Em defesa da soberba e do arbítrio da arte
NUNO RAMOS
PROCUREI INTENCIONALMENTE matar três urubus de fome e de sede
no prédio da Bienal de São Paulo. Pus ali imensas latas cheias de tinta escura,
para que se afogassem, além de espelhos, para que batessem a cabeça durante o
voo. Construí túneis de areia preta, para que entrassem sem conseguir sair,
morrendo ali dentro. E, para forçá-los a voar, costumo lançar rojões em sua
direção.
ACUSAÇÕES Como nos pesadelos ou nos linchamentos, não é
possível responder a acusações desta ordem, que circularam pela internet e no
boca a boca com força insaciável nas últimas três semanas, criando um caldo de
cultura próximo à violência e à intimidação. Como resultado disso, em plena
Bienal, entre faixas pedindo que eu fosse preso, meu trabalho foi atacado por
um pichador, que driblou a segurança, rasgou a tela de proteção aos bichos e
danificou uma das esculturas de areia.
Fomos cercados, eu e minha mulher, por militantes ecologistas, que nos xingavam
e gritavam do outro lado do vidro do carro, a boca em câmera lenta,
“a-li-men-ta-e-les!” -o que, claro, já havia sido feito naquele mesmo dia.
Barbara Gancia, colunista da Folha, chegou a pedir, utilizando
um imaginário de repressão militar ou de milícia fascista, que eu fosse
colocado de cuecas contra um muro e submetido a uma ducha com as mangueiras
para incêndio do corpo de bombeiros.
Ingrid E. Newkirk, presidente da organização não governamental Peta [pessoas
pelo tratamento ético de animais, na sigla em inglês], num artigo feroz,
publicado na Folha em 8/10, encontra apenas o que pressupõe
desde o início: que eu quero aparecer (ela, não? alguém duvida que um dos temas
da polêmica é justamente a disputa pelo espaço na mídia?); que sou (os termos
são dela) cruel, “bad boy”, sem compaixão e produtor de arte de má qualidade.
Como não há argumentos e o raciocínio é circular, tudo retorna à ilibada
consciência da articulista.
A notícia atravessou fronteiras raras para questões envolvendo arte (horários
insuspeitos em todos os canais de TV, cadernos de jornal pouco afeitos à
cultura e nas mais diversas regiões do país), passando a assunto de bar e
padaria. Os urubus, definitivamente, haviam conseguido escapar e, para usar os
versos de Augusto dos Anjos, pousaram na minha sorte.
TOM Frequento
uma área da cultura afastada dessa luz radioativa, e não quero errar o tom. Começo
este texto, portanto, fazendo a minha lição de casa: o que quer que tenha
acontecido, aconteceu por meio das instituições. A licença do Ibama de Sergipe,
que permitiu o transporte e a exposição dos animais, era legítima e dentro de
parâmetros absolutamente legais, bem como sua cassação pelo Ibama de Brasília.
Tentamos, eu e a Fundação Bienal, que me apoiou de todos os modos possíveis em
defesa do meu trabalho, uma liminar na Justiça e perdemos. Acatamos e tiramos,
no mesmo dia em que a decisão liminar saiu, as três aves. Sinto-me coibido,
injustiçado e chocado com tudo isso, mas não posso dizer que fui censurado. E
por entender que a forma que destruiu meu trabalho ao tirar as três aves é
legítima, quero divergir completamente dela.
