segunda-feira, 26 de março de 2012

O luto da arte - Marcia Tiburi


A discussão sobre a morte da arte teve um lugar essencial nas Lições de Estética, de Hegel, no século 19. Não se pode perder de vista que a morte da arte à qual Hegel se referia era a da arte bela e não da arte de modo geral. Se Hegel tem razão, em havendo uma morte da arte que não deve ser generalizada, trata-se de entender que tipo de arte, para além da arte bela, sobreviveu. Em um século de genocídios, ditaduras e violências de toda sorte, a arte é a memória da sua própria morte.
   
A pré-história dessa percepção está na Crítica da Faculdade de Julgar, de Kant, que antes afirmou a existência de dois sentimentos, o belo e o sublime, como sustentáculos da experiência estética. Belo – a sensação de prazer com os objetos agradáveis – e sublime – um misto de prazer com desprazer – são formas de acesso subjetivo à beleza, tanto da natureza quanto das artes. Kant define a arte bela como aquela que pode representar de modo belo até mesmo as coisas feias. A tarefa histórica da arte sempre foi a de colocar beleza no mundo e suplantar o feio. Criamos essa expectativa e isso hoje em dia não nos ajuda.
Mas o próprio Kant disse que havia uma espécie de feiura, que não pode ser representada de acordo com a natureza sem cancelar a complacência estética, ou seja, a nossa capacidade de perceber a beleza em geral e a beleza da arte. Kant refere-se à feiura que desperta asco. O asco, segundo Kant, é uma “sensação peculiar” marcada pela imposição do objeto feio que imediatamente se nos lança sobre os sentidos, sem que desejemos aceitar sua presença. O filósofo espanhol Eugenio Trías dá um exemplo repugnante só de ler: quem pisa em um rato morto e eviscerado na rua tem a sensação de que ele vai parar dentro da boca. A experiência do asco se dá como se um prato de merda fosse oferecido para se comer.

O asco é uma espécie de sentimento impossível, por estar na contramão do gosto. Podemos traduzi-lo por nojo. E nojo é algo que se traduz por luto. A experiência do asco ou do nojo, como experiência do des-gosto, é da mesma ordem da experiência do luto, de algo que não desejamos e que mesmo assim se impõe. A lástima pela perda de um objeto amado, mas também do gosto – seja pela arte, seja pela vida – que acompanhava aquele objeto é experiência disseminada em nossa cultura, da qual a arte atual vem a ser a apresentação mais clara.




A arte, do asco ao luto

O luto é sempre uma reação à perda de um objeto amado. É, portanto, a experiência da morte enquanto ela pode ser conhecida: a morte dos outros, das coisas, das experiências. Até mesmo, como em Luto e Melancolia, de Freud, a perda de uma abstração, de um ideal qualquer. Nunca a da epicuriana morte que não encontraremos, pois já não estaremos quando ela aparecer. A arte contemporânea é experiência enlutada e, por isso, dói tanto tratar dela. Encará-la é experimentar o luto na forma de sua exposição possível. Mas, se há entre arte e vida, entre ficção e realidade, uma relação que é sempre de mimese, por imitação ou por mimetismo, e se há tanta perda na vida, a arte não deveria ser nosso resgate para além do que a vida nos dá sem nenhuma elaboração?

A promessa romântica da arte é que ela viria nos salvar da vida. Mas, após a perda da ingenuidade romântica, por que ainda esperamos tanto da arte? Arte é apenas um conceito que tem tão pouco valor quanto pouco uso nos dias de hoje. No entanto, arte ainda é, como conceito, algo que vai na frente da nossa sempre atrasada sensibilidade. Que a arte mova nossa sensibilidade é a esperança sem fundamento de muitos, mas sensibilidade é uma formulação imprecisa entre o perigoso culto da emoção e os sentimentos que só são elaborados mediante a interferência da racionalidade capaz de criar conceitos. Não há chance de que arte hoje seja mais do que uma construção para fazer pensar.
       
Temos na experiência contemporânea da arte a autopresentificação do seu próprio luto. Como se a arte ainda estivesse no período enojado em que tem que se haver com a memória de um cadáver que é ela mesma e que, na verdade, mimetiza o estado das coisas de um mundo em crise de sentido. Assim é que a obsolescência do conceito de arte o coloca na posição de um conceito-memória. Um conceito que foi válido, mas que perdeu sua circunstância na atualidade. Arte não é mais a bela arte, ainda que possamos com muito esforço descobrir nas obras que a beleza também é um conceito e, como tal, uma visão das coisas.



O paradoxo do gosto

O que a arte contemporânea nos sugere é a experiência do paradoxo do gosto. Como é possível “apreciar” esteticamente aquilo que repugna se neste momento a experiência estética como mediação entre sensibilidade e racionalidade foi anulada? A questão é que a arte contemporânea, sendo trabalho do luto, acontecendo na contramão do gosto, provoca sempre a experiência do desgosto. Por isso, a arte conceitual tem tanto espaço em nosso tempo, por chamar ao pensamento em tempos de cancelamento da sensibilidade. É como se toda obra nos enviasse a mensagem: se não podemos “gostar”, podemos “pensar”. É o paradoxo da inestética: a sensação é de perda da sensibilidade na arte; mais do que um problema da arte, é problema da cultura na qual ela surge. Um artista como Damien Hirst, com seus bezerros e tubarões no formol, não é, portanto, julgável segundo o padrão do gosto pela arte bela, porque estamos em tempos de perda do gosto. O que será que ele nos mostra que não sabemos pensar?

