ARTHUR DANTO
E A "TRANSFIGURAÇÃO DO BANAL" [1]
MARC JIMENEZ
As concepções estéticas de Arthur Danto inscrevem-se
também no quadro da filosofia analítica aplicada à arte. Todavia, não se trata
mais de elaborar uma teoria dos símbolos mas de dar conta da essência da arte
moderna.
Danto entende responder por outros meios à questão de
Goodman: "Quando há arte?" Como explicar, especialmente, que objetos
de banalidade tão aflitiva quanto os fac-símiles dos [cartões] de Brillo
expostos pelo artista Andy Warhol em 1964 podem ser percebidos como obras de
arte, enquanto os encontramos, quase idênticos, expostos em qualquer
súper-mercado?
A resposta é simples: coloquemos lado a lado uma
verdadeira caixa Brillo e uma cópia do artista, ou então um urinol funcional e
o ready-made de Duchamp. Percebe-se
uma diferença "estética"? Não, evidentemente, já que os artistas
fizeram tudo para que suas cópias fossem indiscerníveis do original. Conclusão:
só a interpretação permite explicar
esta "transfiguração" do objeto banal em obra de arte. Esta
interpretação escapa totalmente ao profano. Não é espontânea; supõe um público
informado, que conhece o meio da arte, e que se deixa ganhar por uma
"atmosfera de teoria artística". Danto fala do "clima"
criado pelo "mundo da arte". Assim, o iniciado, informado pelo
mercado, as mídias, os profissionais, os experts, os críticos titulares, podem
empreender a identificação do objeto e reconhecê-lo eventualmente como
"obra de arte".
O procedimento de Danto parece astucioso; mas deixa
vários pontos obscuros. Será que é legítimo associar Duchamp e Warhol? Pode-se
aplicar o mesmo raciocínio sobre um objeto industrial, "já pronto" -
estilo ready-made - , e um objeto
fabricado pelas mãos do artista - as caixas Brillo?
Admitamos que o fenômeno artístico permaneça o mesmo. A
comparação entre o objeto não exposto e o objeto exposto é probatória? Danto
precisa de fato: "Na minha opinião, uma obra possui um grande número de
qualidades que são completamente diferentes das de um objeto que, apesar de
materialmente indiscernível dela, não é uma obra de arte. Algumas destas
qualidades podem muito bem ser estéticas, ou dar lugar à experiências estéticas[1][2]."
Questão: que qualidades são estas se não são
perceptíveis? Se não são perceptíveis, como afirmar que são diferentes? Em quê
reside a diferença entre as qualidades "estéticas" e as qualidade
"não estéticas"?
Danto acrescenta: "[...] mas antes de poder reagir a
estas qualidades em um plano estético, é preciso que se saiba que o objeto em
questão é uma obra de arte. Então para poder reagir diferentemente a esta
diferença de identidade, é preciso que se saiba já fazer a diferença entre o
que é da arte e o que não é[2][3]."
Em resumo: é preciso saber diferenciar para saber
diferenciar. Para distinguir um objeto qualquer de uma obra de arte, é preciso
que já se saiba qual objeto é uma obra de arte. A solução reside, como vimos,
na interpretação... Mas resta compreender de onde a instituição, na origem,
tira esta pré-ciência que lhe faz adivinhar qual objeto é obra de arte.
O embaraço de Danto, que é também o de mais de um
visitante de exposições de arte contemporânea, não se atém ao fato de que se
conserva aqui a categoria "obra de arte" para aplicar a um objeto que
não reivindica nem um pouco esta qualidade?
Danto, como Goodman, considera como supérfluos e
inadequados o julgamento de gosto, a apreciação subjetiva e a avaliação
qualitativa. É verdade que, nos exemplos citados, tornariam provavelmente maior
a confusão. A interpretação do público é válida unicamente se chega a coincidir
ao máximo com a interpretação que o próprio artista dá da sua "obra".
Todo trabalho interpretativo consiste em acumular o máximo de conhecimentos
sobre o mundo da arte a fim de reduzir ao mínimo a margem eventual de
incompreensão entre a intenção do artista e o público.
Arthur Danto sublinha uma das tendências mais
controvertidas da arte do século XX: a que suspende a atribuição da qualidade
da obra de arte para ao que se sabe dela, do artista, de seus projetos, de sua
inserção no meio da arte. A arte não é nada além do que o que se decide que
seja, um puro produto, não mais artístico, mas artificial, produzido pelo jogo
da linguagem e da comunicação no interior da instituição artística.
