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Quantas
boas vias de acesso dos leitores brasileiros à poesia de William Blake. Saiu
mais uma tradução de O Casamento do Céu e do Inferno, pela editora
Hedra, por Ivo Barroso, que já havia traduzido O Tigre (este poema,
classificado como canônico por Harold Bloom, também foi traduzido, entre
outros, por José Paulo Paes, Augusto de Campos, Paulo Vizzioli, Alberto
Marsicano, e por Mário Alves Coutinho e Leonardo Gonçalves). Voltou à
circulação a edição de Blake preparada por Paulo Vizzioli: Poesia e Prosa
Selecionadas, agora pela Nova Alexandria. É recente William Blake, O
Casamento do Céu e do Inferno e outros escritos, seleção e tradução de
Alberto Marsicano, pela L&PM Pocket; versão revista e ampliada de outro
Blake por Marsicano, na década de 1980. Continua em circulação O
matrimônio do Céu e do Inferno, O livro de Thel, por José Antônio
Arantes, da Iluminuras. Outra boa aproximação a Blake, através de Canções
da Inocência e da Experiência, por Mário Alves Coutinho e Leonardo
Gonçalves, pela Crisálida, de Belo Horizonte. E, pela Nephelibata, de Santa
Catarina, sairão traduções de The book of Ahania, The book of Los e The song of Los por Floriano Martins, em meados de 2009.
Há exatos
200 anos, em 1809, Blake, precisando de dinheiro, fez uma exposição de suas
gravuras, incluindo textos ilustrados. Apenas um crítico, do Spectator,
visitou a mostra: escreveu que Blake devia ser objeto de pena, pois era
apenas um pobre louco. Gravações – o modo escolhido por Blake para publicar,
através de gravuras em cobre, tratadas uma a uma, com ilustrações e os textos
– e originais permaneceram jogados, deteriorando-se, até sua descoberta por
Dante Gabriel Rossetti e Swimburne, meio século depois da sua morte (em 1827,
aos 70 anos), para terem a primeira edição realmente adequada em 1893, graças
aos cuidados de William Butler Yeats.
Dentre
essas edições de Balke – listei as mais recomendáveis – aquela de Marsicano
merece interesse por trazer amostras do que Alfred Kazin (organizador do The
Portable Blake da Penguin Books), chamou de poemas proféticos, e
Keines, que preparou a edição de sua obra completa (Blake, Complete
Writings, editado por Geoffrey Keynes, Oxford University Press), chamou
de poemas simbólicos: entre outros, os extensos e torrenciais Milton
e Jerusalem, e o enorme Vala or The Four Zoas (com 120
páginas na edição Keynes), que Blake não chegou a publicar; foi recuperado
décadas após sua morte. Esse repertório do Blake mais complexo, ou menos
imediatamente sedutor, será ampliado em breve, com a edição por Floriano
Martins, pela Nephelibata.
Por algum
tempo, houve estranheza diante da diferença, até contradição aparente, entre
o Blake tão claro e preciso de O Casamento do Céu e do Inferno, e tão
antológico, e não só pelo poema do tigre, das Canções da Inocência e da
Experiência, e uma escrita paroxística, transbordante, dos poemas mais
extensos. O juízo de valor, em favor das obras mais reduzidas e concisas,
contrário aos excessos daquelas mais extensas, foi discutido por Alfred Kazin
em The Portable Blake. Da mesma época (década de 1940), o ensaio que
inaugurou um novo patamar da crítica blakeana (se não da ensaística literária
em geral), Fearful Symmetry – A Study of William Blake de Northrop
Frye (Princeton University Press). Mas neste, curiosamente, um viés oposto:
empreendendo uma tarefa ciclópica, a interpretação de textos como Vala or
The Four Zoas, põe algo de lado O Casamento do Céu e do Inferno.
Vê-o como sátira na tradição de Swift e Sterne: O Casamento do Céu e do
Inferno pertence à tradição da grande sátira.