Com isso se consegue compreender o que acontece com a arte atual. Ela é a experiência da morte da própria arte bela nestes tempos de desgraça cultural. Tempos tensos: de um lado tragicofílicos – desejamos a tragédia – e de outro tragicofóbicos – evitamos a morte a qualquer custo –, como disse Hans Gumbrecht. Podemos dizer, nestes tempos, que a arte se faz na ordem do trágico, este sentimento da “morte em mim”, da morte como experiência subjetiva, como imagem da melancolia que nada mais é do que a morte do eu e do pensamento que sempre foi a prova de que existia algo chamado “eu”. Não, não exageremos.





A arte contemporânea não é nem trágica nem melancólica. Enlutada, ela nos pede que ultrapassemos a memória da morte e reinventemos o presente. Só o que impede isso é o capital culto à desgraça em que vivemos hoje. O gozo atual é com a ideologia da morte como um fim, quando, na verdade, estúpidos e conceitualmente avarentos, não sabemos entender o valor e o poder das transformações históricas das quais a arte nos dá apenas uma imagem para nos fazer acordar. Mas quando até mesmo a desgraça se tornou um “capital”, haverá espaço para a arte que denuncia o seu caráter capitalista?
(Marcia Tiburi)

Texto originalmente publicado em:
http://revistacult.uol.com.br/home/2010/04/o-luto-da-arte/

quinta-feira, 22 de março de 2012

Nuno Ramos: Em defesa da soberba e do arbítrio na arte




Em defesa da soberba e do arbítrio da arte

NUNO RAMOS



PROCUREI INTENCIONALMENTE matar três urubus de fome e de sede no prédio da Bienal de São Paulo. Pus ali imensas latas cheias de tinta escura, para que se afogassem, além de espelhos, para que batessem a cabeça durante o voo. Construí túneis de areia preta, para que entrassem sem conseguir sair, morrendo ali dentro. E, para forçá-los a voar, costumo lançar rojões em sua direção.

 ACUSAÇÕES Como nos pesadelos ou nos linchamentos, não é possível responder a acusações desta ordem, que circularam pela internet e no boca a boca com força insaciável nas últimas três semanas, criando um caldo de cultura próximo à violência e à intimidação. Como resultado disso, em plena Bienal, entre faixas pedindo que eu fosse preso, meu trabalho foi atacado por um pichador, que driblou a segurança, rasgou a tela de proteção aos bichos e danificou uma das esculturas de areia.

Fomos cercados, eu e minha mulher, por militantes ecologistas, que nos xingavam e gritavam do outro lado do vidro do carro, a boca em câmera lenta, “a-li-men-ta-e-les!” -o que, claro, já havia sido feito naquele mesmo dia. Barbara Gancia, colunista da Folha, chegou a pedir, utilizando um imaginário de repressão militar ou de milícia fascista, que eu fosse colocado de cuecas contra um muro e submetido a uma ducha com as mangueiras para incêndio do corpo de bombeiros.


Ingrid E. Newkirk, presidente da organização não governamental Peta [pessoas pelo tratamento ético de animais, na sigla em inglês], num artigo feroz, publicado na Folha em 8/10, encontra apenas o que pressupõe desde o início: que eu quero aparecer (ela, não? alguém duvida que um dos temas da polêmica é justamente a disputa pelo espaço na mídia?); que sou (os termos são dela) cruel, “bad boy”, sem compaixão e produtor de arte de má qualidade. Como não há argumentos e o raciocínio é circular, tudo retorna à ilibada consciência da articulista.


A notícia atravessou fronteiras raras para questões envolvendo arte (horários insuspeitos em todos os canais de TV, cadernos de jornal pouco afeitos à cultura e nas mais diversas regiões do país), passando a assunto de bar e padaria. Os urubus, definitivamente, haviam conseguido escapar e, para usar os versos de Augusto dos Anjos, pousaram na minha sorte.


TOM Frequento uma área da cultura afastada dessa luz radioativa, e não quero errar o tom. Começo este texto, portanto, fazendo a minha lição de casa: o que quer que tenha acontecido, aconteceu por meio das instituições. A licença do Ibama de Sergipe, que permitiu o transporte e a exposição dos animais, era legítima e dentro de parâmetros absolutamente legais, bem como sua cassação pelo Ibama de Brasília.
Tentamos, eu e a Fundação Bienal, que me apoiou de todos os modos possíveis em defesa do meu trabalho, uma liminar na Justiça e perdemos. Acatamos e tiramos, no mesmo dia em que a decisão liminar saiu, as três aves. Sinto-me coibido, injustiçado e chocado com tudo isso, mas não posso dizer que fui censurado. E por entender que a forma que destruiu meu trabalho ao tirar as três aves é legítima, quero divergir completamente dela.


