Helio Oiticica
e o Samba
Um pintor no samba (Helio Oiticica)
NOTA SOBRE O TEXTO: Manuscrito
inédito do autor, enviado para publicação na revista Sibila por Luciano
Figueiredo, artista plástico e diretor do Centro de Arte Hélio Oiticica, Rio de
Janeiro-RJ
Caetano veste parangolé
Como cheguei à
Mangueira – eis a pergunta que todos me fazem; foi o escultor Jackson Ribeiro,
meu grande amigo, quem para lá me levou em fins de 1963, para assistir a um
ensaio.
Imediatamente senti
que, para mim, não bastava “assistir”, e sim “participar” do samba, do seu
ritmo, do seu mito.
Ao contrário do que
poderia parecer, não há entre a minha arte como pintor e essa expressão popular
um abismo intransponível, pelo contrário, toda a minha evolução artística
caminha para o que chamo de uma expressão mítica essencial na arte. Há como que
um cansaço do que é excessivamente intelectual e a busca do que é “expressivo”
na arte.
Jackson Ribeiro,
nordestino acostumado à “vida dura” e cuja escultura vanguardista jamais perdeu
o seu calor de origem, seria o elemento que fatalmente me introduziria aí.
Para mim, havia um
impulso interior forte que me induzia ao ritmo, à dança.
Como pintor, havia
eu chegado ao que chamo de “pintura no espaço”.
Da arte concreta à
neoconcreta (correntes da arte abstrata que se caracterizaram pela geometrização
formal e busca de um espaço novo na pintura), caminhar para uma expressão
própria, levando a cor além do limite do quadro. A pintura não se dá aqui,
dentro do quadro, mas em estruturas especiais, que podem ser Núcleos, Penetráveis
e Bólide.
Em 1964 criei
também, dentro disso, o que chamo de Parangolé, que seria a
cristalização mais original dessa experiência. A participação do espectador,
nas obras de que falei, chega no Parangolé a um elemento mais corporal e
apela instintivamente ao ritmo: o espectador corre ou dança com a obra, pois
esta não é apenas contemplativa, mas pede dele a participação direta. Penso
mesmo em um “espetáculo-Parangolé”, que seria realizado durante uma exposição
continuamente, já que para mim uma “exposição” seria diferente do que se
costuma supor: a participação dos espectadores já pode dar uma ideia da forma
que assumiria.
Qual a relação
disso tudo com o samba da Mangueira?
Antes de tudo,
devemos nos lembrar de que o indivíduo, principalmente o artista, se constitui
em uma totalidade, um bloco inteiro de personalidade, em que as partes, apesar
de às vezes antagônicas, são indivisíveis. A relação, pois, que há entre uma
atividade e outra, longe de ser ditada por conceitos exteriores, vem de dentro,
desse núcleo que é a personalidade. Fatalmente, na minha experiência, seria eu
levado a essa busca do ritmo, da dança na sua forma mais mítica, que é a dança
popular, baseada mais em ritmos que em coreografias.
A Mangueira, para
mim, é como se existisse há 2 mil anos: como expressão, o seu samba possui algo
de arcaico, como se nascesse da terra; não me impressiona tanto a “tradição”,
mas o arcaísmo que contém a sua expressão. Na sua maneira de ser há algo que
nos leva às origens das coisas.
Foi o grande
passista Miro quem me introduziu nos primeiros passos do samba; seu pai, Pedro
da Dinda, um dos fundadores da Escola (pandeirista, sapateador e compositor
excelente), e sua mãe, Dona Didi, que faz cabeleiras e perucas com habilidade
de uma verdadeira artesã; um dos seus irmãos é também compositor. Vê-se, pois,
aí, uma verdadeira família de artistas, empenhados em fazer o que fazem
benfeito, da melhor maneira possível. Não é esse um dos requerimentos da arte?
Gosto muito de
ensaiar com Miro: seu ritmo possui imaginação, inventividade intrínseca; sua
personalidade é contagiante de simpatia, o que influencia também a sua dança.
Nos desfiles de
domingo de Carnaval, Miro faz trio com outros dois grandes passistas da
Mangueira: Maria Helena e Jair; é talvez em conjunto, o que há de melhor em
passistas na Mangueira.
Eu desfilo com a
tradição do samba: Nininha, já mais velha, com samba rebolado absolutamente
genial; nela está todo o ritmo da raça negra, toda a sua expressividade
latente; o contágio da sua euforia faz dela uma das maiores preferências dos
que assistem ao desfile − há quem venha só para vê-la.
Ultimamente, tenho
ensaiado também com quem será futuramente “Mestre-Sala” da Escola (Mestre-Sala
é o que faz par com a “Porta-Estandarte”). Robertinho da Mangueira, menino de
17 anos e um verdadeiro gênio da dança. A dança do Mestre-Sala difere da do
passista: é baseada na Porta-Estandarte, que deve desfilar ao seu lado, ao
passo que a do passista é mais baseada na invenção rítmica em relação a ele
mesmo. Isso não impede, porém, que a imaginação funcione. Esse menino é a prova
disso (vejam as fotos) [2]: seu jogo de corpo é insuperável e, ensaiando com
ele, ganhei muito, principalmente no que se refere aos braços. Ao Robertinho
estou ensinando pintura, em troca do que me ensinou.
Também outro
componente da Mangueira é minha aluna de pintura: Rosemary, filha de um dos
fundadores do samba do Estácio, Oto da Zezé. Rosemary, belíssima mulata,
desfila com as mais belas roupas de destaque da Mangueira. Este ano, o seu
majestoso traje foi bordado por um grande compositor da Escola, Helio Turco;
por aí se vê como se faz uma fusão de atividades artísticas dentro dessa
cultura que é a nossa, de origem europeia.
Há aí, a meu ver,
mais unidade e mais força expressiva. É a dança, porém, que estabelece a ligação
entre as duas culturas: o elemento mítico que está nela, que faz parte
integrante da sua estrutura, é o apelo à participação de todos nessa expressão
cultural. É o ritmo seu elemento fundamental, o liame sutil e objetivo dessa
participação geral. Por ele são todos introduzidos à dança.
Nada mais lógico
que, ao se aproximar a minha arte do mito, da vivência mítica essencial,
encontrasse eu na dança uma relação objetiva e fundamental.
A criação do Parangolé
nasce dessa necessidade do que chamo de “nivelamento cultural”; é uma
aproximação da arte com o seu elemento mítico. Não se trata de um folclorismo
superficial que até agora só tem servido de demagogia na arte, mas de uma
vivência expressiva das origens, dentro dessa evolução da arte de hoje, onde poderia
enquadrar a minha experiência.
Das expressões
populares, é o samba das escolas o que mais me interessa como elemento de
unificação cultural. É impossível dar aqui a ideia da riqueza de inspiração do
seu ritmo, das suas músicas, da majestosa plasticidade da encenação dos seus
desfiles: assistir a um deles equivale a uma emoção única em toda a vida.
Participar então,
nem se fala.
Rio de Janeiro, 1965
Texto
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