É verdade, por exemplo, que as "ações" de
Joseph Beuys se esclarecem apenas a partir das intenções do artista e de sua
vida. La Chaise (1964), Le Costume de Feutre (1970), L'Arrêt
du tram (1976) são incompreensíveis para quem não conhece a simbólica dos
materiais empregados: graxa, feltro, metal etc. Sem nenhuma informação sobre o
sentido desses "objetos", o público veria nisso apenas dejetos, ainda
menos dotados - se é possível! - de atrações estéticas como a urinol de Duchamp e os [cartões] de
Warhol. Pode-se também, ao inverso de Danto, considerar estes “atos" como
provocações: fazendo talvez erupção no mundo da arte, mas, se conseguem entrar
na instituição, é com a esperança de abalar os muros e desestabilizá-la. Uma
esperança, de resto, quase sempre frustrada.
Mas, para Danto, esta concepção de uma arte hostil para a
sociedade e realidade não pode fazer esquecer que participa apesar de tudo ao
"mundo da arte", e que é também, conforme a expressão de Goodman, uma
"maneira de fazer o mundo". Trata-se aí de uma interpretação
incontestavelmente mais pragmática e realista do papel da criação artística na
sociedade ocidental moderna. Resta saber se esta imagem de uma arte
reconciliada com o mundo não é justamente a que os artistas se esforçam para
confundir em permanência.
Compreende-se melhor a origem do debate contemporâneo
entre a estética analítica, de tradição anglo-saxônica - essencialmente
norte-americana -, e a tradição européia cuja estética de Adorno, por exemplo,
se quer a herdeira.
Para uma, não poderia ser questão de representar ao
infinito o jogo não decisivo do julgamento de valor, sempre subjetivo,
pretendendo à universalidade. Faz valer a função do conhecimento da arte e a
possibilidade oferecida de se abrir para o mundo, até mesmo aceitá-lo tal como
é.
Para a outra, ao contrário, a obra de arte guarda
elementos históricos e sociais que a estética tem como tarefa explicitar. Não
somente a obra "julga", da sua maneira, a história e a sociedade, mas
ela mesma é candidata à apreciação e avaliação do público. Um pouco como se
este devesse a cada vez julgar a qualidade da prestação artística.
Estas duas grandes correntes da filosofia da arte são
inconciliáveis? A questão não está fechada.
A CRÍTICA DA MODERNIDADE:
O PÓS-MODERNO
A recepção favorável reservada, especialmente na França,
às teses de Nelson Goodman e Arthur Danto deve-se muito ao contexto artístico e
estético. Uma teoria que neutraliza os julgamentos de valor sobre as obras e
outorga prioridade à descrição sobre a avaliação assenta-se melhor em uma época
abalada pelo desaparecimento das referências e dos critérios estéticos.
Desde o fim dos anos 70, e no início dos 80, as críticas
dirigidas à modernidade e aos projetos vanguardistas ficaram mais vivas. A moda
dita "retrô" já era sintomática de uma recolocação em causa de um sentido
da história evoluindo de modo linear para um futuro modernista radiante. A
idade da pós-modernidade e do pós-vanguarda entende assinalar o fim da idade
moderna e a utopia de uma perfeição inacessível. A época é para o
individualismo e para a afirmação de uma liberdade que deixa a cada um o prazer
de julgar e de avaliar ao seu grado. Rejeitam-se os critérios e normas
estabelecidos pela arte moderna, e torna-se mais conciliador para com as formas
e estilos do passado.
Na França, em 1983, um defensor ardente da arte
contemporânea dos anos 60/70, anuncia, como subtítulo da sua obra, uma
"crítica da modernidade". O autor constata a distância entre o
dinamismo da vida cultural e a decadência das artes plásticas condenadas a se
alimentar nas fontes já esgotadas de uma modernidade moribunda: Dada, arte
conceitual, pop arte, neo-expressionismo etc.
É em termos vivos e vigorosos que é feito o retrato
aflitivo das "belas-artes": "De um lado, os últimos
representantes da pintura abstrata e analítica multiplicam ao infinito as
variações sobre o invisível e o quase nada. E para enganar esta penúria do
sensível, a glosa inchar-se-á em proporção inversa de seu objeto; mais a obra
se fará pequena, mais sábia sua exegese. Uma dobra da tela, um traço, um
simples ponto tornam-se pretexto para um extraordinário escrito ininteligível
em que se respondem diferentes jargões das ciências humanas [...], aliás,
ainda, os devotos da antiarte, sessenta anos depois de Dada, continuam agitando
os signos derisórios de um apelo às armas para quem nada responde - nem nunca
respondeu[3][4]."
As correntes ditas pós-modernas que se multiplicam no
domínio das artes e do pensamento filosófico aparecem, desde então, como
remédios salvadores para a crise. Do que se trata?