Como quase nenhuma informação sensata circulou, tenho primeiro que dizer o óbvio:


1) As aves que utilizei em meu trabalho são aves nascidas em cativeiro, e não sequestradas ao habitat natural; é para este cativeiro que voltaram (e onde estão neste momento), quando foram “soltas” do meu trabalho;



2) Pertencem ao Parque dos Falcões (criadouro conservacionista que funciona com autorização do Ibama, realizando atividades educacionais e pedagógicas, pelo Brasil inteiro, com aves de rapina), que as mantêm em exposição para o público, como num zoológico;


3) Estas mesmas três aves participaram em 2008 de uma versão bastante similar deste trabalho, no Centro Cultural Banco do Brasil de Brasília, durante dois meses, adaptando-se perfeitamente ao espaço e sem nada sofrer, com plano de manejo aprovado pelo mesmo Ibama;


4) As aves foram adaptadas ao espaço da Bienal antes do início da mostra, com a presença do veterinário responsável por elas e de um tratador;


5) Esse tratador, o mesmo que cuida delas em Sergipe, ficou permanentemente com elas durante todo o tempo de exibição das aves ao público, literalmente abrindo e fechando a mostra:


6) Eram alimentadas por ele todas as manhãs, em quantidade e frequência estipuladas pelo plano de manejo;


7) O volume das caixas de som foi controlado, sendo mantido numa altura bastante inferior ao do murmúrio do público, para evitar estresse aos bichos;
8) O plano de manejo das aves, aceito pelo Ibama de Sergipe, foi revogado, já no meio da polêmica, pelo Ibama de São Paulo -mas sem recomendação de cassação. O que o laudo técnico, sério e sisudo do Ibama de São Paulo solicitava eram ajustes -basicamente, que desligássemos uma das caixas de som e que instituíssemos banhos de luz ultravioleta todas as manhãs, para suprir a falta de luz solar direta sobre os bichos (embora a luz do dia banhasse o espaço). Oferecia, ainda, uma licença de 15 dias, a ser prorrogada de acordo com a avaliação periódica sobre o bem-estar dos animais. O Ibama de Brasília, que, sob pressão política e midiática, determinou arbitrariamente a saída das aves, em desacordo com o laudo do Ibama de São Paulo, travou o que parecia ser um processo rico de colaboração entre técnicos sérios, com conhecimento sobre os animais, e um trabalho de arte;


9) Obtivemos laudo favorável do Departamento de Parques e Áreas Verdes da Prefeitura de São Paulo;


10) Técnicos do setor de aves do Zoológico de São Paulo, em vistoria ao trabalho, não manifestaram qualquer crítica específica ao manejo das aves -fiquei sabendo nesta visita, inclusive, que a jaula dos urubus era bem maior que qualquer jaula do zoológico, inclusive a do condor.

EXPIAÇÃO Por que, então, tanta confusão? Que é que está sendo expiado aqui?
Para começo de conversa, e como aproximação ao problema, quero lembrar que “Bandeira Branca” não é um trabalho de ecologia, nem eu sou especialista em aves de rapina, assim como “Guernica” de Picasso não é apenas um trabalho sobre a Guerra Civil Espanhola, nem Picasso um historiador. Por isso utilizei os serviços de uma entidade ecológica, o Parque dos Falcões, e obtive, tanto na montagem em Brasília, em 2008, quanto em São Paulo, autorização do órgão legal em meu país para esses assuntos.


Ou a lei não vale para todos? Tratar meu trabalho como crime e a mim como criminoso é fazer o que fazia a direita franquista, ao chamar “Guernica” de quadro comunista, ou a aristocracia francesa da segunda metade do século 19, quando ameaçava retalhar a “Olympia”, de Manet, em nome dos bons costumes.


O que me foi negado com a criminalização do meu trabalho foi a possibilidade de um sentido -o sequestro, digamos, de qualquer sentido que ele pudesse propor. E é contra isso, mais do que contra a boataria e a calúnia, que escrevo hoje.



VALORES Arte não cabe nos bons nem nos maus valores, por mais confiança que se tenha neles. Dela emana um signo aberto, para isso foi inventada, para que fanatismos como os que ouvi nessas últimas semanas não circunscrevam completamente o possível da vida. Claro que ninguém está acima da lei, e, repito, cumprimos, artista e instituição, rigorosamente a legislação ambiental brasileira -mas é a possibilidade de pensar diferente que está sendo criminalizada aqui.


Artistas extraordinários como Joseph Beuys (por sinal, fundador do Partido Verde na Alemanha), Jannis Kounellis, Hélio Oiticica, Nelson Felix, Tunga, Cildo Meireles, utilizaram animais em suas instalações. Provavelmente o trabalho de Beuys que inclui um coiote (“I Love America and America Loves Me”) seja, sem nenhum favor, uma das mais importantes obras de arte do século 20.


“Tropicália”, de Hélio Oiticica, que tem araras vivas em seu interior (curiosamente, exposta há poucos meses, com as aves, no prédio do Itaú Cultural de São Paulo, na avenida Paulista, sem despertar qualquer polêmica), é um trabalho fundamental para a compreensão do que somos e do que queremos ser. Negar o que estes artistas conseguiram com seus trabalhos -uma oxigenação radical de nosso imaginário- tratando-os como criminosos certamente seria regredir a épocas de triste memória.
Posso entender quem seja contra bichos em cativeiro. Seria interessante exigir um pouco de coerência dessa posição -ou seja, vegetarianismo radical, já que a quase totalidade da carne que comemos vem de animais em cativeiro, fechamento de todos os zoológicos, jóqueis-clubes, fazendas com animais para monta e, ainda, requalificação geral de nossas relações com bichos domésticos. Mas, mais do que coerentes, gostaria que fossem suficientemente democratas para aceitar que nem todos pensem como eles, nem todos se deem o lugar de xamãs, em contato íntimo com os desejos e sensações dos animais, e que dentro das regras públicas legais de cada país o acesso a esses animais possa se dar sem histeria nem calúnias.

