caramuru,
conferindo à personagem secundária um protagonismo inédito e perturbador.
DA
LITERATURA
Moema
parece ter sido uma invenção de frei José de Santa Rita Durão, autor do Caramuru,
que provavelmente a criou para acentuar o drama do episódio das nadadoras, reputado
como verídico em alguns relatos. O episódio valoriza a fábula épica3, mote
central do poema, destacando os feitos de Diogo. Condensando em Moema a
rebeldia dos gentios, Durão reforçou, por contraste, o poder de conquista e
resistência de Diogo, e também as qualidades pias de Paraguaçu. Antonio Candido
apontou, na década de 1960, que o afogamento de Moema representou igualmente o
afogamento das demais indígenas recusadas por Diogo4. O episódio serviria,
portanto, para fortalecer a união simbólica do herói com Paraguaçu, amálgama do
bravo colonizador lusitano com a dócil selvagem americana, supressão da
barbárie pagã pelo sucesso da civilização cristã. Para entender um pouco mais a
função do episódio, analisemos o canto VI do Caramuru, entre as oitavas
36 e 43:
XXXVI.
He fama
então que a multidão formosa
Das Damas,
que Diogo pertendião,
Vendo
avançar-se a náo na via undosa,
E que a
esperança de o alcançar perdião:
Entre as
ondas com ansia furiosa
Nadando o
Esposo pelo mar seguião,
E nem
tanta agoa que fluctua vaga
O ardor
que o peito tem, banhando apaga.
XXXVII.
Copiosa
multidão da náo Franceza
Corre a
ver o espectaculo assombrada;
E
ignorando a occasião da estranha empreza,
Pasma da
turba feminil, que nada:
Huma, que
ás mais precede em gentileza,
Não vinha
menos bella, do que irada:
Era Moema,
que de inveja geme,
E já vizinha á náo se apéga
ao leme5.
XXXVIII.
Barbaro (a
bella diz) tigre, e não homem...
Porém o
tigre por cruel que brame,
Acha
forças amor, que em fim o domem;
Só a ti não domou, por mais
que eu te ame:
Furias,
raios, coriscos, que o ar consomem,
Como não
consumis aquelle infame?
Mas pagar
tanto amor com tedio, e asco...
Ah que o
corisco és tu... raio... penhasco.
XXXIX.
Bem
puderas, cruel, ter sido esquivo,
Quando eu
a fé rendia ao teo engano;
Nem me
offendêras a escutar-me altivo,
Que he
favor, dado a tempo, hum desengano:
Porém
deixando o coração cativo
Com
fazer-te a meus rogos sempre humano,
Fugistes-me,
traidor, e desta sorte
Paga meo fino amor tão crua
morte?
XL.
Tão dura
ingratidão menos sentira,
E esse
fado cruel doce me fora,
Se a meo
despeito triunfar não vira
Essa
indigna, essa infame, essa traidora:
Por serva,
por escrava te seguíra;
Se não
temêra de chamar Senhora
A vil
Paraguaçu, que sem que o creia,
Sobre ser-me
infrior, he nescia, e feia.
XLI.
Em fim,
tens coração de ver-me afflita,
Flutuar
moribunda entre estas ondas,
Nem o
passado amor teu peito incita
A um ai
somente, com que aos meus respondas
Barbaro,
se esta fé teu peito irrita,
(Disse,
vendo-o fugir) ah não te escondas;
Dispara
sobre mim teu cruel raio...
E indo a dizer o mais, cahe n’um
desmaio.
XLII.
Perde o
lume dos olhos, pasma, e treme,
Pállida a
côr, o aspecto moribundo,
Com mão já
sem vigor, soltando o leme,
Entre as
salsas escumas desce ao fundo:
Mas na
onda do mar, que irado freme,
Tornando a
apparecer desde o profundo;
Ah Diogo
cruel! disse com mágoa,
E sem mais
vista ser, sorveo-se n’agoa.