O termo pós-moderno encontra sua origem nos debates que
opõem, nos anos 60, os arquitetos construtivistas e modernistas, herdeiros da
Bauhaus, Walter Gropius, Moholy-Nagy, Mies van der Rohe, Le Corbusier, e uma
geração mais recente representada especialmente por Robert Venturi e Charles
Moore. Estes entendem reagir ao funcionalismo promovido por seus ilustres
predecessores. Eles consideram por demais austero e característico da
modernidade dos anos 20-30. Propõem uma arquitetura mais leve, dando mais
importância à fachada e aos elementos decorativos. Pela pura função, substituem
a "função-ficção simbólica". Agrada-lhes integrar formas do passado,
recorrer aos estilos antigos, sem todavia quebrar o caráter funcional da
arquitetura.
Declaram-se então pós-modernos, apesar do caráter
rebarbativo deste neologismo. Charles Moore, o arquiteto da Piazza d'Itália em Nova Orleans - um dos
exemplos mais espetaculares do pós-modernismo - não gosta da palavra. Se a
adota, é somente porque a arte, a moda e a decoração de interiores já se apropriaram
dele. Em 1978, Charles Jencks, crítico da arquitetura, declara empregar a
palavra pela primeira vez no seu livro L'architecture
postmoderne[4][5].
La condition
postmoderne, de Jean-François Lyotard aparece no ano seguinte (1979). A
obra da filosofia francesa, elaborada nos Estados Unidos, conhece uma
repercussão considerável. O autor explica como as grandes teorias científicas,
morais, ideológicas e artísticas do período moderno tendem a se tornar caducas.
Os "grandes relatos": conhecem uma crise de legitimidade. Ninguém
mais acredita seriamente no tema do progresso da humanidade nem no da
emancipação iminente do homem graças às ciência e técnica. Segundo Lyotard,
este processo de crise é irreversível. O termo pós-moderno é para ele
pejorativo. Não tem nada a fazer, diz ele, com a ideologia da pós-modernidade,
nem com as paródias e citações que invadem todas as artes.
O vocábulo pós-moderno encontra-se, então, afetado por
duas significações contrárias. Mas a moda e o espírito da época fazem sua obra.
O primeiro sentido ganha. Torna-se sinônimo de crítica da modernidade enquanto
Lyotard pedia somente que se reavaliasse a modernidade. Seus protestos contra o
amálgama não mudam nada. A época "moderna" é declarada terminada, e a
"pós-vanguarda", versão artística da pós-modernidade, propaga-se, na
música e filosofia.
O neologismo "pós-vanguarda", ainda mais que o
de pós-modernidade, pode fazer rir pelo fato de sua construção curiosa a partir
de dois prefixos antagônicos, "pós" e "avant" [antes]. Ele
propõe um "após" ainda que conservando um semblante de nostalgia em
relação ao passado. Dá esta impressão estranha de querer predizer o futuro
[escovando a história no sentido contrário].
Esta ambigüidade caracteriza efetivamente as correntes
artísticas dos anos 80, especialmente nas artes plásticas: os
"anacrônicos" ou "citacionistas" italianos e franceses,
consagraram para a bienal de Veneza em 1984, o movimento Trans-vanguarda de
Achille Bonito Oliva, os [Novos Faunos] alemães exprimem ao mesmo tempo uma
firme vontade de ultrapassar o modernismo e uma grande perplexidade diante do
desaparecimento das vanguardas. Os artistas esgotam na memória histórica,
justapõem ou misturam de modo eclético estilos heterogêneos em uma mesma obra,
abraçam o decorativo, a citação, o folclore em um caos sempre lúdico e
humorístico.
Trata-se de conjurar o medo de entrar na
"pós-história" e comemorar no final com um buquê brilhante o fim do
espetáculo oferecido pela modernidade? Achille Bonito Oliva parece pensar isto
quando declara, em 1980, que o contexto atual da arte é um contexto de
catástrofe, "ajudado por uma crise generalizada de todos os
sistemas". Este sentimento de crise global afeta tanto a arte, a cultura
quanto a economia e a política. Conduz a conceber um fim possível da história.
O que não significa evidentemente que a história pare, mas que a única maneira
de responder à ausência das antigas referências e à dissolução dos valores
tradicionais consiste em extrair dos fundos inesgotáveis da história da
humanidade.
Baudelaire sabia que o pintor da vida estava condenado a
levantar o retrato de uma modernidade transitória, fugidia e contingente. Mas
esta modernidade não podia ser ultrapassada senão por uma outra modernidade
também precária, e assim sucessivamente. O artista da era pós-moderna só tem a
escolha da retrospectiva repetida do passado e a aceitação do presente. Livre da utopia modernista é convidado a
gozar, serenamente e sem aspirações ilusórias e "futuristas", dos
feitos da época atual: "A grande cultura e a cultura comum, declara Bonito
Oliva com entusiasmo, operam uma junção que favorece a instauração de uma
relação cordial entre a arte e o público acentuando o aspecto sedutor da obra e
o reconhecimento de sua intensidade interior”.