BANDEIRA BRANCA Como nada ou quase nada se falou sobre o trabalho, peço licença para interpretar o que eu próprio fiz, partindo de uma breve descrição. “Bandeira Branca” (este título, no meio de um bombardeio desses, é dessas coisas que só a arte explica) foi montado pela primeira vez há dois anos, no CCBB de Brasília, e agora, ampliado e modificado, recebeu uma segunda versão, especialmente para a 29ª Bienal.
O trabalho consiste em três enormes esculturas de areia preta pilada, foscas e frágeis, a partir de cujo topo, feito de mármore, três caixas de som emitem, em intervalos discrepantes, as canções “Bandeira Branca” (de Max Nunes e Laércio Alves, interpretada por Arnaldo Antunes), “Boi da Cara Preta” (do folclore, por Dona Inah) e “Carcará” (de João do Vale e José Candido, por Mariana Aydar). Três urubus vivem na instalação durante toda a duração do trabalho.


O resultado é uma cena solene, entre a litania e a canção de ninar, que me parece ter cavado, em sua montagem em São Paulo, uma espécie de buraco negro no prédio da Bienal. Acho que o vão do prédio, uma das obras mais felizes de Niemeyer, com sua velocidade e otimismo, ganhou com meu trabalho um contraponto ambivalente, noturno e encantado, triste mas também próximo do mundo dos contos de fada.
Há uma espécie de espiral ascendente no trabalho, que se desmaterializa conforme o espectador sobe a rampa do prédio e as pesadas colunas de areia se transformam na geometria de quem vê as esculturas de cima. Feito primeiro de areia, depois de mármore, depois de vidro, depois de som, depois de voo, o trabalho faz em seu percurso o mesmo que as aves, num ciclo que a chuva de fezes brancas, caindo sobre as peças e sobre o chão, inicia novamente.



ANTIPENETRÁVEL Mas o ponto crucial, acho eu, é que, apesar da monumentalidade do trabalho e da textura inacabada da areia, que solicitam o corpo do espectador, o público é mantido fora da obra, numa espécie de antipenetrável. A obra de certa forma já foi ocupada, já tem dono e por isso não podemos nos aproximar. A noite, as canções e os urubus são seus donos, e ao público resta assistir de fora a alguma coisa viva, que não precisa dele.


As canções e os bichos, forças ascensionais contra a inércia e o peso das esculturas, já tomaram conta da obra e a tela de proteção, que materializa o desenho do vão do prédio, marca essa passagem entre um exterior institucional e um interior ativo, fechado em si, mistura de cultura (canções), natureza (os urubus) e arquitetura.


As aves e as canções dão ao trabalho o seu agora, uma duração voltada para algo indiferente ao mundo lá fora. Daí que muita gente tenha me dito que se sentia observado pelas aves e não observador, dentro da grade e não fora dela. E que no meio de tanto tumulto, com certeza as três aves pareciam as únicas tranquilas.
Esta atividade interna autossuficiente está no coração deste trabalho e me acompanhou ao longo da balbúrdia destes dias difíceis. Fico feliz de perceber que de certa forma o trabalho já pressupunha isso, falava disso e defendia-se exatamente disso -queria estar consigo e não conosco, longe da barulheira que no entanto causava.



AUTOSSUFICIÊNCIA Em vez da atividade do espectador, própria de tantas das melhores obras modernas, e que encontrou entre nós uma formulação extrema na ideia dos “Penetráveis” de Hélio Oiticica, a arte contemporânea parece estar se voltando para dentro, numa autossuficiência renitente.


Não é o lugar para desenvolver isto, mas, para dar dois exemplos memoráveis, acho que as “Elipses”, de Richard Serra, apoiadas em si mesmas e não mais nas paredes das instituições, ou “O Ciclo Creamaster”, de Matthew Barney, com suas infinitas dobras e relações internas, partilham esta característica. Meu trabalho acompanha de certa forma essa direção.


A institucionalização crescente da arte trouxe para junto dela uma pletora de discursos institucionais, todos perfeitamente centrados, seguros de si e disputando espaço na mídia e nas oportunidades orçamentárias. Isso vem, talvez, do estilhaçamento das grandes noções universais que acompanharam a formação do mundo moderno: política, religião, burguesia, proletariado, luta de classes, direita, esquerda etc.
Com a quebra dessas noções universais, os particulares (ecologia, minorias étnicas, minorias sexuais etc.) firmaram-se, cheios de si, pontudos, zelosos de suas verdades. A arte talvez seja a última experiência universalizante, ou ao menos não simétrica à discursividade do mundo, e acho que tende a ser cada vez mais atacada, toda vez que discrepar, como soberba e como arbítrio. Mas penso que é isso mesmo que ela deve manter: sua soberba e seu arbítrio, para que possa continuar criando.



DESFAÇATEZ Pois isso para mim foi o mais impressionante de tudo: a absoluta incapacidade, digamos, interpretativa de quem me atacou, a recusa de ver outra coisa, de relacionar o sentimento de adesão ou de repulsa que meu trabalho tenha causado com qualquer coisa proposta por ele, em suma, a desfaçatez com que foi usado como trampolim para um discurso já pronto, anterior a ele, que via nele apenas uma possibilidade de irradiação.