Como quase nenhuma informação sensata circulou, tenho primeiro que dizer o
óbvio:
1) As aves que utilizei em meu trabalho são aves nascidas em cativeiro, e não
sequestradas ao habitat natural; é para este cativeiro que voltaram (e onde
estão neste momento), quando foram “soltas” do meu trabalho;
2) Pertencem ao Parque dos Falcões (criadouro conservacionista que funciona com
autorização do Ibama, realizando atividades educacionais e pedagógicas, pelo
Brasil inteiro, com aves de rapina), que as mantêm em exposição para o público,
como num zoológico;
3) Estas mesmas três aves participaram em 2008 de uma versão bastante similar
deste trabalho, no Centro Cultural Banco do Brasil de Brasília, durante dois
meses, adaptando-se perfeitamente ao espaço e sem nada sofrer, com plano de manejo
aprovado pelo mesmo Ibama;
4) As aves foram adaptadas ao espaço da Bienal antes do início da mostra, com a
presença do veterinário responsável por elas e de um tratador;
5) Esse tratador, o mesmo que cuida delas em Sergipe, ficou permanentemente com
elas durante todo o tempo de exibição das aves ao público, literalmente abrindo
e fechando a mostra:
6) Eram alimentadas por ele todas as manhãs, em quantidade e frequência
estipuladas pelo plano de manejo;
7) O volume das caixas de som foi controlado, sendo mantido numa altura
bastante inferior ao do murmúrio do público, para evitar estresse aos bichos;
8) O plano de manejo das aves, aceito pelo Ibama de Sergipe, foi revogado, já
no meio da polêmica, pelo Ibama de São Paulo -mas sem recomendação de cassação.
O que o laudo técnico, sério e sisudo do Ibama de São Paulo solicitava eram
ajustes -basicamente, que desligássemos uma das caixas de som e que
instituíssemos banhos de luz ultravioleta todas as manhãs, para suprir a falta
de luz solar direta sobre os bichos (embora a luz do dia banhasse o espaço).
Oferecia, ainda, uma licença de 15 dias, a ser prorrogada de acordo com a
avaliação periódica sobre o bem-estar dos animais. O Ibama de Brasília, que,
sob pressão política e midiática, determinou arbitrariamente a saída das aves,
em desacordo com o laudo do Ibama de São Paulo, travou o que parecia ser um
processo rico de colaboração entre técnicos sérios, com conhecimento sobre os
animais, e um trabalho de arte;
9) Obtivemos laudo favorável do Departamento de Parques e Áreas Verdes da
Prefeitura de São Paulo;
10) Técnicos do setor de aves do Zoológico de São Paulo, em vistoria ao
trabalho, não manifestaram qualquer crítica específica ao manejo das aves
-fiquei sabendo nesta visita, inclusive, que a jaula dos urubus era bem maior
que qualquer jaula do zoológico, inclusive a do condor.
EXPIAÇÃO Por
que, então, tanta confusão? Que é que está sendo expiado aqui?
Para começo de conversa, e como aproximação ao problema, quero lembrar que
“Bandeira Branca” não é um trabalho de ecologia, nem eu sou especialista em
aves de rapina, assim como “Guernica” de Picasso não é apenas um trabalho sobre
a Guerra Civil Espanhola, nem Picasso um historiador. Por isso utilizei os
serviços de uma entidade ecológica, o Parque dos Falcões, e obtive, tanto na
montagem em Brasília, em 2008, quanto em São Paulo, autorização do órgão legal
em meu país para esses assuntos.
Ou a lei não vale para todos? Tratar meu trabalho como crime e a mim como
criminoso é fazer o que fazia a direita franquista, ao chamar “Guernica” de
quadro comunista, ou a aristocracia francesa da segunda metade do século 19,
quando ameaçava retalhar a “Olympia”, de Manet, em nome dos bons costumes.
O que me foi negado com a criminalização do meu trabalho foi a possibilidade de
um sentido -o sequestro, digamos, de qualquer sentido que ele pudesse propor. E
é contra isso, mais do que contra a boataria e a calúnia, que escrevo hoje.
VALORES Arte não
cabe nos bons nem nos maus valores, por mais confiança que se tenha neles. Dela
emana um signo aberto, para isso foi inventada, para que fanatismos como os que
ouvi nessas últimas semanas não circunscrevam completamente o possível da vida.
Claro que ninguém está acima da lei, e, repito, cumprimos, artista e
instituição, rigorosamente a legislação ambiental brasileira -mas é a
possibilidade de pensar diferente que está sendo criminalizada aqui.
Artistas extraordinários como Joseph Beuys (por sinal, fundador do Partido
Verde na Alemanha), Jannis Kounellis, Hélio Oiticica, Nelson Felix, Tunga,
Cildo Meireles, utilizaram animais em suas instalações. Provavelmente o
trabalho de Beuys que inclui um coiote (“I Love America and America Loves Me”)
seja, sem nenhum favor, uma das mais importantes obras de arte do século 20.