A pós-modernidade não é um movimento nem uma corrente
artística. É bem mais a expressão momentânea de uma crise da modernidade que
atinge a sociedade ocidental, e em particular os países industrializados do
planeta. Mais que uma antecipação do futuro que se recusa a projetar, aparece,
sobretudo como sintoma de um novo "mal-estar na civilização". O
sintoma desaparece progressivamente. A crise fica: mantém um lugar
considerável, hoje, no debate estético sobre a arte contemporânea.
A ARTE E A CRISE
O sentimento de crise generalizado é próprio a cada fim
de século. Todavia, esta impressão é talvez mais forte quando este fim coincide
com o do milênio.
Nada é mais revelador da morosidade ambiente dos anos 90
que os leitmotivs sobre o tema "a arte está em crise, a crise está
na arte, o caos está em tudo e tudo está em caos!", que as revistas
especializadas e mesmo a imprensa para o grande público fazem eco. Justapor
algumas citações extraídas de comentários recentes basta para compor o quadro
de um naufrágio: "mercado de arte falido", "instituição
falha", "rede cultural opaca", "crítica de arte
temerosa", "modernidade ditatorial", "vanguarda
terrorista", "mídias recuperadoras", "ensino artístico
anêmico", "pintura inexistente", "música contemporânea
elitista e confidencial", "artistas charlatões", "Duchamp,
pai de uma posteridade desastrosa" etc.
Mas invertamos este triste quadro e olhemos o outro lado:
as instituições públicas subvencionam a criação artística contemporânea e
salvaguardam o patrimônio, as empresas privadas multiplicam seu apoio aos
artistas graças ao mecenato e ao financiamento,
um público zeloso e fiel apressa-se aos festivais e exposições, sem falar do
papel crescente das mídias tecnológicas no domínio da experiência estética
individual.
Não teríamos tendência a esquecer que as incertezas, os
problemas e exasperações marcam a história da arte? Sobretudo no decorrer dos
dois últimos séculos, divididos por rupturas, a sucessão dos "ismos"
e os choques repetidos das vanguardas! A crise não designaria o estado permanente
da evolução artística, como o da sociedade inteira?
Qualquer época experimenta este sentimento de estar em um
momento decisivo, oscilando entre a nostalgia do "déjà vu" e o desejo
do "nunca visto"; período de desconforto e incerteza em que os
antigos valores perecidos não foram ainda substituídos pelos novos; instante de
desespero tão profundo que "a humanidade projeta inconscientemente seu
desejo de sobreviver na quimera das coisas nunca conhecidas, mas esta quimera
parece com a morte[5][6]".
Recordemos Platão caçando, fora da cidade, poetas e
compositores de música voluptuosos demais, Le Brun qualificando os coloristas
de embrulhões e tintureiros, Carl Maria Von Weber declarando Beethoven
"bom para o asilo de alienados" e burgueses que gritavam diante do Le déjeuner sur l'herbe, antidebussystas
que vociferavam na avant-première de Pelléas
et Mélisande etc. Paremos essa lista interminável de qualquer modo!
A crise atual, ilusão ou realidade? Duas interpretações
enfrentam-se. Parecem tão contraditórias a ponto de mergulhar na maior
perplexidade a reflexão estética contemporânea, desesperadamente em busca de
uma visão global da situação presente. Mas pode-se formular uma hipótese:
perguntar-se, por exemplo, se "crise" e "ausência de crise"
não seriam as duas faces do mesmo fenômeno, a saber, o nascimento de um
poderoso sistema econômico encarregado da gestão das práticas culturais e
artísticas.
As instituições e as indústrias culturais têm de fato
conhecido um desenvolvimento sem precedente no curso das duas últimas décadas.
O sistema cultural moderno tem a vantagem de suprimir o antigo antagonismo
entre a arte burguesa, sempre elitista, e a arte de massa, reservada ao vasto
público. Governado pelo princípio da rentabilidade, distribui ao maior número o
máximo de bens culturais e funciona como um gigantesco país de Cocagne onde
cada um pode à vontade satisfazer seus desejos e paixões.