Se os
poemas longos de Blake contribuíram para consolidar sua reputação de louco,
isso não impede sua decifração. Por exemplo, deste trecho de Milton: [1]
Esta é a Natureza do infinito:
Todas as coisas possuem seus próprios Vórtices, e quando um navegante
da Eternidade
Passa este Vórtice, percebe que ele turbilhonante gira para trás
E penetra numa esfera que se engloba a si mesma como o sol, a lua, ou
como um firmamento de constelada magnitude
Entretanto prossegue em sua maravilhosa trajetória pela terra,
Ou como forma humana, um amigo com o qual pode-se compactuar
luminosamente a existência.
O olho humano, seu Vórtice abarcando, vislumbra o leste & o oeste
O norte & o sul, com suas vastas legiões de estrelas
O sol surgente e a lua no fulcro do horizonte
Os seus milharais e vales de quinhentos alqueires
A terra é uma planura infindável, e não como aparece
Ao ignóbil transeunte confinado às sombras da lua.
O céu é um Vórtice já há muito transpassado;
A terra, um Vórtice ainda intocado pelos navegantes da Eternidade.
[...]
Toda fração de Tempo menor que um pulsar de artéria
Equivale a Seis Mil Anos.
Pois neste Ciclo é criada a obra do Poeta, e nele os Grandes Eventos
do Tempo se iniciam e são concebidos
No fulcro de um instante, Pulsação arterial.
O céu é uma Tenda Eterna erguida pelos Filhos de Los;
E o vasto Espaço que o Homem contempla em sua morada
Na cobertura ou jardim no cimo de uma colina
De vinte e cinco pés de altura, é seu Universo; [...]
Tal é o espaço denominado Terra & tal sua dimensão
Enquanto essa falsa aparência que se apresenta ao racionalista
Como um Globo rolando através da Vacuidade, é uma decepção de Ulro.
E disto nem desconfiam o Telescópio ou o Microscópio;
Alteram os parâmetros dos Órgãos do Espectador, deixando intocados os
objetos;
Pois cada Espaço maior que um Glóbulo vermelho de sangue Humano
É visionário e foi pelo martelo de Los criado.
E cada espaço menor que um Glóbulo de sangue estende-se
Ás larguras da Eternidade, da qual esta terra
Vegetal não é senão a mera imagem.
O Glóbulo vermelho é o insondável Sol por Los criado,
Para mensurar o Tempo & o Espaço aos Mortais a cada manhã.
Compare-se com este conciso (e famoso) poema de seu cadernos de notas:
Num grão de areia ver um mundo
Na flor silvestre a celeste amplidão
Segura o infinito em sua mão
E a eternidade num segundo.
Em uma
condensação, Blake proclamaria, em O Casamento do Céu e do Inferno,
que Um pensamento abarca a imensidão. A frase equivale a outra, epígrafe
dos beats e de experiências com alucinógenos depois de inspirar o
título de Huxley, As Portas da Percepção: Se as portas da percepção
se desvelassem, cada coisa apareceria ao homem como é, infinita. Pois o homem
se enclausurou a tal ponto que apenas consegue enxergar através das estreitas
frestas de sua gruta.
Nada a
estranhar na extensão temporal contida em um glóbulo de sangue, nos patamares
de tempo e espaço dos trechos aqui citados de Milton. Alguém capaz de ver
um mundo no grão de areia, para quem a eternidade podia caber
em um segundo, relatou, em obras como Milton e Jerusalém,
como eram o infinito e a eternidade.
O
paradigma para avaliar os poemas mais complexos de Blake deve ser outro. A
propósito dos apócrifos, dos textos apocalípticos dos primeiros séculos a.C.
e d.C, Serge Hutin, em Les Gnostiques (Presses Universitaires de
France, coleção Qui sais’je?), comenta os motivos pelos quais esse
tipo de produção, especialmente aquela dos gnósticos, por muito tempo foi
visto com desconfiança ou posto à margem por historiadores positivistas e
teólogos racionalistas: Muitos historiadores ainda consideram o gnosticismo
como um monumento de sonhos e devaneios bizarros, de incoerências, de mitos
estranhos, de fantasmagorias desprovidas de todo interesse filosófico, e que
não são, em definitivo, que um ramo particularmente degenerado do inquietante
sincretismo religioso do primeiro e segundo século da nossa era.
