Leonardo da Vinci: de
artesão a artista
O
interesse de Leonardo pela matemática está ligado, entre outras coisas, à alta
estima de que gozavam as ciências exatas. Investigações semelhantes para se
estabelecer um fundamento “científico” das artes plásticas, tinham já sido
feitas na Antiguidade: por intermédio da racionalidade das medições, as artes
plásticas podiam aproximar-se do “logos”.
Foi
no âmbito desta tradição que se situaram tanto os artistas quanto os teóricos
do Quatrocentos, quando tentaram atribuir à arte o estatuto superior das
ciências exatas. Assim, nos dois primeiros livros do seu tratado de pintura
(1435), Alberti propaga a ideia do fundamento “científico” da pintura. Também
Lucca Paccioli, na sua Summa Aritimetica
(1494), saúda os esforços dos artistas para conseguirem uma exatidão matemática
na pintura, saudando os esforços dos artistas cujo mérito era trabalhar com a
ajuda da régua, do compasso, da geometria, da aritmética e da perspectiva.
Cesare Cesariano sublinha que o estudo das medidas exatas e das simetrias dos edifícios
antigos conduz à glória e ao reconhecimento.
O próprio Leonardo avança
argumentos em favor de uma valorização da pintura por meio da matemática. Ainda
no século XVI, recomendava-se o enobrecimento da pintura por intermédio da aritmética
e da geometria. A mesma ideia de elevação das atividades artísticas por meio
das ciências exatas marca o trabalho de medição do corpo humano, iniciado por
Leonardo em 1489.
No
início de sua carreira na oficina de Verrocchio, a formação de Leonardo não
tivera a menor característica “científica”, era antes mais de ordem prática e
artística. Foi a esta formação prática que Leonardo atribuiu a responsabilidade
de ser um “uomo senza lettere”, isto é, uma pessoa “inculta”, não formada nas
artes “livres” (artes liberales), ou
seja, as ciências que, desde a Baixa Antiguidade, constituíam o fundamento da
cultura superior: o trivium: gramática, dialética, retórica, acrescido do quadrivium:
aritmética, geometria, astrologia, música. A sua própria formação,
essencialmente autodidata, em ramos tradicionais da ciência (como geometria e
gramática latina), só foi iniciada por Leonardo em 1480 em Milão.
Para
compreender a vontade de Leonardo de ascender a uma cultura superior, convém
ter uma noção clara do estatuto social das artes plásticas no século XIV. Durante
o Quatrocentos, as artes plásticas eram consideradas pelos letrados quase
unicamente um ramo da ars mechanica, ou seja, não como
artes “livres”, mas como artes associadas ao artesanato. No século XV a pintura
não fazia ainda parte das artes liberales, e gozava
frequentemente de menos consideração do que a arte poética. Dada esta situação,
não é de admirar que Leonardo tenha se esforçado por ascender ao reconhecimento
graças ao estudo teórico e científico. Uma razão concreta é, evidentemente, a concorrência
com os literatos, que gozavam de mais elevada consideração na corte de Milão.
Francesco
Puteolano, em tradução de uma obra elegíaca a Sforza, insiste na superioridade
da criação literária sobre as realizações das artes plásticas, referindo-se
explicitamente ao fato de príncipes e generais célebres do passado – Alexandre,
Júlio César- terem sido imortalizados, não por intermédio de obras monumentais
mas pelo trabalho de escritores e historiadores. Esses heróis não continuam
presentes na memória da posteridade por meio de estátuas ou de quadros, que de modo
geral se degradam, mas por meio de pequenas obras escritas.
Talvez
por reação a estes argumentos, Leonardo pede ao humanista Piattino Piatti que
componha poemas à glória do futuro monumento eqüestre a Sforza. As explicações
de Puteolano são o sinal claro de uma rivalidade aberta entre artistas e
literatos na corte de Milão. Ao ver seu estatuto social como artista em causa,
Leonardo formula seu Paragone.
Composta em 1492, as passagens que abrem o Trattato
de Pittura constituem violenta diatribe contra os poetas e os literatos, que
puseram em dúvida o valor da memória das artes plásticas. Leonardo compara-os a
animais selvagens (bestie) e
insurge-se ao mesmo tempo contra a classificação da pintura na categoria
inferior das ars mecanice. É neste
contexto que Leonardo acha conveniente aplicar esforços intensos na
fundamentação científica das artes plásticas.
“A pintura é poesia muda, a poesia, pintura
cega”.
(Leonardo da Vinci)
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