Para isso, é claro, o principal ingrediente é que fosse tomado de modo absolutamente opaco e literal, espécie de cadáver sem significação. Para que possa ser veículo estrito de discursos e de grupos, sem que utilize seus recursos, digamos, naturais (sedução, desejo, ambivalência), o trabalho de arte tem de estar, de fato, desde o início definitivamente morto. Daí, creio, a ferocidade com que fui atacado -uma espécie de operação higiênica preventiva, para impedir que qualquer germe de espanto, ambiguidade, beleza, estupor, pudesse aparecer, desqualificando o desejado consenso.
No fundo, acho que a frase famosa de Frank Stella, que jogou uma pá de cal nas ilusões subjetivas de começos dos anos 60 e inaugurou as poéticas minimalistas que duram até hoje, “What you see is what you see” (“O que você está vendo é o que você está vendo”), parece ter migrado da arte para o mundo. A literalidade das obras de um Carl Andre ou de um Donald Judd transferiu-se inteira para as instituições e para o público.
Por isso talvez caiba hoje à arte a tarefa bastante simples, mas tão difícil, de dizer exatamente o contrário: “O que você está vendo NÃO é o que você está vendo”. Ou seja, sonhar. Ou, como diz a letra da canção, “Bandeira branca, amor”.


"Urubus" - Goeldi - 1925




Nuno Ramos: entrevista





Como você se envolveu com as artes plásticas?

Eu tive uma adolescência marcada pela vontade de escrever. Fui fazer Filosofia para, talvez, perceber que eu não era um intelectual no sentido estrito. Gosto muito de ler, mas a minha recepção do que leio é muito confusa, defeituosa, pouco ordenada. Eu escrevia desde adolescente, mas sempre fui muito insatisfeito com o que produzia. As artes plásticas foram, de certa forma, a liberação de uma energia que a literatura não me estava possibilitando naquele momento.

Como você se preparou para isso?

A verdade é que comecei sem preparo algum – técnico ou mesmo cultural. Conhecia bem mais literatura do que artes plásticas. Não sei desenhar, não sei gravar. Fui fazendo, orientando o meu trabalho com essa coisa física, nessa relação com a matéria. No começo eu fazia tudo, metia a mão na massa. Depois, com a evolução do trabalho, comecei a usar o serviço de terceiros. Hoje não sou mais eu que derreto o sabão que vou usar em uma obra. Mas ainda assim a presença da matéria em meu trabalho é quase sempre muito forte. Talvez esses aspectos tenham me levado para as artes plásticas, coisas que a literatura não me daria. Esse imediato, essa luta com a matéria, foi o que me atraiu logo. Mas, aos poucos, voltei a escrever. Hoje divido as duas coisas quase em pé de igualdade, apesar de fazer minha vida, economicamente falando, nas artes plásticas. Mas a minha energia, no sentido do imaginário, cada vez mais está dividida entre as duas áreas.




Como você descreveria Bandeira Branca, que apresentou na Bienal de 2010?

Bandeira Branca é uma obra que expus em outra versão, geometricamente mais simples – em escala grande, mas menor do que na Bienal –, há uns três anos, em Brasília. A obra é composta de três esculturas de areia socada. No topo delas há três caixas de som, das quais saem três canções: Carcará, Boi da Cara Preta e Bandeira Branca, que dá título à obra. Há ainda três urubus que vivem ali durante o período da exposição. A obra é isolada, o público não pode entrar. Ela é uma espécie de ecossistema, é autossuficiente – a força interna dela é maior do que a força externa. Nesse sentido, acho que ela é o “antipenetrável”. Nossa tradição de arte contemporânea vem muito do penetrável, do Hélio Oiticica e da Lygia Clark, quando o público entra numa obra e participa dela, como se acessasse nesse momento o lugar do artista. Para mim, a obra de arte está tão perturbada, tão violentada pelos discursos, que é importante que tenha vida própria. No meu caso, vida própria literalmente, por conta da vida interna que os urubus davam ao trabalho. Eles não eram símbolos, eram também. Eles não eram marcas alegóricas do pessimismo, eram também. Mas principalmente eram acionadores de um mecanismo interno da obra. Eles comiam, faziam cocô, voavam, sujavam.
Por conta desses urubus, você se viu envolvido em uma das maiores polêmicas das artes plásticas brasileiras. Como vê hoje a questão?
O que é chato na polêmica é a substituição de uma coisa pela outra. Aquilo que seria uma parcela de significado que a obra contém acabou tomando o lugar do todo. Aí todo mundo perde. Arte é um lugar de ambivalência, de ambiguidade, não de doutrina. Em geral, as polêmicas convertem essa ambiguidade em doutrina, e doutrina burra. Com a proibição dos urubus no trabalho, causada pela gritaria em torno da obra, vivi um episódio de fraqueza institucional clássica. Eu obtive duas licenças da instituição que concede autorizações para criar obras com animais, o Ibama. Sob pressão pública e de alguma luz da mídia que produz cegueira, me retiraram as duas licenças. Essa fraqueza institucional foi dura. Afinal, a questão, antes de ser ética, é legal.
Os que se manifestaram contrariamente à obra alegavam que os animais estavam sendo maltratados. Como você lida com a crítica?
Se os protestos viessem de pessoas que acham que animais não podem ser instrumentos estéticos – assim como não podem ser instrumento de devoração – eu poderia discutir. Não é o meu jeito de ver, mas acho perfeitamente pertinente. Aí discutiríamos as questões éticas envolvidas; se os animais são tão sagrados quanto nós, e se, portanto, eles podem ou não fazer parte de uma cadeia alimentar, uma cadeia econômica, ou de um trabalho artístico. Mas não foi isso o que veio a público. O que surgiu foi uma reação ensandecida, uma sucessão de calúnias primárias que era difícil de responder porque não havia nem por onde começar.