XLIII.
Chorárão
da Bahia as Nynfas bellas,
Que
nadando a Moema acompanhavão;
E vendo
que sem dor navegão dellas,
Á branca
praia com furor tornavão:
Nem pode o
claro Heróe sem pena vellas,
Com tantas
provas, que de amor lhe davão;
Nem mais
lhe lembra o nome de Moema,
Sem que ou amante a chore, ou
grato gema6.
Rodolfo Bernadelli - Moema
Em nenhum momento Durão descreve Moema. Apenas informa sua beleza física e, pelas
atitudes, nos faz conhecer parte de sua personalidade. Os sentimentos
transfiguram-se em elementos da natureza, num admirável uso de metáforas,
elipses e zeugmas. Na voz de Moema, Durão compara Diogo a um tigre, invoca
fúrias, raios e coriscos; sugere duas imagens poderosas de terror e
sublimidade: uma fera ameaçadora e uma tempestade. Com esta última, remete ao
primeiro contratempo de Diogo: a “verdadeira” intempérie que o fez naufragar no
Brasil. Diferente desta, porém, a tormenta imprecada por Moema é “imaginária”,
veloz e fulminante, talvez por isso ainda mais intensa, temível e recompensadora
ao português. De todo modo, ambas representam o enfrentamento do lado selvagem
e perigoso do Novo Mundo, seja pelo ambiente arisco ou pela oferta de esposas,
tudo superado por Diogo.
Da pintura
Embora
Moema fosse uma das personagens mais lembradas da literatura que começava a ser
compreendida como brasileira, ela não passava ainda de uma idéia, de uma imagem
mental e não visual. As únicas edições ilustradas de Caramuru – uma
francesa, de 1829, e a outra portuguesa, de 1836 – retratam exclusivamente os
protagonistas do poema, Diogo e Paraguaçu, de modo coerente à sua fábula épica,
dando corpo à mensagem central da epopéia: a união de um nobre português com a
mais casta das indígenas. Moema é o oposto da indígena modelo: não cobriu a
nudez, como fizera Paraguaçu, mesmo antes de conhecer Diogo. Moema não se
encaixava nos padrões europeus; mas apaixonou-se por um português. Seu
afogamento, ou melhor, seu desaparecimento em meio às águas, foi a solução de
Santa Rita Durão ao impasse.
Victor
Meirelles não pintou uma cena de Caramuru; escolheu retratar o que
poderia ter ocorrido a Moema depois de ela “sorver-se n’água”: seu corpo
aparece na praia, nu e inerte, imerso numa natureza evanescente, virado para
cima, com a mão sobre o ventre, o braço estendido e as pernas juntas. Sua pose
é delicada, mesmo artificial, o que se acentua em dois elementos: um arranjo de
penas central no quadro, cobrindo o sexo, e os cabelos negros, longos e
ramificados, impressionantemente vivos. Mais do que obedecer a obra literária,
Meirelles integrou seu quadro à tradição pictórica de nus estendidos sobre paisagens
naturais, prolongadas ao horizonte; nus míticos e idealizados, dormindo ou sem vida,
inconscientes de sua exposição e, assim, viáveis a olhos moralistas.
Acrescente-se que a nudez de Moema, sendo ela uma indígena, era condição
natural, inocente e plausível, o que autorizou ainda mais a sua transposição à
tela.
