Ballet de Londrina dança Petruchka
(Por Jardel Dias Cavalcanti)
Em Petruchka, balé estreado em 1911,
já se observa a ousadia com que Stravinski tratava as construções harmônicas,
superpondo tonalidades em franco desacordo, não relacionadas entre si, e fazendo
as combinações rítmicas mais inesperadas, abrindo caminho para uma série de
experimentações politonais e polirrítmicas que já anunciavam A Sagração da Primavera.
A história da peça é a da marionete
Petruchka, que corteja uma encantadora bailarina que o prefere a um Mouro
lindamente vestido. O Mouro enciumado acabará matando seu rival, cujo espectro
ameaçador aparecerá no fim.
Parece que Leonardo Ramos, o
coreógrafo do Ballet de Londrina, encontra na música de Stravinski elementos
que dialogam diretamente com suas pesquisas (não deve ser à toa que criou coreografias
tanto para A Sagração da Primavera
quanto para Petruchka).
A obra de
Stravinski é executa por pianos martelados, de forma elíptica e brutal, com
timbres rudes. Enfrentando essas novas possibilidades sonoras, o que o Ballet
de Londrina tem feito é conseguir ampliar os limites do gesto, dentro de princípios
completamente novos.
A música de Stravinski obriga os bailarinos a contorções
inacreditáveis, suscitando a impressão de algo decomposto que rompe as habituais
forças de equilíbrio típicas nos balés mais conservadores. Cesuras musicais
exigem do corpo a mesma desmedida feitura de movimentos. E a coreografia, no
seu sentido de conjunto, também acompanha esses cortes e desmedidos musicais.
A composição coreográfica de Petruchka pelo Ballet de Londrina se
realiza não através de um desenvolvimento corporal coerente, mas em virtude dos
hiatos que a música trás e, consequentemente, a marcam. O excitante dessa
coreografia é justamente, por isso, a aguda tensão entre os elementos que
querem se concretizar e na promoção de sua rápida dissolução. O que se
relaciona com a ideia de um boneco que ganha vida somente para cair na agonia
do amor.
O escamoteamento da narrativa
coerente traduz-se num mal fait
engenhoso. Esses “descuidos calculados” são parte de uma tradição radical em
arte, absolutamente legítimos, onde os contornos borrados desmentem todo o
caráter compacto da configuração da imagem. A criação é pensada como algo não
inteiramente domada, mas obliquamente viva; por isso, o desrespeito ao bien fait dos modelos engessados.
A coreografia de Leonardo Ramos
renuncia a fazer de si mesma a imagem compacta de uma realização acabada, com
acentos temporais previsíveis. Ao contrário, a energia física é empregada na
experiência de uma coreografia hostil ao que é convencionalmente esperado. Os
gestos vazios de plenitude são mais expressivos que a coerente construção de
gestos domados pela formatação. A obra se organiza na formulação de sua decomposição,
não na composição de uma organização.
Esse comportamento é um ritual que
serve para superar a frieza da padronização; com movimentos sincopados
irregulares anuncia-se ao espectador a possibilidade de agonizar junto ao
périplo de Petruchka.
A força da coreografia alimenta-se justamente da explosão de
gestos que prescindem do pré-estabelecido, como uma criança que desmonta
brinquedos, intercalando seus destroços às imagens de sua imaginação, para
recriá-los de forma não convencional.
Mais uma vez Leonardo Ramos nos
mostra que somente a ousadia de corpos prontos para a radicalidade e para a constante
inovação dissolve a lógica medíocre de uma arte acomodada. Quem ganha é o espectador,
que tem, com isso, a possibilidade plena de mergulhar no reino da
sensibilidade, lugar por excelência da experiência da liberdade que só grande a
arte pode possibilitar. Com a dança, a imaginação se coloca no lugar onde a função do irreal vem seduzir ou inquietar despertando o ser adormecido em seus automatismos.
Anotação:
Sobre ‘Petrouchka’
O amor pode parecer tão perfeito que é capaz de enganar aos que acreditam que, aonde existe amor existe vida. Ilusão. Desejos inconfessos, vaidade, ciúme e, por que não, a ruína habitam os corações. Aos que se lançam nessa tentativa de ser feliz, esperando e confiando nos sentimentos alheios, o risco da decepção é grande. O Ballet de Londrina leva às últimas consequências em Petrouchka, a enganosa teia da paixão não correspondida, alimentada pelo amor a si próprio.
O amor pode parecer tão perfeito que é capaz de enganar aos que acreditam que, aonde existe amor existe vida. Ilusão. Desejos inconfessos, vaidade, ciúme e, por que não, a ruína habitam os corações. Aos que se lançam nessa tentativa de ser feliz, esperando e confiando nos sentimentos alheios, o risco da decepção é grande. O Ballet de Londrina leva às últimas consequências em Petrouchka, a enganosa teia da paixão não correspondida, alimentada pelo amor a si próprio.
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