“Tropicália”, de Hélio Oiticica, que tem araras vivas em seu interior
(curiosamente, exposta há poucos meses, com as aves, no prédio do Itaú Cultural
de São Paulo, na avenida Paulista, sem despertar qualquer polêmica), é um
trabalho fundamental para a compreensão do que somos e do que queremos ser.
Negar o que estes artistas conseguiram com seus trabalhos -uma oxigenação
radical de nosso imaginário- tratando-os como criminosos certamente seria
regredir a épocas de triste memória.
Posso entender quem seja contra bichos em cativeiro. Seria interessante exigir
um pouco de coerência dessa posição -ou seja, vegetarianismo radical, já que a
quase totalidade da carne que comemos vem de animais em cativeiro, fechamento
de todos os zoológicos, jóqueis-clubes, fazendas com animais para monta e,
ainda, requalificação geral de nossas relações com bichos domésticos. Mas, mais
do que coerentes, gostaria que fossem suficientemente democratas para aceitar
que nem todos pensem como eles, nem todos se deem o lugar de xamãs, em contato
íntimo com os desejos e sensações dos animais, e que dentro das regras públicas
legais de cada país o acesso a esses animais possa se dar sem histeria nem
calúnias.
BANDEIRA BRANCA
Como nada ou quase nada se falou sobre o trabalho, peço licença para
interpretar o que eu próprio fiz, partindo de uma breve descrição. “Bandeira
Branca” (este título, no meio de um bombardeio desses, é dessas coisas que só a
arte explica) foi montado pela primeira vez há dois anos, no CCBB de Brasília,
e agora, ampliado e modificado, recebeu uma segunda versão, especialmente para
a 29ª Bienal.
O trabalho consiste em três enormes esculturas de areia preta pilada, foscas e
frágeis, a partir de cujo topo, feito de mármore, três caixas de som emitem, em
intervalos discrepantes, as canções “Bandeira Branca” (de Max Nunes e Laércio
Alves, interpretada por Arnaldo Antunes), “Boi da Cara Preta” (do folclore, por
Dona Inah) e “Carcará” (de João do Vale e José Candido, por Mariana Aydar).
Três urubus vivem na instalação durante toda a duração do trabalho.
O resultado é uma cena solene, entre a litania e a canção de ninar, que me
parece ter cavado, em sua montagem em São Paulo, uma espécie de buraco negro no
prédio da Bienal. Acho que o vão do prédio, uma das obras mais felizes de
Niemeyer, com sua velocidade e otimismo, ganhou com meu trabalho um contraponto
ambivalente, noturno e encantado, triste mas também próximo do mundo dos contos
de fada.
Há uma espécie de espiral ascendente no trabalho, que se desmaterializa
conforme o espectador sobe a rampa do prédio e as pesadas colunas de areia se
transformam na geometria de quem vê as esculturas de cima. Feito primeiro de
areia, depois de mármore, depois de vidro, depois de som, depois de voo, o
trabalho faz em seu percurso o mesmo que as aves, num ciclo que a chuva de
fezes brancas, caindo sobre as peças e sobre o chão, inicia novamente.
ANTIPENETRÁVEL Mas
o ponto crucial, acho eu, é que, apesar da monumentalidade do trabalho e da
textura inacabada da areia, que solicitam o corpo do espectador, o público é
mantido fora da obra, numa espécie de antipenetrável. A obra de certa forma já
foi ocupada, já tem dono e por isso não podemos nos aproximar. A noite, as
canções e os urubus são seus donos, e ao público resta assistir de fora a
alguma coisa viva, que não precisa dele.
As canções e os bichos, forças ascensionais contra a inércia e o peso das
esculturas, já tomaram conta da obra e a tela de proteção, que materializa o
desenho do vão do prédio, marca essa passagem entre um exterior institucional e
um interior ativo, fechado em si, mistura de cultura (canções), natureza (os
urubus) e arquitetura.
