ARTE SEM CENTRO
Vladimir
Saflate
(professor livre-docente do Departamento de filosofia da
USP).
"Ave sarjeta" - Ana Carolina Lucca
Se, no final do século 19, alguém se perguntasse sobre
os lugares nos quais se decidia silenciosamente os novos caminhos das artes
visuais, dificilmente ele acertaria. Pois dificilmente alguém imaginaria que
devesse voltar os olhos para uma ilha perdida no meio da Oceania, para uma
cabana rústica isolada nos campos do sul da França e para uma pequena vila nos
arredores de Paris. No entanto, era lá que Paul Gauguin, Paul Cézanne e Vincent
van Gogh trabalhavam na reconstrução da linguagem da pintura.
Em um dos momentos maiores de redefinição das artes
visuais no Ocidente, foi necessário sair do centro para que algo de fato
ocorresse. Foi necessário estar na periferia.
Não se tratava de alguma forma de necessidade
patológica de isolamento ou de procura pela força pretensamente revigorante da
natureza intocada.
Estar fora do centro era importante porque
acontecimentos normalmente ocorrem em contextos de deslocamento, em locais onde
uma certa indiferença criadora em relação aos padrões da linguagem torna-se
possível.
Atualmente, vários voltam seus olhos para as
periferias do mundo a fim de encontrar linguagens artísticas em reconstrução.
Outros desconfiam destas procuras, vendo nelas apenas
uma forma de projeção que visa compensar, através da idealização de "novos
sujeitos", nossas expectativas criativas frustradas. Um pouco como se
procurássemos nas periferias aqueles que, no lugar dos proletários integrados
ao sistema capitalista, pudessem nos guiar em direção à realização de uma
filosofia da história pensada como redenção revolucionária criadora.
No entanto, não precisamos acreditar em tal filosofia
da história para aprendermos a olhar para além de nossos muros. Basta darmos um
passo a mais em relação à época de Gauguin, Cézanne, Van Gogh e admitirmos uma teoria
da contingência que suspende a própria distinção entre centro e periferia para
dizer: "Um acontecimento é aquilo que pode vir de qualquer lugar".
Marina Ioe
Girassóis - Van Gogh
Uma revolta política que perpassa nossa época como um
vírus pode começar em uma pequena cidade da Tunísia. Uma experiência literária
verdadeira pode estar em gestação na periferia de São Paulo.
Esta dimensão de "lugar qualquer" que um
acontecimento é capaz de produzir nos lembra que o pior pecado é não acreditar
nos agenciamentos contingentes.
Temos de estar preparados para que eles ocorram em
qualquer lugar.
O primeiro passo para isto é mostrar, por ações
concretas, que abandonamos de vez a distinção entre centro e periferia. Hoje, a
inteligência sempre vem de um "lugar qualquer".
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Nota:
texto publicado na Folha de São Paulo 06/11/2012
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