Tais
características – ser bizarro, esdrúxulo, um desafio ao racionalismo – também
se ajustam a uma sensibilidade moderna: dela fazem parte a valorização do
grotesco por românticos, ou do surreal e transgressivo hoje. A qualificação
como monumento de sonhos e devaneios bizarros vale para especulações
gnósticas e para Jerusalém e Milton de Blake, Aurélia de
Nerval, Iluminações de Rimbaud ou Os Cantos de Maldoror de
Lautréamont, entre outros que passaram de malditos a cultuados.
Foi por
perceber isso que André Breton saudou a descoberta das “escrituras” gnósticas
de Nag Hammadi em um texto de 1949, Flagrant délit. Declarando-se
continuador de uma tradição esotérica na poesia cuja origem estaria no
gnosticismo, o surrealista indagou como foi possível a tradição gnóstica
conservar-se. Observou que isso não decorria necessariamente da transmissão
direta: Será preciso admitir que os poetas sorvem, sem o saber, em um
fundo comum a todos os homens, singular pântano cheio de vida onde fermentam
e se recompõem sem parar os destroços e os restos das cosmogonias antigas,
sem que os progressos da ciência lhes provoquem uma mudança apreciável? E
sugeriu [...] um poder de absorção de ordem osmótica e para-sonambúlica
dessas concepções tidas, ao olhar racional, por aberrantes. [...] Nessa
floresta virgem do espírito, que margeia por todos os lados a região onde o
homem conseguiu erguer seus marcos indicadores, continuam a rondar os animais
e os monstros, pouco menos inquietantes do que em seu papel apocalíptico.
Ao mencionar os animais e os monstros, apenas menos inquietantes do que em
seu papel apocalíptico, encontrados entre os destroços e os restos das
cosmogonias antigas, Breton lhes atribui valor oposto àquele conferido
pelos racionalistas e positivistas. Pelas mesmas razões, já na década de
1930, Georges Bataille, o pensador da transgressão, já havia destacado o
caráter perturbador, pelo baixo materialismo, por trazer os
fermentos mais impuros, do gnosticismo.
A
mitologia pessoal de Blake poderia ser interpretada como um sistema de
metáforas para referir-se à opressão e à desigualdade; para atacar o sombrio
panorama oferecido por uma primeira fase da industrialização, da implantação
do mundo burguês, na Inglaterra. Seu monismo panteísta, declarado em O
Casamento do Céu e do Inferno, também seria metáfora, porém da superação
do status quo e da realização da utopia: outra face, o reverso da
moeda. Corroboram essa interpretação as frases em tom triunfal do epílogo de O
Casamento do Céu e do Inferno, intitulado Uma Canção de Liberdade:
O IMPÉRIO CAIU! E AGORA O LEÃO & O LOBO TERÃO FIM! E seu
notório envolvimento com acontecimentos de seu tempo, evidente em poemas como
The French Revolution e América. Durante a Revolução Francesa, provocador,
ostentava o barrete vermelho dos revolucionários.
Mas não
basta interpretá-lo como crítico que usava categorias teológicase formulou
mitologias na falta daquelas propriamente políticas. Conhecia o repertório
político corrente em sua época. As estranhas divindades e cosmogonias não
estão em sua poesia apenas pelo valor como alegorias. Expunha mitos enquanto
tais, como realidades reveladas. É o que fica claro através de uma passagem
como esta, de um de seus derradeiros textos, A Vision of the Last
Judgement: O Juízo Final não é Fábula ou Alegoria, porém Visão. Fábula
ou Alegoria são uma modalidade totalmente distinta e inferior de Poesia.