Moema
respira
o ar de mudanças profundas na pintura internacional. Os anos de 1860 são
profícuos em variados nus, cruciais para a diversidade do gênero. O ano de 1863
é particularmente significativo por dar lugar, em Paris, a “uma verdadeira
batalha de nus”, nas palavras do historiador Henri Zerner7. De um lado, Édouard
Manet expôs o Almoço na relva no Salão dos Recusados, um piquenique de
dois homens, ambos elegantemente vestidos, e duas mulheres, uma delas
completamente nua. De outro, Alexandre Cabanel expôs no salão oficial um quadro
imediatamente aclamado pela crítica e público, logo comprado por Napoleão III: O
Nascimento de Vênus. A tela exibe a deusa do amor despertando do sono,
evidentemente nua, com os olhos entreabertos demonstrando sua consciência de
ser observada. Essa obra ambígua, evocando igualmente a divindade pagã e a
modelo viva, devia atiçar o público masculino tanto quanto este, vendo-se
espelhado nos rapazes do Almoço na relva, devia se sentir surpreendido,
constrangido e ultrajado. Numa litografia de 1864, Daumier ironizou: “Este ano,
mais Vênus... Sempre Vênus!... Como se existissem mulheres assim”. A presença
de Afrodites, ninfas e ondinas, nuas e voluptuosas à moda de Cabanel,
tornava-se cada vez maior. Mas não apenas deidades despidas eram retratadas;
pintavam-se também, em meio às águas, personagens do teatro e da literatura,
comportadamente vestidas, sacrificadas por amor, demência ou causas nobres. A
mais célebre dessas personagens é Ofélia, de Hamlet, dama dileta de
pintores prérafaelitas e vitorianos, secundada, entre outras, por Elaine de
Astolat, do ciclo arturiano, e Virgínia, de Paul et Virginie.
Entre
Vênus e Ofélia, Moema é uma espécie de meio-termo, uma personagem que, na
adaptação magistral de Meirelles, conciliou o gênero pictórico da mulher sobre
as águas e a busca pelo assunto pátrio, ambos muito apreciados em meados do
século XIX. Toda a concepção do quadro, incluindo o minúsculo navio no
horizonte e os indígenas acenando, é criação de Meirelles, amparada em
referências diversas que incluem desde a sua obraprima A Primeira Missa no
Brasil (1860) até a famosa A Balsa da Medusa (1819), de Géricault, copiada
por Meirelles entre 1857 e 58. Parte da crítica tomou Moema como plágio
da Morte de Virgínia, de Eugène Isabey8, torpe acusação. Moema,
como toda realização artística, alimentou-se generosamente de citações, em
processo legítimo de imitatio, transformandose ela mesma em poderosa
fonte de citação.
Desbravadora,
original e influente a outras obras formidáveis (lembremos Marabá e O
último tamoio, de Rodolpho Amoêdo, além da escultura Moema, de
Rodolpho Bernardelli), a tela de Meirelles permanecerá insuperable em termos de
força, criação e sensibilidade. Como observou Jorge Coli, Moema é
abstrata e sintética, purista e geométrica, mais romana que francesa9, e embora
compartilhe aspectos da arte de Courbet e da literatura de Baudelaire, ela nega
a matéria, diferente dos quadros de indígenas mortos ou abandonados que a
seguiram, todos mais “realistas” ou “naturalistas” que ela. Coli identificou em
Moema a mais representativa imagem dos decantados apelos exóticos e
eróticos daqueles anos banhados em morbidez. Ela é igualmente o mais delicado
retrato de uma mulher que, momentos antes, havia se mostrado uma terrível
virago. A Moema de Victor Meirelles expressa o sucesso da personagem no
século XIX, mas também reforça um outro sentido: o da indígena vitimada em prol
das conciliações entre brancos e selvagens, por fim apaziguada10, mesmo ao
custo de sua vida11.