As aves e as canções dão ao trabalho o seu agora, uma duração voltada para algo
indiferente ao mundo lá fora. Daí que muita gente tenha me dito que se sentia
observado pelas aves e não observador, dentro da grade e não fora dela. E que
no meio de tanto tumulto, com certeza as três aves pareciam as únicas
tranquilas.
Esta atividade interna autossuficiente está no coração deste trabalho e me
acompanhou ao longo da balbúrdia destes dias difíceis. Fico feliz de perceber
que de certa forma o trabalho já pressupunha isso, falava disso e defendia-se
exatamente disso -queria estar consigo e não conosco, longe da barulheira que
no entanto causava.
AUTOSSUFICIÊNCIA Em vez da atividade do espectador, própria de tantas das melhores obras
modernas, e que encontrou entre nós uma formulação extrema na ideia dos
“Penetráveis” de Hélio Oiticica, a arte contemporânea parece estar se voltando
para dentro, numa autossuficiência renitente.
Não é o lugar para desenvolver isto, mas, para dar dois exemplos memoráveis,
acho que as “Elipses”, de Richard Serra, apoiadas em si mesmas e não mais nas
paredes das instituições, ou “O Ciclo Creamaster”, de Matthew Barney, com suas
infinitas dobras e relações internas, partilham esta característica. Meu
trabalho acompanha de certa forma essa direção.
A institucionalização crescente da arte trouxe para junto dela uma pletora de
discursos institucionais, todos perfeitamente centrados, seguros de si e
disputando espaço na mídia e nas oportunidades orçamentárias. Isso vem, talvez,
do estilhaçamento das grandes noções universais que acompanharam a formação do
mundo moderno: política, religião, burguesia, proletariado, luta de classes,
direita, esquerda etc.
Com a quebra dessas noções universais, os particulares (ecologia, minorias
étnicas, minorias sexuais etc.) firmaram-se, cheios de si, pontudos, zelosos de
suas verdades. A arte talvez seja a última experiência universalizante, ou ao
menos não simétrica à discursividade do mundo, e acho que tende a ser cada vez
mais atacada, toda vez que discrepar, como soberba e como arbítrio. Mas penso
que é isso mesmo que ela deve manter: sua soberba e seu arbítrio, para que
possa continuar criando.
DESFAÇATEZ Pois
isso para mim foi o mais impressionante de tudo: a absoluta incapacidade,
digamos, interpretativa de quem me atacou, a recusa de ver outra coisa, de
relacionar o sentimento de adesão ou de repulsa que meu trabalho tenha causado
com qualquer coisa proposta por ele, em suma, a desfaçatez com que foi usado
como trampolim para um discurso já pronto, anterior a ele, que via nele apenas
uma possibilidade de irradiação.
Para isso, é claro, o principal ingrediente é que fosse tomado de modo
absolutamente opaco e literal, espécie de cadáver sem significação. Para que
possa ser veículo estrito de discursos e de grupos, sem que utilize seus
recursos, digamos, naturais (sedução, desejo, ambivalência), o trabalho de arte
tem de estar, de fato, desde o início definitivamente morto. Daí, creio, a
ferocidade com que fui atacado -uma espécie de operação higiênica preventiva,
para impedir que qualquer germe de espanto, ambiguidade, beleza, estupor,
pudesse aparecer, desqualificando o desejado consenso.
No fundo, acho que a frase famosa de Frank Stella, que jogou uma pá de cal nas
ilusões subjetivas de começos dos anos 60 e inaugurou as poéticas minimalistas
que duram até hoje, “What you see is what you see” (“O que você está vendo é o
que você está vendo”), parece ter migrado da arte para o mundo. A literalidade
das obras de um Carl Andre ou de um Donald Judd transferiu-se inteira para as
instituições e para o público.
Por isso talvez caiba hoje à arte a tarefa bastante simples, mas tão difícil,
de dizer exatamente o contrário: “O que você está vendo NÃO é o que você está
vendo”. Ou seja, sonhar. Ou, como diz a letra da canção, “Bandeira branca,
amor”.
"Urubus" - Goeldi - 1925