Visão ou Imaginação é uma Representação do que Eternamente Existe, Real e
Insubstituível. [...] Fábula é alegoria, mas o que os Críticos chamam de A
Fábula é a própria visão. A Bíblia Hebraica e o Evangelho de Jesus não são
Alegoria, porém Eterna Visão ou Imaginação de Tudo que Existe.(em Complete
Writings de Blake, na edição Keynes – nas citações dessa edição, a tradução
é minha).
Poetas
preferem ser tomados por seu valor de face, em vez de serem racionalizados.
Aquilo de que Blake falou – Urizen, Orc, o vale de Thel, Rintrah, os Zoas,
Golgonooza, Palamobrom – era dado como real. Exigiu que o levassem a sério,
que o lessem como profeta visionário e não como pensador abstrato.
Torna-se
inevitável projetar na leitura de Blake sua teoria de opostos, a afirmação de
que os contrários movem o mundo: portanto, movem a criação poética. E juízos
de valor como este, de O Casamento do Céu e do Inferno: O homem que
jamais muda sua opinião é como água estagnada & engendra os répteis da
mente. Entender e aceitar seus desafios ao princípio lógico da identidade
e não-contradição possibilita examiná-lo como místico, visionário e sonhador,
ou poeta do sonho.
Há
divergências na classificação de Blake como místico. Frye inicia a nota final
de Fearful Symmetry com uma advertência: A palavra “místico” nunca
trouxe nada senão confusão para o estudo de Blake. Já um especialista em
misticismo, Gershom Scholem, deu uma resposta inequívoca: Blake representou o
misticismo sem laços com qualquer autoridade religiosa, em companhia
de Rimbaud e Whitman, também heréticos luciferianos; pois sua
imaginação era estimulada por imagens tradicionais, ou da igreja católica
oficial (Rimbaud) ou de origem hermética e espiritualista, subterrânea e
esotérica (Blake). [2]
Scholem
ainda distingue – a propósito de Blake, Rimbaud e Whitman – duas atitudes dos
místicos, uma conservadora e outra revolucionária: uma atitude
revolucionária é inevitável uma vez que o místico invalida o sentido literal
das escrituras sagradas. Místico revolucionário: por isso, um contendor
das religiões institucionais, do clero, frontalmente atacado ao longo de toda
a sua obra, como nesta passagem de O Casamento do Céu e do Inferno:
Os poetas da Antigüidade animaram todos os objetos sensíveis com
Deuses ou Gênios, nomeando-os e adornando-os com as propriedades dos bosques,
lagos. cidades, nações e tudo o que seus dilatados sentidos podiam perceber.
Particularmente, estudaram o Gênio de cada cidade & país,
colocando-o sob a égide de sua deidade mental.
Até que se formou um sistema, do qual alguns se aproveitaram e
escravizaram o vulgo, interpretando e abstraindo as deidades mentais de seus
respectivos objetos. Então surgiu o Clero;
Elegendo formas de culto dos mitos poéticos.
E proclamando, por fim, que assim haviam ordenado os Deuses.
Os homens então esqueceram que Todas as deidades residem em seus
corações.
Vê-lo como
místico, e mais, como visionário, encontra respaldo entre outros estudiosos
de Blake; e em seu próprio testemunho. É um resumo de sua poética esta
passagem de O Casamento do Céu e do Inferno:
Os
profetas Isaías e Ezequiel jantavam comigo. Perguntei-lhes como se atreviam a
afirmar que Deus falava com eles; e se não achavam que isto os tornava
malditos & passíveis de perseguição. Isaías respondeu: “Jamais pude ver
ou ouvir Deus dentro de uma percepção orgânica e finita; Meus sentidos
descobriam o infinito em cada coisa, e como desde então estivesse convicto
& recebesse o sinal que a voz da indignação sincera é a voz de Deus,
alheio às conseqüências, escrevi.
Logo a
seguir, outra frase reveladora, em um dito atribuído a Ezequiel: A
filosofia do Oriente ensinou os princípios básicos da percepção humana.