NOTAS
1 IFCH-Unicamp. Email: alexmiyoshi@hotmail.com
2 Ver entre outros: PATO MONIZ, Nuno Alvares
Pereira. Exame analytico e parallelo do poema
Oriente do R. do José Agostinho. Lisboa:
Typografia Lacerdina, 1815, pp. 170-171. GARRETT, Almeida. “Bosquejo da
historia da poesia e lingua portugueza” [1826]. In O retrato de Venus e estudos de historia litterária. 3ª ed. Porto: Ernesto Chardron, 1884, p. 210. SILVA, João Manuel
Pereira da. Parnaso brazileiro: ou, Selecção de
poesias dos melhores poetas brazileiros desde o descobrimento do Brasil. Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique Laemmert, 1843 (republicado em
1848). VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. Florilegio
da poesia brasileira ou collecção das mais notáveis composições dos poetas
brasileiros fallecidos, contendo as biographias de muitos delles, tudo
precedido de um ensaio historico sobre as lettras no Brazil. Lisboa: Imprensa Nacional, 1850. WOLF, Ferdinand. Le Brésil littéraire. Histoire de la literatura brésilienne
suivie d’un choix de morceaux tirés des meilleurs auteurs bésiliens. Berlim: A. Asher & CO. (Albewrt Cohn & D. Collin), 1863.
3 Compreendendo o episódio de Moema como “episódio
da fábula épica”: “O episódio é parte da fábula, devendo ter relação com o
assunto do poema. Mais extenso que o episódio cômico e trágico, é uma sequ!.ncia
narrativa paralela da ação principal dotada de começo, meio e fim, mas sem
concluir o todo da fábula narrada pelo poema. Por outras palavras, o episódio é
funcional: situação narrativa ou dramática, amplifica e diversifica a ação
narrada como ornato e exemplo que tornam o poema mais variado e versátil, enquanto
relaciona o que veio antes com o que vem depois, para que o herói continue
agindo.” HANSEN, João Adolfo. “Introdução:
Notas sobre o Gênero Épico”. In TEIXEIRA, Ivan (Org.). Épicos: Prosopopéia: O Uraguai: Caramuru: Vila Rica: A
Confederação dos Tamaios: I-Juca-Pirama. São Paulo:
Edusp/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2008, pp. 57-58.
4 CANDIDO, Antonio. “Estrutura literária e função
histórica”. In Literatura e sociedade: estudos de teoria
e história literária. 5ª edição revista. São Paulo: Editora
Nacional, 1976 (Obs.: O texto de Candido foi publicado com o
título “Estrutura e função do Caramuru”. In Revista de Letras, nº 2, Assis, SP, 1961).
5 Numa das compilações do século XIX, no lugar do
termo “vizinha” lê-se “risonha”, o que muda
significativamente o sentido do verso. O lapso ocorreu em PINHEIRO,
Joaquim Caetano Fernandes. Curso
elementar de litteratura nacional. Rio de Janeiro: Garnier, 1862, p. 433.
6 DURÃO, Frei José de Santa Rita. Caramurú. Poema Epico do Descobrimento da Bahia. Lisboa: Regia Offician Typographica, 1781, pp. 179-181.
7 ZERNER, Henri. “O olhar dos artistas”. In
CORBIN, Alain (org.). História do Corpo: Da Revolução à
Grande Guerra. Vol. 2. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 128.
8 S. PAIO, Rangel de. O quadro da Batalha dos Guararapes seu autor e seus criticos. Rio de Janeiro: Typographia de Serafim
José Alves, 1880, pp.96-97.
9 Sobre o purismo romano de Victor Meirelles, ver
COLI, Jorge. A Batalha de Guararapes de Victor
Meirelles e suas relações com a pintura internacional. Campinas: Unicamp, 1997 (Tese de Livre docência; sobre “Moema”, pp.
315-320), ou COLI, Jorge. Como
estudar a arte brasileira no século XIX? São Paulo:
Senac Editora, 2005.
10 “A Batalha dos Guararapes” (1879), também de
Meirelles, pode ser entendida de modo semelhante: “sem
violência”. Ver COLI, Jorge. Como
estudar..., pp.76-77.
11 Ver também MIYOSHI, Alex. “O retrato do bom
selvagem”. Revista História Viva, nº. 62, São Paulo:
Duetto Editorial, dezembro de 2008, pp. 58-63.
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