Esse sistema tolerante e laico aceita todas as formas e
estilos da arte passada, moderna e contemporânea. Todavia, faz passar para
segundo plano as hierarquias de valores e diferenciações estéticas, não por
isso se desinteressa do valor das obras. Mas dispõe de seus próprios critérios,
conhecidos unicamente pelos experts e especialistas do mundo da arte e
só deles. Seus meios promocionais são tais que podem chegar a criar um consenso
em torno de obras contemporâneas, mais apreciadas em função do renome do
artista do que em razão de suas próprias qualidades, e cuja chave escapa, na
maior parte das vezes, ao grande público.
Criador de seus próprios valores e de seus critérios de
excelência, o cultural pode então poupar-se de fazer a reflexão estética que,
inevitavelmente, interessa-se prioritariamente às resistências que cada obra
opõe a sua absorção no circuito do consumo cultural. Apesar dos fatores
econômicos, sempre conjunturais, o mal-estar contemporâneo é bem real.
Paradoxalmente, resulta do próprio sucesso de um sistema cultural hegemônico,
apto a desarmar qualquer crítica graças à sua generosidade e à abundância de
suas prestações.
É bastante significativo que o termo cultura tende a se
substituir ao de arte nas expressões mais correntes da vida cotidiana. A arte
ou as artes tornam-se um sub-conjunto de uma esfera em constante expansão. Esta
esfera é a da "comunicação cultural" que dispõe de todos os meios
tecnológicos e das mídias a serviço da difusão e da promoção de seus produtos;
outra palavra que, muito freqüentemente, substitui a de obras, considerada
ligada demais à uma concepção tradicional da criação artística.
Pode-se então falar de uma "lógica cultural"
para designar o processo de universalização respondendo à exigência de
democratização na sociedade moderna. Mas esta lógica cultural não satisfaz
todas as expectativas da experiência estética coletiva ou individual. Sabe-se
bem, por exemplo, que o público, sempre perplexo diante de certas criações
inéditas da arte contemporânea, espera em vão a revelação dos critérios
estéticos que permitiram a seleção de tais produções e não de outra.
Seguramente, estes critérios existem, mas permanecem freqüentemente propriedade
de experts e de tomadores de decisão, quase sempre competentes, mas
discretos.
Excluído de um jogo do qual ignora as regras, o público
não demora a se convencer da existência de um consenso entre iniciados que o
condena a representar o papel de consumidor profano e dócil. Frustrado e
desorientado, deixa-se desde então ganhar pelo espírito da época, o da
dissolução total dos critérios estéticos; época de grande beatitude, em que
tudo é soi-disant possível na arte,
inclusive o "qualquer coisa", Walter Benjamin não predisse o fim da
crítica no dia em que o homem chegasse a realizar seu sonho de viver em uma Disneyworld?
A QUESTÃO DOS CRITÉRIOS ESTÉTICOS
A reflexão atual sobre a arte consagra parte de seus
esforços em resolver esta tensão entre a "lógica cultural" e a
"lógica estética", entre a aceitação passiva dos feitos do sistema
cultural e a vontade de legitimar a apreciação e os julgamentos aos quais se
expõem as obras.
Já fizemos alusão ao gesto provocador e iconoclasta de
Marcel Duchamp desde o início do século XX: expor, em uma galeria de arte, um
objeto já pronto, um ready-made, estilo roda de bicicleta, pente,
porta-garrafas, ou o máximo: um urinol. Dito de outro modo, nada que não
solicite realmente o sentido estético. Duchamp declara-se anartista, hostil à
pintura que define como retiniana, pintura de cavalete, suspensa nas molduras e
destinada a mobilizar o olhar unicamente.
É, bem entendido, perfeitamente consciente da blasfêmia:
"Meu urinol partia da idéia de fazer um exercício sobre a questão do
gosto: escolher o objeto que tenha a menor chance de ser amado. Um urinol, tem
pouca gente que acha isso maravilhoso. Pois o perigo é o deleite artístico.
Mas, pode-se fazer as pessoas engolirem qualquer coisa; foi o que
aconteceu." Efetivamente, "aconteceu", se bem que por uma
curiosa ironia da sorte, gerações de artistas e amadores chegaram desde 1917, a deleitar-se com o
não-deleitável.
Há múltiplas interpretações do gesto de Duchamp. Deve-se,
então, limitar-se às que nos interessam e que se atém a poucas palavras.
Esqueçamos a vontade do artista de questionar um modo de representação
pictórica solidamente ancorada na cultura ocidental, sobretudo desde o
Renascimento. Esqueçamos também a armadilha colocada na instituição artística,
e a resposta dessa instituição que, finalmente, se presta ao jogo.