Que
percepção e que visões e audições são essas? Fica evidente pelo trecho citado
que, para Blake, equivaliam-se a percepção de algo como experiência subjetiva
ou como fato objetivo, exterior ao sujeito. Podem contribuir para a
compreensão da poética visionária de Blake algumas observações de Breton
publicadas em Le méssage automatique. Nesse texto de 1933, deixando de
associar a escrita automática apenas ao inconsciente freudiano, o surrealista
citou Myers, o psicólogo experimentalista que pesquisou imagens eidéticas,
como os pós-efeitos visuais (quando olhamos fixamente para uma fonte de luz,
e esta, alterada, permanece ao fecharmos os olhos). E concluiu com uma
afirmação ousada: Toda a experimentação em curso seria de natureza a
demonstrar que a percepção e a representação – que para o adulto ordinário
parecem opor-se de uma maneira tão radical – não devem ser tidos senão como
produtos da dissociação de uma faculdade única, original, da qual a imagem
eidética dá conta e da qual se reencontram traços entre os primitivos e as
crianças.
Aceita
essa argumentação, visões e alucinações ganham o estatuto de percepções
plenas: o visionário efetivamente vê; ou, no automatismo verbal, de fato
ouve. Breton exemplificou com Santa Tereza d’Ávila, ao ver sua cruz de madeira
transformar-se em crucifixo de pedras preciosas, e considerar essa visão ao
mesmo tempo imaginada e sensorial. O exemplo o levou a uma tirada irônica: Tereza
d’Ávila pode passar como alguém que comanda essa linha na qual se situam os
médiuns e os poetas. Infelizmente, ainda não passa de uma santa.
Felizmente
– adotando os critérios de Breton – Blake não foi apenas um santo, porém um
poeta. E alguém que teria endossado a afirmação bretoniana de que percepção e
representação são a mesma coisa, com o mesmo estatuto de realidade ou o mesmo
valor de verdade. Suas visões dos profetas, do irmão falecido, e do restante,
correspondiam à faculdade única, original a que se referiria Breton: a
superação da dicotomia entre o mundo subjetivo e objetivo, comum aos médiuns
e os poetas, e aos místicos. E coerente, se interpretada desse modo, com
o monismo de Breton e com o Blake monista: não era o outro lado que se
enxergava, pois a separação entre natural e sobrenatural fora superada.
Ao
sustentar a realidade de suas visões, Blake formulou uma poética do delírio.
Considerá-lo louco equivale a depreciá-lo, e seria injusto, por ignorar que
Blake concluiu Jerusalém e The Everlasting Gospel no mesmo ano
de 1820: um poema exorbitante em matéria de simbolismo, que pode ser classificado
como delirante, e outro bem linear, pura argumentação, sem nenhum personagem
de sua mitologia particular. Em The Everlasting Gospel, voltou a
proclamar sua anti-ortodoxia; por isso, a relativização dos ensinamentos
evangélicos:
A Visão do Cristo que tu vês
É a maior inimiga da minha visão.
A tua tem um grande nariz adunco como o teu,
A minha tem um nariz redondo como o meu.
A tua é a do Amigo da Humanidade;
A minha fala em parábolas aos cegos:
A tua ama o mesmo mundo que a minha odeia;
As portas do teu céu são os portões do meu inferno.
Sócrates ensinava o que Meletus
Detestava como a mais amarga Maldição de uma Nação,
E Caifás era em sua própria Opinião
Um benfeitor da Humanidade:
Ambos lemos a Bíblia noite e dia,
Mas tu lês negro onde eu leio branco.
Cada parte
do poema começa com uma pergunta:
Foi Jesus gentil, ou deu ele
Algum sinal de Gentileza? [...]
Foi Jesus Humilde? ou deu ele
Quaisquer provas de Humildade? [...]
Foi Jesus Casto? ou deu ele
Quaisquer Lições de Castidade? [...]