O que argumentavam esses manifestantes?
Eles diziam que eu não alimentava os bichos, que ninguém cuidava deles, que os urubus estavam enfraquecidos, que os tirei da natureza. Eu peguei os animais num criadouro. Não havia som, tiramos o som. Havia veterinários, alimentação diária, gente cuidando deles. Ainda assim, eu posso estar errado, mas vamos começar a discussão de fatos. Só que a coisa veio de uma volúpia, que só posso lembrar do fascismo, quando se repetia tantas vezes uma acusação, desconsiderando a defesa, que aquilo se tornava a verdade.

Na mídia, houve quem propusesse que você fosse colocado em um paredão.
Uma colunista falou isso. Disse que eu deveria ser colocado num paredão, de cueca, enquanto me lançavam um jato d’água. Depois, ela disse que era uma piada. Não vejo graça alguma. Eu fui à delegacia para impedir que o pichador que pichou “Liberte os urubu” na minha peça fosse preso. Foi uma cena de pesadelo. De repente, tive o carro cercado, enquanto as pessoas batiam nas janelas e gritavam: “A-li-men-ta-eles!”. Hoje esses bichos estão em Sergipe sem que ninguém tenha jamais se preocupado com seu estado atual.


Você diria que houve um empobrecimento interpretativo da obra?

Acho que sim. A obra tinha um elemento de pessimismo, elemento de uma beleza sombria, de um peso, em um prédio que é todo veloz, para cima. Ela dava uma paralisada naquilo. Era a grande obra da Bienal, no sentido de causar espécie. Era uma obra de um nanquim escuro. Acho que esse barco encalhado, a forma de negá-lo foi acusá-lo de ser ecologicamente inadequado. No entanto, por outro lado, não tenho lembrança de as artes plásticas brasileiras causarem uma polêmica que escapou do meio da arte dessa forma, de parar em jornal, na tevê e em outras mídias. Isso tem lá a sua vida.

 
Acha que a discussão é representativa do momento que vivemos hoje?

Diria que nossa época esqueceu que a arte é o lugar da ambiguidade. Ela é fundo e figura ao mesmo tempo. Ela não é nem fundo nem figura se for boa. Não é uma coisa nítida, que enquadra. Ela não substitui um discurso. Não substitui uma doutrina, mas põe em questão uma doutrina. Uma parte dela dá conta, outra foge, outra nega. Ela é ambígua, é um buraco no mundo. O que senti, como nunca senti com tanta clareza, é como a nossa época é careta, como ela é empobrecedora daquilo que a arte, o balé, a literatura têm de próprio, que é resistir às doutrinas. As artes foram inventadas para isso. Para isso elas existem, para que não digam para nós o que a vida é.



Há uma falta de disposição do público para determinados tipos de trabalho?

A partir do minimalismo e da pop art, com sua crítica da ilusão da representação, a literalidade passou a ser o grande elemento da arte. O público é muito literal. As pessoas batem o olho e perguntam: “O que você quer dizer com isso?” – uma questão primária. Tudo é muito raso. Nunca senti com tanta força quanto nesse episódio dos urubus esse direcionamento. A obra tinha 200 leituras, mas para o público só havia uma, e não podia haver outra. Tudo que escapasse a isso seria uma ilusão, uma manipulação estética formal – essas baboseiras que as pessoas falam. Com isso, se dá as costas para aquilo, por exemplo, que se vai buscar diante de um Matisse. Ninguém vê um Matisse porque a mulher é bonita, mas, sei lá, para a vida ficar mais alegre, para começar de novo – qualquer coisa que se pergunte para uma obra de arte. Não as condições econômicas, políticas, étnicas, sexuais que geraram aquilo. Hoje vivemos uma sociologia soviética, um marxismo vulgar, que não é mais de esquerda. É liberal.

Como você vê o mercado das artes plásticas hoje?

Acho que ele nasceu no Brasil dos anos 1990 pra cá. É uma economia ainda menor que as principais, mas é uma novidade. Quando comecei, nos anos 1980, éramos conhecidos como a geração que emplacou o mercado da arte – e éramos menos de 15 pessoas. O atual momento tem a ver também com a força do mercado financeiro. Infelizmente, as instituições não acompanharam esse movimento. Não podemos dizer que a Bienal seja mais forte do que era nos anos 1980 – na verdade, só está voltando a ocupar um lugar forte agora. O Masp, o MAM estão melhores do que estavam, mas igual ao que já foram no passado – um pouco porque o Brasil não tem tradição de instituições fortes, um pouco porque a dinâmica da Lei Rouanet premiou novas instituições e deixou as antigas à míngua.

E os artistas do passado, ocupam o lugar que deveriam no mercado?

O Brasil tem uma gama de artistas a serem valorizados que me parece importante serem lembrados. Que Amilcar de Castro seja um artista que ninguém conhece, que Volpi seja visto lá fora como naïf, que Sérgio Camargo pareça um artista formalista, que Goeldi até hoje não tenha um acervo... Esses são artistas fortes que a leva de recuperação da nossa arte não incluiu. Basicamente entraram Lygia Clark, Hélio Oiticica e Mira Schendel. Eles são extraordinários, mas os outros também são grandes.