Restam traumatismos e seqüelas do que parece ainda sofrer
nossa época. O ready-made coloca de
fato a questão da definição da arte: nada ou quase nada de início, um objeto
banal ou trivial se transforma miraculosamente em "obra de arte" pela
graça do batismo do "artista" e da "confirmação" da
instituição. O milagre deve-se a pouca coisa: basta deslocar as fronteiras da
arte. Não se pergunta mais: "O Que é a arte?" Mas como diz Nelson
Goodman: "Quando há arte?", a partir de que momento e em que
condições opera-se a transmutação?
De fato, o problema está aqui mal colocado. Não há
transmutação nem conversão do ready-made em
objeto de arte mas simplesmente erupção no campo artístico de uma ação inédita,
do tipo Dada. A implicação do mundo da arte transforma esta falácia em
brincadeira séria.
De fato é. Pois este ato sacrílego - ou dessacralizante -
tem por conseqüência um abalo de todos os critérios clássicos que servem
habitualmente para julgar e criticar uma obra, ou mais geralmente como objeto
de arte. Não é espantoso que o século XX terminando, já perturbado pelo
desaparecimento dos critérios modernos ou vanguardistas e o ecletismo
pós-moderno, considere Duchamp - erradamente - como o grande responsável pela
decadência da arte contemporânea.
Que soluções propor para a decadência dos critérios
estéticos? Três apresentam-se evidentemente ao espírito: restaura-se os
critérios antigos, substitui-se a obrigação de julgar e avaliar pela imediatez
e espontaneidade do prazer estético ou pesquisa-se novos critérios.
A revalorização dos critérios tradicionais coloca
problemas insolúveis. Que tipo de critérios? Tomados de que época? Antiga,
clássica, romântica, moderna?
As normas e convenções estéticas exprimem a sensibilidade
de uma sociedade em dado momento; não são entidades abstratas que se pode levar
como quiser na história. Ir adiante é provar uma nostalgia pelo passado, às
vezes respeitável, mas inapta para compreender a evolução da arte. A menos que
já não seja, nela mesma, um julgamento, implícito e desfavorável, sobre a arte
contemporânea.
A segunda solução consiste em erigir o prazer e o gozo
estéticos como critérios de qualidade ou de sucesso de uma obra. Essa atitude
não é nova. Remonta ao século XVII e lembra os intermináveis debates sobre o
gosto, entre os partidários do sentimento e os defensores do julgamento fundado
na razão. Todo mundo concorda facilmente com reconhecer que a falha insuperável
de uma obra de arte é de suscitar a indiferença ou o aborrecimento. Deve-se,
portanto, dizer que prazer vale julgamento?
Certo, resolve-se o problema dos critérios
[irreconhecíveis], especialmente para a arte contemporânea. Elimina-se a
questão do julgamento, da avaliação, da hierarquia de valores, pedra angular da
estética. Mas simplifica-se ao extremo a noção de prazer. Freud bem mostrou que
o domínio do prazer e do gozo estéticos apresenta a mesma complexidade que o
gozo erótico: tanto um quanto o outro é ambivalente. Isso significa que o gozo
e o prazer guardam boa dose de seus contrários, assim como o ódio é
amigo-inimigo do amor.
Além disso, pode-se dificilmente admitir que o prazer
seja uma espécie de dado em estado puro na obra de arte. Uma obra de arte
agrada-me! Mas o prazer que sinto, sou eu que o elaboro em função do meu
temperamento, do despertar da minha sensibilidade para a arte e de minha
educação. O prazer, nada específico à esfera estética, não é um critério de
qualidade artística. Que seja um dos múltiplos elementos do julgamento, pode
ser, mas ensina-me muito mais sobre mim mesmo do que sobre a obra a qual estou
confrontado.
Enfim, o prazer não poderia indicar o que quer que fosse
da qualidade artística da obra. O prazer sentido pela leitura de um romance
policial ou por um espetáculo de um filme destinado a divertir não incita,
portanto, a julgar que se trata de obras-primas, nem mesmo obras de arte. Ao
inverso, pode acontecer que uma coreografia moderna, desconhecida para meu
gosto ou então uma pintura realista e crua acabem por forçar a minha atenção a
despeito de qualquer atração espontânea. Tudo aqui é questão de nuances, e são
essas diferenciações, às vezes sutis, que permitem considerar a estética - o
que, aqui, agrada aos sentidos - e ao artístico, que supõe um mínimo de
objetividade.
A terceira via orienta-se para a definição de critérios
estéticos específicos às obras contemporâneas. Concebe-se sem pesar a
dificuldade desse tipo de pesquisa. Os critérios, vimos, são expressão de uma
situação histórica e social particulares. Não existem critérios atemporais
imutáveis que permitam apreciar nas mesmas bases um quadro de Botticelli e uma
obra de Francis Bacon, a música de Palestrina e a de Ligeti.
