Vênus e Adônis de
Shakespeare
Por Rafael Antonio Blanco
Como a
maioria de seus contemporâneos, Shakespeare aparentemente não considerava a
escrita de peças como uma atividade literária elegante. Ele devia saber que era
bom em fazê-las, e ele certamente se tornou famoso em seus dias como um
dramaturgo, mas ele não fez grandes esforços para a publicação de suas peças.
Nós não temos prefácios literários para as peças, nem indicação que Shakespeare
as via impressas. Escrever para o teatro era antes como escrever para filmes
nos dias de hoje: um empreendimento lucrativo e mesmo glamoroso, mas
subliterário. Quando Ben Jonson trouxe a tona suas Obras coletadas (a maioria
peças) durante sua época, ele foi debochado por sua pretensão.
A escrita
de sonetos e outras poesias “sérias”, pelo contrário, era convencionalmente uma
aposta para a verdadeira fama literária. A epístola introdutória de Shakespeare
para seu Vênus e Adônis trai o entusiasmo por reconhecimento. Diferentemente,
ele busca o patrocínio do Conde de Southampton, com esperança de prestígio
literário assim como suporte financeiro. Ele fala de Vênus e Adônis como “o
primeiro herdeiro da minha invenção”, pois de fato ele não havia escrito nenhum
peça anteriormente, e promete a Southampton um “trabalho de escultor” que
apareceria em breve. Vênus e Adônis, em 1593 e O Rapto de Lucrécia em 1594
foram, de fato, as primeiras publicações de Shakespeare. Ambas foram
cuidadosamente e corretamente impressas. Elas foram provavelmente compostas
entre junho de 1592 e maio de 1594, um período em que os teatros estavam
fechados por conta da peste. A crença de Shakespeare na importância dos poemas
para sua carreira literária é confirmada por relatos de seus contemporâneos.
Richard Barnfield seleciona-os como as obras que provavelmente mais asseguram
um lugar para Shakespeare no “imortal livro da fama.” Francis Meres, em seu Palladis
Tamia: Wit´s Treasury exclamou em 1598 que “a doce arguciosa alma de Ovídio
vive na doce língua de mel de Shakespeare: testemunha seu Vênus e Adônis, sua
Lucrécia, seus sonetos açucarados entre seus amigos privados, etc.” Gabriel
Harvey, apesar de preferir Lucrécia e Hamlet como mais prazerosos para “o tipo
sábio”, concedeu que “o tipo mais jovem tira muito prazer do Vênus e Adônis de
Shakespeare.” John Weever e ainda outros adicionaram outros testemunhos à
extraordinária reputação dos poemas não-dramáticos de Shakespeare.
Como o
comentário puritano de Gabriel Harvey à Vênus e Adônis sugere, esse poema foi
considerado amatório e até obsceno. Ele espelha uma corrente em voga na época
de poesia erótica ovidiana, como exemplificado por Thomas Lodge em Scilla
Metamorphosis, de 1589 (na qual uma ninfa amorosa corteja um relutante
homem jovem), e por Christopher Marlowe em Hero e Leander. Este último
poema, inconcluso por causa da morte de Marlowe em 1593 e publicado em 1598 com
uma continuação por George Chapman, era evidentemente circulado em manuscrito,
assim como muitos poemas sofisticados desse tipo, incluindo os sonetos de
Shakespeare. Shakespeare pode ter sido influenciado pelo tom de ironia cômica,
indiferença e graça sensual de Marlowe. Ele pode também ter lido Endymion
and Phoebe de Michael Drayton (publicado em 1595, mas escrito
anteriormente), no qual a tradição erótica é um tanto quanto idealizada numa
alegoria moral. Mais importante, entretanto, é que Shakespeare conhecia Ovídio,
tanto no original quanto na tradução para o inglês de Golding (1567). Ele
parece ter combinado três fábulas místicas das Metamorphoses. O contorno
narrativo é encontra na busca de Vênus por Adônis (Livro 10), mas a tímida
relutância do jovem homem relembra mais Hermaphroditus (Livro 4) e Narciso
(Livro 3). Hermaphroditus alega à juventude como sua razão por desejar escapar
das garras da ninfa da água Salmacis e então é transformado com ela num corpo
único contendo ambos os sexos; Narciso evita a ninfa Echo pela paixão por si
mesmo. Shakespeare assim desenhou um retrato composto do acanhamento masculino,
um tema que ele iria explorar mais nos sonetos. Esse tema era adequado a um
homem nobre a juventude e as perspectivas de Southampton. Em tom ele era também
bem apropriado para a aristocracia e a intelectualidade que lia esse tipo de
poesia. Shakespeare aqui apontava para uma audiência mais refinada do que
aquela que ele escrevia peças, apesar de que sua audiência teatral devia ser
geralmente inteligente. As qualidades de ornamento de Vênus e Adônis devem ser
julgadas no contexto elegante de uma audiência sofisticada.