Ensinou Jesus a dúvida? [...]
Foi Jesus Nascido de uma Virgem Pura
De Alma estreita & aparência recatada? [3]
A resposta
é sempre negativa: apoiando-se nos evangelhos, mostra que Jesus Cristo não
foi gentil, nem humilde, nem casto, nem nascido de uma virgem. Mas o que
sobraria do ensinamento evangélico? Para Blake, apenas o perdão: Não há
uma Virtude Moral que Jesus Pregasse que Platão & Cícero não houvessem
Pregado antes dele; o que então Jesus Pregou? Perdão dos Pecados.
Mas esse
perdão, argumentou Blake, sendo uma supressão ou esquecimento, equivale à
revogação da Lei mosaica e da idéia de pecado: Pois Virtudes Morais todas
começam/ Na Acusação de Pecado. Declarou o pecado contingente a um
código, e não ao Pecado Original. Em conseqüência dessa interpretação de Jesus
Cristo como supressor da repressão, o moralismo é diabólico: Pois o que é
Anticristo senão aqueles/ que contra Pecadores fecham o Céu/ Com grades de
Ferro.
Se tais
textos corrigem a idéia do Blake possesso, em surto, a recíproca,
normalizá-lo, também é redutora. Loucura e criação não são incompatíveis:
Hölderlin escreveu poemas importantes depois de enlouquecer; e Gérard de
Nerval teve crises e surtos que resultaram não só nas experiências de efusão
do sonho na vida real relatadas em Aurélia, mas em sonetos de As
Quimeras. O romântico francês comentou, ironicamente: Recobrando o que
os homens chamam de razão, não deveria eu lamentar tê-la perdido?
Interessa
a noção de efusão ou transbordamento do sonho de Nerval.
Evidentemente, uma coisa é a transcrição de um sonho, ou então o relato de um
delírio, e outra sua efusão, que pode resultar em uma epopéia como Vala or
The Four Zoas, com suas 120 páginas na edição Keynes, à qual Blake deu o
seguinte subtítulo: um SONHO de Nove Noites, intitulando ainda cada uma
das suas nove partes como Noite a primeira, Noite a segunda,
etc – reproduzindo a valorização romântica do sonho, tão precursora do
surrealismo.
Não só
essa epopéia, como os demais poemas extensos de Blake requerem leitura e
interpretação através do que se sabe sobre a “lógica” do sonho. Especialmente
sobre um dos mecanismos da formação de símbolos, o deslocamento. No sonho,
seria possível um enredo no qual Jesus Cristo comparece, em sua condição de
salvador, para tornar-se Lúcifer, e este transformar-se em Jeová, que por sua
vez é alguém que conhecemos, e logo é um autor que lemos, e ainda algum
personagem inteiramente novo, enquanto também vão mudando a cena e as
situações nas quais isso ocorre. Há instabilidade dos símbolos: o mesmo
símbolo pode significar muitas coisas distintas, assim como vários símbolos
significam a mesma coisa. A instabilidade não é “ilógica”: tanto é que Frye,
em Fearful Symmetry, foi capaz de construir um diagrama, em forma de
matriz, dando conta dessas mutações em Vala or The Four Zoas. Mas isso
não permite dizer que esse poema não fosse delirante: delírios têm lógica;
mas é uma lógica própria. Nessa e em outras das obras de Blake, há, não só
polissemia, mas um universo que, desconhecendo os princípios lógicos da
identidade e não-contradição, é multidimensional. Assim como no sonho, os
símbolos flutuam em sua relação com o que significam. É seu infinito.
Nesse
infinito, apenas a imaginação seria estável. Matriz da criação, equivale à
existência do Adam Cadmon, o homem pleno. Conforme a fala dos Sete Anjos a
Satã, em Milton:
A Imaginação não é um Estado: é a própria Existência Humana.
Afeição ou Amor tornam-se um Estado quando divididos da Imaginação.
A Memória é um Estado sempre, & a Razão é um Estado
Criado para ser Aniquilado e uma nova razão ser Criada.