Se se atém absolutamente a falar de critérios, é preciso
então procurá-los não em uma esfera transcendente qualquer, a-histórica, mas na
obra mesma. Admitir-se-á, por exemplo, que é difícil considerar como obra de
arte bem sucedida, e ainda mais como obra-prima, um objeto suscetível de passar
desapercebido. Assim como uma composição pictórica, musical ou literária
incoerente, elaborada de modo arbitrário, totalmente aleatória, a partir de
materiais e formas justapostas de modo heterogêneo, impõe-se raramente como
obra de arte... Salvo se esta incoerência deve-se a um procedimento intencional
e inscreve-se em um projeto coerente do artista, tal como a escritura
automática dos surrealistas.
A "obra de arte" designa habitualmente um
objeto, uma ação, um gesto que apresenta um mínimo de lógica e de rigor no seu
procedimento. Contrariamente ao preconceito corrente, as obras de arte não se
perdem nesta falta de nitidez artística ou estética que serve muito
freqüentemente para depreciar a arte aos olhos dos cientistas.
Pode-se dizer que o gesto do escultor, a técnica
contrapúntica, o toque do pintor, a escritura poética, a regragem coreográfica,
o gestual do ator são desprovidos de precisão? Censura-se ao Traité d'harmonie de Schönberg, ao Clavecin bien temperé de Bach, ao Traité de la peinture de Leonardo da
Vinci, às Demoiselles d'Avignon de
não serem claros? Até o primeiro ready-made
de Marcel Duchamp, se é "qualquer coisa", não está em qualquer
lugar, em qualquer tempo, não importando como!
Mas as obras citadas aqui produziram, sobretudo, critérios
mais que obedeceram à modelos pré-estabelecidos. Como dissemos antes, são as obras de arte que engendram os critérios e não o inverso.
Todas as obras de arte não são obras-primas. Quando se tornam significa que
souberam transgredir as normas em vigor na sua época. Mas isso, só o tempo pode
provar.
Aplicada à arte
contemporânea, a questão dos critérios aparece então como um falso problema.
Imaginemos um critério aparentemente indubitável como o evocado acima: o
caráter racional da obra. Quem me diz que este critério é e será sempre o bom?
Qual é o critério do critério, e assim sucessivamente? Não valeria mais dizer
que o aspecto "lógico" é, ele também, um dos parâmetros entre outros
de uma obra. Certo, é importante porque constitui um elemento de inteligibilidade
e de compreensão da obra. Permite a análise crítica e a interpretação e logo o
discurso conceitual comunicável ao outro.
Todavia, esse parâmetro não diz nada sobre a qualidade da
obra. Vale o que valem a técnica, a profissão e o saber. Úteis para distinguir
o charlatão do verdadeiro artista, não são esses critérios nem necessários nem
suficientes: quantas obras não resultam de um evento contingente, de um
acidente, às vezes de um gesto imprevisível como o que conduziu o artista
americano Jackson Pollock a "inverter" a técnica do dripping [gotejar, molhar, ensopar]!
Quantas obras, em revanche, nasceram de um profissionalismo rigoroso, realçando
o indizível aborrecimento do dever bem feito?
Pode-se admitir que nas obras mais desconstruídas, mais
extravagantes reina uma ordem oculta, ligada ao inconsciente, ao jogo das
"pulsões primárias" como demonstrou o psicólogo Anton Ehrenzweig[6][7].
Entretanto, mesmo essas pulsões não resultariam, com freqüência, como Freud
também mostrou, de uma pequena desordem... na origem?
O DESAFIO DA ESTÉTICA
Nenhuma teoria estética dispõe hoje de guia que
permitiria atribuir infalivelmente as estrelas do mérito às obras, na maior
parte, a espera de interpretação. No fim do século XX, a filosofia da arte é
obrigada a renunciar a sua ambição passada: a de uma teoria estética geral
abarcando o universo da sensibilidade, do imaginário e da criação.
Não se pode estar ao mesmo tempo na janela e se ver
passar na rua, dizia Auguste Comte. Ao mesmo tempo perto e longe das obras, a
estética encontra-se nesta situação; ela apenas pode lastimar não ter o dom da
ubiqüidade [onipresença]. Imersa na sua época, é legítimo que sonhe em realizar
uma outra universalidade que a proposta pelo sistema cultural; legítimo,
também, que tente elaborar critérios livres dos imperativos do mercado de arte,
da promoção pela mídia e do consumo.
Sua tarefa parece então com a de Sisyfe: exumar uma obra
desaparecida por anos de indiferença e esquecimento ou proceder para a
valorização de um artista contemporâneo, é também correr o risco da sua próxima
integração ao universo indiferenciado dos bens culturais. Este risco seria
suficiente para obrigá-la a renúncia? Seria esquecer que a estética é caso de
"distância conveniente[7][8]".
