(Parte 1)
O
ponto de exclamação não se assemelha a um ameaçador dedo em riste? Os pontos de
interrogação não se parecem com luzes de alerta ou com uma piscadela? Os
dois-pontos, segundo Karl Kraus, abrem a boca: coitado do escritor que não
souber saciá-los. Visualmente, o ponto-e-vírgula lembra um bigode caído; é
ainda mais forte, para mim, a sensação de seu sabor rústico. Marotas e
satisfeitas, as aspas [“”] lambem os lábios.
Todos são sinais de trânsito;
afinal, estes os tornaram como modelo. Pontos de exclamação correspondem ao
vermelho; dois-pontos, verde; e os travessões ordenam stop. Mas foi um erro da Escola de George confundi-los, por causa
disso, com sinais de comunicação. Eles são sobretudo sinais de elocução. Em vez
de zelosamente servirem ao trânsito entre a linguagem e o leitor, funcionam
como hieróglifos no tráfego que acontece no interior da linguagem, em suas
próprias vias. É supérfluo, por isso, omiti-los como supérfluos: assim eles
apenas se escondem. Cada texto, mesmo o mais densamente tramado, cita-os por si
mesmo, espíritos amistosos cuja presença incorpórea alimenta o corpo da
linguagem.
Em nenhum de seus elementos a
linguagem é tão semelhante à música quanto nos sinais de pontuação. A vírgula e
o ponto correspondem à cadência interrompida e à cadência autêntica. Pontos de
exclamação são como silenciosos golpes de pratos, pontos de interrogação são
acentuações de frase musicais no contratempo, dois-pontos são acordes de sétima
da dominante; e a diferença entre vírgula e ponto-e-vírgula só será sentida
corretamente por quem percebe o diferente peso de um fraseado forte e fraco na
forma musical. Mas talvez a idiossincrasia contra os sinais de pontuação,
surgida há cinqüenta anos e da qual nenhuma pessoa atenta pode escapar, seja
menos a revolta contra um elemento ornamental do que a expressão da forte
divergência entre música e linguagem. Seria muito difícil considerar como obra
do acaso, entretanto, que o contato da música com os sinais lingüísticos de
pontuação esteja vinculado ao esquema de tonalidade, um esquema que nesse
meio-tempo se desintegrou. Nesse sentido, os esforços da nova música poderiam
ser corretamente descritos como a busca de sinais de pontuação sem tonalidade. Mas
se a música é forçada a preservar, nos sinais de pontuação, a imagem de sua
semelhança com a linguagem, também a linguagem assume sua semelhança com a
música, na medida em que desconfia desses sinais.
Schoenberg
A diferença entre o ponto-e-vírgula
grego [‘], aquele ponto bem alto que deseja impedir que se baixe a voz, e o
alemão [;], cujo ponto sobreposto ao traço acaba consumando esse rebaixamento,
ao mesmo tempo em que, ao incorporar a vírgula, deixa a voz em suspenso, é
verdadeiramente uma imagem dialética. Essa diferença parece imitar aquela entre
as Eras Antiga e Cristã, a finitude rompida pelo infinito, ainda que a comparação
seja perigosa, pois talvez os sinais gregos só tenham sido inventados pelos
humanistas do século XVI. A história se sedimentou nos sinais de pontuação, e é
justamente essa história, para além do significado ou da função gramatical, que
a partir deles nos olha de frente, congelada e ainda um pouco trêmula. Quase
seríamos tentados a considerar como os verdadeiros sinais de pontuação apenas
os da escrita tradicional alemã [Fraktur],
cuja imagem gráfica preserva traços alegóricos, enquanto os da escrita romana [Antiqua] corresponderiam a meras imitações
secularizadas.