O poema
é, entre outras coisas, a realização de difíceis técnicas poéticas estilizadas.
A história ela mesma é relativamente sem eventos, e os personagens são
estáticos. Ao longo de dois terços do poema, muito pouco ocorre mais do que uma
série de envolvimentos amorosos, dos quais Adônis fracamente tenta se libertar.
Mesmo sua luta subsequente com o javali e sua violenta morte são ocasiões para
pathos retóricos em vez de uma vívida descrição narrativa. A história é
essencialmente um quadro. Similarmente, nós não devemos profundidade
psicológica ou autodescoberta significativa. As convenções dos versos amatórios
não encorajam um sério interesse no personagem. Vênus e Adônis são porta-vozes
de atitudes contrastantes diante do amor. Eles debatem um tópico cortês
favorito no estilo de John Lyly. Ambos apelam para a sabedoria convencional e
falam em sentenças, ou pronunciamentos aforismáticos. Vênus, por exemplo,
alerta Adônis da necessidade de precaução ao perseguir o javali, opina que “O
perigo planeja mudança; a argúcia espera com medo” (linha 690). Adônis
suplicando o seu despreparo para o amor, cita analogias de triviais: “Nenhum
pescador exceto o girino imaturo reprime / A suave ameixa cai; o verde crava
rápido” (linhas 526-7). No âmago, seus argumentos são usualmente convencionais.
Vênus encoraja a filosofia do carpe diem de se apegar ao momento do prazer.
“Faça uso do tempo, não deixe a vantagem escorregar; / A beleza dentro de si
não deve ser desperdiçada” (linhas 129-30). Ela reforça sua reivindicação com o
apelo para a “lei da natureza”, de acordo com a a obrigação de todas as coisas
vivas serem obrigadas a reproduzirem-se; somente ao se reproduzirem os humanos
podem conquistar o tempo e a morte. Ainda, por mais perto que essa posição
possa estar do tema maior dos sonetos, ela não se dá sem ser disputada. Adônis
acusa vigorosamente que Vênus está apenas racionalizando seu desejo: “Ó,
desculpa estranha. / Quando a razão se prostitui para o abuso do desejo!”
(linhas 791-2). Seu pleito por mais tempo para amadurecer e provar sua
masculinidade é entendível, por mais que sorrimos em sua inabilidade de excitar
pelas lisonjas de Vênus. Assim, nenhum competidor ganha o argumento. Vênus é
provada correta em seu medo que Adônis seja morto pelo javali que ele caça, mas
a rejeição de Adônis do desejo ocioso por atividades masculinas afirma a ideia
convencional da masculinidade que requer a carne de alguma espada fálica. O
debate é, num sentido, um engenhosamente elaborado exercício literário, ainda
que ele também permita à reflexão sobre pontos de vistas contrastantes do amor
sensual e espiritual, absurdo e magnificente, engraçado e sério.