Próxima demais da "mundanidade", contenta-se em aspirar o ar da
época; cede aos modos efêmeros e renuncia a sua vocação filosófica que é de ver
"além". Longe demais da realidade, afunda-se na especulação abstrata.
A visão correta? Basta acomodar o olhar sobre proposições
de artistas e reter seu convite a viver intensamente uma experiência em ruptura
com a cotidianidade. Estas proposições podem intrigar, chocar, desviar,
angustiar, às vezes também, entusiasmar e maravilhar. A tarefa da estética
consiste precisamente em dar uma extrema atenção às obras a fim de perceber
"simultaneamente todas as relações que estabelecem com o mundo, com a
história, com a atividade de uma época[8][9]. Religa-se,
então, com a exigência de Kant: sair da solidão da experiência individual,
subjetiva, e abrir esta experiência, senão a todos, ao menos ao maior número.
Baumgarten já pressentia que a estética era uma
"ciência" particular. É dizer pouco! Como toda ciência, ela evolui em
função de seu objeto. Mas, ao inverso, deve sempre esperar ser ultrapassada por
ele. Na realidade, ela não espera jamais; faz-se sempre surpreender pelas
rupturas e choques intempestivos da criação artística.
Lembra-se da alternativa colocada por Friedrich Von
Schlegel: ou a arte, ou a filosofia. Não é proibido pensar que a estética
deve-se reconciliar em permanência uma a outra. Como toda disciplina, ela se
constrói sobre a base das dificuldades que encontra mas também das solicitações
das quais é objeto. Nos dias de hoje, estas solicitações resultam precisamente
do desespero causado por uma crise da qual agrada dizer que é sem equivalente
na história. Como se nossa época devesse gozar o privilégio da originalidade!
Mas nem a estética, nem a filosofia têm por vocação repetir periodicamente a
oração fúnebre da arte, dos critérios, da crítica, dos valores, dos ideais
perdidos ou momentaneamente perdidos.
A estética toma partido se responde às demandas
crescentes de interpretação, de elucidação e de sentido; demonstra-se que
circular nos parques de atrações da cultura é agradável, mas é mais importante
ainda que a cultura circule em cada um de nós.
Desde os Tempos modernos, a filosofia teve que fazer seu
luto da metafísica, da verdade, do Ser, da ciência, das grandes ideologias, das
utopias da modernidade; do homem também, que confiou aos bons cuidados das
ciências humanas. Mas nunca pôde realmente cortar o laço com a arte.
Instrumento pedagógico, argumento teológico, instrumento de propaganda, cópia
da natureza, aparência inofensiva, reflexo da realidade, projeção de fantasmas,
paixão narcísica, objeto de prazer, meio de conhecimento, a arte sempre foi o
joguete da filosofia. A filosofia, todavia, leva esse joguete a sério, talvez,
secretamente invejosa do artista capaz de captar num gesto, numa cor, num
simples acorde o que o discurso e os conceitos não chegam jamais realmente a
exprimir.
A arte revela-se assim como a questão essencial da
filosofia. Bem raros são os filósofos que não entraram no jogo, antes mesmo que
a estética nasça um dia da filosofia. E é porque o filósofo da arte não pode,
sob pena de desaparecer, acreditar seriamente em uma morte da arte. Ou bem, se
acredita, é à maneira de Francis Picabia declarando: "A arte está morta!
Sou o único a não tê-la herdado”.
[9][1] In: Le tournant du XX
siècle, Le tournant culturel de l'esthétique. Jimenez
[10][2][1][2] Arthur Danto, La
Transfiguration du
banal. Une philosophie de l'art, Paris, Le Seuil, 1989, p. 160.
Tradução de Mirian Magda Giannella
[12][4] Jean Clair, Considérations sur l'État des beaux-arts.
Critique de la modernité,
Paris, Gallimard, 1983, p. 12-13.
[13][5] Charles Jencks, L'architecture postmoderne, Paris,
Denoël-Gonthier, 1978.
[14][6] T.W.Adorno, Minima Moralia. Réflexions sur la vie
mutilée, Paris, Payot, 1980, trad. E. Kaufholz e J. R. Ladmiral, p.222.
[15][7] Anton Ehrenzweig - L'ordre caché de l'art. Essai sur la
psychologie de l'imagination artistique, Paris, Gallimard, trad. F.
Lacoue-Labarthe e c. Nancy, 1974.
[16][8] Expressão de Walter
Benjamim.
[17][9] .Jean Starobinski, La relation critique, Paris, Gallimard,
1970, p. 195.