A
essência histórica dos sinais de pontuação vem à luz no modo como, neles, o que
se torna obsoleto é justamente o que um dia foi moderno. Pontos de exclamação
tornaram-se insuportáveis como gestos de autoridade, com os quais o escritor
pretende introduzir, de fora, uma ênfase que a própria coisa não é capaz de
exercer, enquanto a contrapartida musical de exclamação, o sforzato, é ainda hoje tão imprescindível quanto no tempo de
Beethoven, quando marcava a irrupção da vontade subjetiva da trama. Os pontos
de exclamação, porém, degeneraram em usurpadores da autoridade, asserções de
importância. Foram eles, no entanto, que cunharam a figura gráfica
característica do Expressionismo alemão. Sua proliferação apoiava um protesto
contra as convenções, e ao mesmo tempo era um sintoma da impossibilidade de se
modificar a linguagem por dentro, enquanto ela era abalada por fora. Eles sobrevivem
como marcas da fratura entre a idéia e as realizações de cada época, e sua
evocação impotente os redime na memória: desesperados gestos de escrita, que
buscaram em vão escapara para além da linguagem. O Expressionismo se consumiu
nas chamas desse gesto, prescreveu a si mesmo, como os pontos de exclamação, o
efeito que buscava, e por isso se transformou em fumaça, junto com eles. Nos textos
expressionistas, os pontos de exclamação se assemelham às cifras milionárias
das cédulas do período da inflação alemã.
Os diletantes literários podem ser
reconhecidos por seu desejo de juntar tudo com tudo. Suas obras conectam as
frases por meio de partículas lógicas, mesmo que as relações afirmadas por
essas partículas não sejam válidas. Para quem não é capaz de pensar algo verdadeiramente
como uma unidade, qualquer coisa que sugira desintegração ou descontinuidade
torna-se insuportável; apenas quem consegue apreender o todo é capaz de
entender as cesuras, que podem ser reconhecidas, entretanto, com o auxílio do “traço
do pensamento” [Gedankenstrich]. Nele,
o pensamento toma consciência de seu caráter fragmentário. Não é por acaso que,
na era da progressiva desintegração da linguagem, esse sinal tenha sido negligenciado
precisamente no caos onde cumpre sua função: onde separa o que pretensamente
estaria ligado. O travessão ainda serve apenas para preparar surpresas
traiçoeiras que, justamente por terem sido preparadas, já não mais surpreendem.
O travessão sério: seu mestre
inigualável, a literatura alemã do século XIX, foi Theodor Storn. Raramente os
sinais de pontuação estiveram tão profundamente aliados ao teor da obra como os
travessões em suas novelas, linhas mudas buscando o passado, rugas na face do
texto. Com eles, a voz do narrador cai em um preocupado silêncio: o tempo
inserido entre duas frases, nu e cru entre os dois eventos que se aproximam, é
o tempo de uma herança pesada, que insinua a desgraça do contexto natural e do
pudor de a ele se referir. É assim, com enorme discrição, que o mito se esconde
no século XIX; buscando refúgio na tipografia.
Entre
as perdas sofridas pela pontuação no porcesso de desagregação da linguagem está
a barra transversal [/], usada por exemplo para separar os vesos de uma
estrofe, quando estes são citados em um texto de prosa. Dispostos como estrofe,
os versos destruiriam barbaramente o equilíbrio da linguagem, mas se fossem
reproduzidos simplesmente como prosa causariam um efeito ridículo, porque a
métrica e a rima soariam como um jogo de palavras feito ao acaso. O travessão
moderno é demasiado brusco para realizar o que deve ser feito nesses casos. A capacidade
de perceber fisiognomicamente tais diferenças é, no entanto, o pressuposto para
todo uso adequado dos sinais de pontuação.
As
reticências, que eram o meio preferido, na época do Impressionismo
comercializado como “atmosfera”, para se deixar uma frase aberta a vários
sentidos, sugerem a infinitude de pensamento e associação, justamente o que
falta aos escritores de segunda categoria, que se contentam em simular essa
infinitude por meio do sinal gráfico. Mas se aqueles três pontinhos, tomados da
repetição de frases decimais na aritmética, são reduzidos a dois, como fez a
Escola de George, então o que se pretende é continuar impunemente a reivindicar
a infinitude fictícia, na medida em que se apresenta como sendo exato algo que,
segundo seu próprio sentido, quer ser inexato. A pontuação utilizada pelo
escrevinhador sem vergonha não é melhor do que a do escritor envergonhado.
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