Tudo o que pode ser Criado pode ser Aniquilado: Formas não podem:
O Carvalho é abatido pelo Machado, o Cordeiro cai pela Faca,
Mas suas Formas Eternas Existem Para-sempre. Amem. Aleluia!
Ou, em
Jerusalem:
Não sei de nenhuma outra Cristandade e de nenhum outro Evangelho a não
ser a liberdade de ambos, corpo & mente, para exercer as Divinas Artes da
Imaginação, Imaginação, o Mundo real & eterno do qual este Universo
Vegetal não passa de uma sombra fugidia, & no qual viveremos em nossos
Corpos Eternos ou Imaginativos quando estes Corpos Mortais Vegetais não mais
existirem. Os Apóstolos não conheciam nenhum outro Evangelho.
Há uma
evidente resposta ao dualismo nessa passagem: a liberdade é de ambos, corpo
& mente. Talvez se referisse às doutrinas platônicas ao falar em sombra
fugidia neste Universo Vegetal, caído. Mas no centro não está mais
o logos impessoal, porém a imaginação, entendida do mesmo modo como a
celebravam Coleridge e Wordsworth, bem como Novalis e Baudelaire, que a
chamou de rainha das faculdades: uma faculdade evidentemente humana,
mas também divina; ou então, correspondente ao divino no humano, que em Blake
é o plenamente humano. Para os profetas gnósticos e apocalípticos da
Antiguidade tardia, o conhecimento, identificado à salvação, era
intransitivo, absoluto; mas a liberdade era transitiva: liberdade para sair
do mundo e deixar de existir como indivíduo. Para Blake, o conhecimento era
intransitivo, total, e também o era a liberdade.
Tanto em
sua poesia “simbólica” quanto em O Casamento do Céu e do Inferno, o
Paraíso é aqui: pode estar no grão de areia; porém apenas homens e mulheres
livres saberão enxergá-lo. E a salvação não é a saída do mundo, mas sua
restauração: o novo mundo, anunciado no final de Vala or The Four
Zoas:
Onde está o Espectro da Profecia? onde o ilusório Fantasma?
Partiram: & Urthona se ergue dos arruinados Muros
Em toda a sua força antiga para formar a dourada armadura da Ciência
Para a Guerra intelectual. A guerra das espadas agora partiu,
As escuras Religiões partiram & a doce Ciência reina.
Novo
mundo; e um mundo arcaico, primordial, no qual, como disse em O Casamento
do Céu e do Inferno, A altivez do pavão é a glória de Deus. / A
lascívia do bode é a dádiva de Deus. / A fúria do leão é a sabedoria
de Deus. / A nudez da mulher é a obra de Deus. Pois tudo o que
vive é Sagrado. Ou melhor, tudo o que fosse espontâneo, livre do controle
pela razão. Daí outra máxima famosa: O caminho do excesso leva ao palácio
da sabedoria. Em seu universalismo místico e poético, Todos os homens
são iguais, embora infinitamente vários, Assim (e com a mesma infinita
variedade) todos são iguais no Gênio poético. No centro do universo de
Blake, no lugar de Deus está o homem. Não o homem mundano, porém o Antropos,
equivalente ao universo. Suas epopéias são relatos da perda e reconquista da
plenitude. Não buscou o conhecimento abstrato, porém a vida. Não aspirava à
salvação, porém à liberdade, entendendo-a como liberdade de criar, e não só
como a libertação do mundo dos santos e místicos.
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NOTAS
1. Na tradução de Alberto Marsicano, assim como as demais citações
deste poema.
2. Scholem, Gershom G, On
the Kabbalah and its Symbolism, Schockem Books, New York, 1965, pg. 16.
3. Também de Blake, Complete Writings, assim como as citações
seguintes.
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Claudio Willer (Brasil, 1940) é um dos editores da Agulha.
Publicação original na Agulha – Revista de Cultura # 67 (Brasil,
janeiro de 2009).
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