Seu reconhecimento como escritor, quando ganhou o Prêmio Portugal Telecom de Literatura com Ó, em 2009, fez você pensar em mudar de carreira?
Acho que sou muito mais desinibido como artista plástico do que como autor de textos. Eu tenho o superego muito mais pesado quando escrevo. Sou até um pouco naïf como artista plástico – claro que me formei num meio severo; é um pouco besta dizer que sou naïf; acho que sou mais solto. Na verdade, considero essas duas atividades, essas duas regiões muito interessantes. Nunca pensei em parar de fazer artes plásticas nem um segundo. O que acontece é que tenho muito mais interferências externas como artista plástico. Há demandas de museus, galerias, projetos; questões orçamentárias severas, em que não se pode errar; questões de transporte infernais. Há artistas plásticos hoje que têm ateliê com mais de 100 pessoas. São empresas. Como escritor, não há isso. Só dependo de mim mesmo para escrever. E escrevo todo dia.

 
Como você direciona as ideias para os diferentes tipos de obra que produz?

O trabalho normalmente não vem do nada. Está num contexto: uma escultura conversa com a outra, que conversa com a outra, e vai se formando um conjunto. Em literatura também é assim. O próximo livro que vou lançar se chama Junco. Ele reúne uma série de poemas antigos. Mas há uma unidade, uma cena numa praia, onde bichos morrem, troncos afundam, e o oceano vai lavando tudo. Os 47 poemas que foram entrando nesse conjunto pertencem a essa cena. Quando escrevi Ó, era uma coisa falsamente ensaística. Eu precisava estudar um assunto e acabava saindo um texto. Aí quando vinha outro, a junção, eu sentava e fazia. Já O Mau Vidraceiro, de 2010, foi uma espécie de compensação narrativa. Como Ó fala de tudo e não fala de nada, eu sentia falta de narrar pequenos episódios, coisas mais simples, com uma concretude.

Você também se relaciona com o universo da música, tendo canções gravadas por músicos como Romulo Fróes, Gal Costa e Mariana Aydar. Como isso se encaixa em seu trabalho?

Eu tocava violão na adolescência, e comecei a compor. Componho com recursos muito pequenos: toco mal, harmonizo mal, a harmonia demora para se fixar. Tenho pouco jeito. Mesmo assim, formei com o Romulo Fróes e com o Clima um núcleo muito interessante de partilha musical, por isso a música ocupa um lugar importante na minha vida.


O samba tem uma presença marcante em algumas de suas obras, não?

Tem. Às vezes, ele entra como um verso de Nelson Cavaquinho – O sol há de brilhar mais uma vez... –, mas, de modo geral, a cultura brasileira tem presença em meu trabalho. O Drummond está lá, o Goeldi, o João Cabral... Durante um período, eu juntava matérias. Depois passei a juntar matérias e registros culturais. A canção, de modo geral, é o éden popular brasileiro. Nelson Cavaquinho parece uma obra de Shakespeare. O cara toca coisas incríveis com apenas três dedos. Esse é um imaginário que a gente não explorou ainda.




publicada no site:

sábado, 17 de março de 2012

Não acorde o que você ama- Nuno Ramos

Elke Coelho - Ontem o dia estava assim
e outras anotações gráficas



Não há nada mais aflitivo do que testemunhar a beleza.
É preciso lançar nossas marcas (interjeições, palavras), perdê-la.



Não acorde o que você ama.
Deixe que durma a sua promessa.
Deixe que o brilho de suas estrelas
dure sem pressa.
Não acorde o que te interessa.
Olhe detrás de uma vidraça.
Nem isso. Não olhe. Não faça.
Saia do vento, fique na cama.
Deixe o pó na mancha de vinho.
Não acorde o que você ama.
Fique em silêncio, sozinho.


RAMOS, Nuno. Ensaio Geral. São Paulo: Globo, 2007. p. 231 e p. 235


Post dedicado a artista Elke Coelho.

quarta-feira, 14 de março de 2012

O belo feminino - Nancy Etcoff


O BELO FEMININO



A beleza é um sistema monetário assim como o ouro. Como qualquer economia, é determinada pela política e, na idade moderna, é o último e melhor sistema de crenças que mantém a dominação masculina intacta. As imagens que vemos à nossa volta são baseadas em um mito. A beleza é uma ficção conveniente usada por indústrias milionárias que criam imagens do belo e as traficam como ópio para as massas femininas. A beleza conduz as mulheres ao lugar em que os homens as querem, fora das estruturas de poder. O capitalismo e o patriarcado a definem como consumo cultural, e colam suas imagens em toda parte para instigar a inveja e o desejo. A cupidez que inspiram serve a seus dois propósitos: fazer dinheiro e preservar o status quo.

Podendo cultivar os atributos da beleza, as mulheres, no entanto, quase nunca têm a oportunidade de cultivar seus outros atributos.

A mídia controla e dirige o desejo e reduz a amplitude de nossa faixa de preferências. Uma imagem que agrada a um grande grupo se torna molde, e a beleza é seguida pelo imitador, e depois pelo imitador do imitador.

Em apenas um ano 696.904 americanas se submeteram a uma cirurgia estética que envolvia alterar seu corpo. 400 dessas mulheres se submetiam a implante de silicone. Antes, os implantes de seios eram território das estrelas de filmes pornôs. Agora são a norma para atrizes de Hollywood e donas de casa.