A pessoa
do narrador é central para a ambivalência do debate. Ele, também, fala em
sentenças, e seus aforismos parecem simpatizar com ambos os competidores. Em
certos momentos, ele afirma a irresistível força do amor: “Que embora a rosa
tenha espinhos, ainda assim ela é colhida” (linha 574). Em outros momentos, ele
ri de Vênus por sua vacilação de humor: “Tua felicidade e desgosto são ambos
extremos. / Desespero e esperança fazem de ti ridícula” (linhas 987-8). Como a
pessoa usual de Ovídio, o falante aqui está ao mesmo tempo intrigado e
entretido pelo amor, compelido a considerar seu poder e ainda ter consciência
de suas absurdidades. O resultado é uma característica mistura ovidiana entre
ironia e pathos. A ironia é especialmente evidente nos prazerosos toques
cômicos que minam a potencial seriedade da ação: Vênus como uma amazonas
puxando Adônis para fora de sua montaria e prendendo-o debaixo de um braço,
amuado e corado; o cavalo de Adônis perseguindo uma égua no cia deixando Adônis
para defender-se por si mesmo; Vênus desmaiando ao pensar no javali e puxando
Adônis para cima dela, “na enumeração do amor / O campeão dela montado para o
encontro quente” (linhas 595-6). Esses dispositivos distanciam-nos da ação e
criam uma atmosfera de elegante senão sensual entretenimento. O poema é também
banhado o rico pathos da emoção sensual. A angústia de Vênus sobre a morte de
Adônis é muito genuína. A sensualidade irá saciar-se sem o humor irônico,
enquanto o humor parecerá frívolo sem o pathos.
O poema
insinua uma alegoria moral, na maneira da mitologização ovidiana. Vênus
representa a si mesma como deusa, não somente da paixão erótica, mas também do
amor eterno conquistando o tempo e a morte. Porque Adônis perversamente recusa
esse ideal, Vênus conclui que a beleza humana deve perecer e que a felicidade
humana deve ser sujeita ao infortúnio. Ainda essa leitura é somente uma parte
do argumento e é contradita por uma sugestão oposta que Adônis é o princípio
racional tentando sem sucesso governar o desejo humano (o javali e o cavalo
incontrolável de Adônis). Essas contradições, que derivam da estrutura do poema
como um debate e também do Neoplatonismo do Renascimento, confirmam nossa
impressão que a alegoria não é o verdadeiro “significado” do poema mas é parte
de uma visão ambígua do amor como ambos exaltado e mundano, um mistério que nós
nunca compreenderemos em termos simples. A alegoria eleva a seriedade,
adicionando dignidade poética ao que pode de outra forma parecer ser um
equilibrado poema erótico. Não devemos minimizar a provocação sexual ou
falharmos em reconhecer nosso próprio prazer erótico nele. Os encontros repetitivos
de Vênus com Adônis tomam a forma de posições ingenuamente variadas, terminando
num abraço de coito, apesar de que sem consumação. Os papeis passivos de Adônis
convidam o leitor masculino a fantasiar a si mesmo no lugar de Adônis, sendo
seduzido pela deusa da beleza. A famosa passagem comparando o corpo de Vênus a
um parque de bichos com “fontes do prazer”, “doces traseiros de grama”, e
“montes roliços elevados” (linhas 229-40) é gráfico através do uso da
ambiguidade sem ser pornográfico. O poema é igualmente explícito em seu
“banquete” dos cinco sentidos (linhas 433-50). Este é o “desobediente” Ovídio
de Ars Amatoria.
O poema
de Shakespeare é um bordado de floreios, de “presunção” ou similares
engenhosamente forjados, de digressões construídas habilmente, como as
narrativas do cavalo de Adônis, e de simbolismo colorido. As imagens geralmente
são retiradas da natureza (águias, pássaros que caem em redes, lobos, bagas) ou
conotam algo ardente, flamejante e brilhante (tochas, joias). As cores
dominantes são o vermelho do sol nascente ou da face corada de Adônis ou a
insígnia de Marte, o branco de uma mão de alabastro ou da roupa de cama fresca
ou a angústia “cinzenta-pálida”. Ironicamente, também, a boca espumosa-branca
do javali está manchada com vermelho, e o sangue vermelho de Adônis mancha seu
“habitual lírio branco”. A flor de Adônis, a anêmona, é vermelha-roxa e branca.
Uma antítese similarmente equilibrada permeia as figuras retóricas do poema,
como na repetição simétrica de palavras em frases gramaticalmente paralelas
(parison), ou em frases de igual duração (isocolon), ou em ordem inversa
(antimetabole), ou no começo e término de uma linha (eponalepsis), e assim por
diante. Essas pirotecnias podem parecer à primeira vista mecânicas, mas elas
também, têm um lugar numa obra de arte que celebra ambos o exótico e o
espiritual no amor. A decoração tem sua função própria e não servir apenas para
o embelezamento por si só. Em todos os eventos, Shakespeare criou uma variação
poética poderosa sobre um mito antigo que é, ao mesmo tempo, uma obra
retoricamente gigantesca.
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