Esses procedimentos drásticos não são adotados para a correção de deformidades, mas para melhorar detalhes estéticos. As pessoas se arriscam a procedimentos perigosos, gastam seus recursos econômicos com eles, que até parece que a vida depende disso. No Brasil, há mais mulheres vendendo Avon, Natura, etc, do que membros do exército. Nos EUA, gasta-se mais dinheiro com beleza do que com educação ou serviços sociais. Toneladas de maquiagem são vendidas por minuto.

O mundo está envolvido na insanidade de massa ou há uma certa lógica racional nessa loucura. A aparência é o nosso sacramento, o ego visível que o mundo presume ser o espelho do ego invisível, interior.




FRASES:

"Trabalhar duro como eu trabalhei, para realizar alguma coisa e, então, um panaca qualquer aparece para dizer: "Tire os óculos escuros e deixe que as pessoas vejam esses olhos azuis, é realmente desencorajador". (Paul Newman -ator).

"Mas valha-me Deus, que as coisas possam ser adoráveis sem serem bonitas, espero". (George Eliot)

"Como eu não falaria de sua beleza, já que sem ela eu nunca a teria amado?" (John Keats carta a Fanny - 1819).

O texto acima é parte da introdução do livro: "A lei do mais belo: a ciência da beleza". Nancy Etcoff.

UMA ÉTICA DA ARTE - Nicolas Bourriaud

"Que importa a morte de vagas humanidades, se o gesto é belo."

"O ataque as torres foram a maior obra de arte do século" (Stockhausen)


“Se criticarmos a arquitetura, cujas produções monumentais são atualmente os verdadeiros senhores em toda a terra, estaremos, de certa forma, criticando o homem”. (Georges Bataille)

           A idéia de uma moral criativa ressurge como leitmotiv ao longo de todo o século XIX. Introduzir, porém, a criatividade no campo da moral significa necessariamente combater a norma coletiva; revitalizá-la é fazê-la explodir. Afirma-se a onipotência do Eu, eventualmente deificado, e tal atitude é percebida como uma provocação antissocial. É através do assassinato que o século XIX coloca o problema dessa relatividade da moral: o homicídio gratuito impõe-se como a figura exemplar da moral dândi, porque o mandamento “Não matarás” constitui o mais sólido pilar da moral universal. Precursor do dandismo negro, Sade elaborou um amoral da destruição: o assassinato não passa, para ele, de uma simples variação das formas. “Está acima das forças humanas provar que possa existir algum crime na pretensa destruição de uma criatura”, já que o impulso assassino, como todo impulso, se origina de um conselho da natureza, escreve ele em A filosofia da alcova.

O ensaio de Thomas de Quincey, Do assasinato como uma das belas-artes (1827), passa a ser o manual irônico do comportamento social. Seu contemporâneo Pierre-François Lacenaire, poeta e assassino, apresenta-se como “flagelo da sociedade” e declama seus poemas mesmo ao pé da guilhotina que lhe cortaria a cabeça em 1836.

Quanto a Baudelaire, escreve hinos ao linchamento dos miseráveis: “Bata, meu caro guarda municipal, o homem no qual você bate é um inimigo das rosas e dos perfumes”. Os escritores do final do século não ficam para trás no que se refere a entregar-se à crueldade estetizante: “Que importa a morte de vagas humanidades, se o gesto é belo”, confidencia Laurent Tailhade, a propósito de um atentado a bomba no Palais-Bourbon.

O inimigo declarado, a antítese, da moral dândi  é a multidão. Somente o Eu aparece como fundador de valores que escapam à imunda padronização dos comportamentos.

Seria preciso esperar mais de um século, e Joseph Beuys, para que a multidão encontrasse  sua legitimidade no âmbito de uma estética da invenção de si, já que ela se torna, no artista alemão, o material de uma escultura social.



In: BOURRIAUD, Nicolas. Formas de vida: a Arte Moderna e a invenção de si. São Paulo: Martins Fontes, 2011.


terça-feira, 13 de março de 2012

YVES KLEIN Azul



 

"No início não há nada,
depois um nada profundo,
e depois uma profundidade azul".
(Bachelard)






segunda-feira, 12 de março de 2012

Simone de Beauvoir - uma foto de Art Shay




O fotógrafo Art Shay fez essa célebre foto em Chicago em 1952. Simone de Beauvoir era filósofa existencialista e ícone feminista. Art Shay era amigo de seu amante da época, o escritor Nelson Algren.

O fotógrafo viu a cena pela porta entreaberta da sala de banho e a eternizou para sempre. “Como jovem fotógrafo da Life Magazine, eu sempre levava minha Leica comigo. E esse dia não era exceção.

Estritamente falando, sim essa fotografia foi roubada, segundo uma ótica feminista. Eu me encontrava então nessa situação, fotógrafo estagiário da Life Magazine (inicialmente contratado para carregar as sacolas e escrever as legendas), quando eu vi Beauvoir sair do banho e ficar se penteando na frente do espelho. Eu rapidamente tirei duas ou três fotos e ela escutou os cliques. "Você é um rapaz malvado", ela me disse, no entanto, ela nem me pediu para que eu parasse de fotografar, nem fechou a porta, para mim, Madame não era "uma instituição" nessa época, era acima de tudo a amante estrangeira do meu amigo”, afirmou o fotógrafo em entrevista para a revista francesa “Le Nouvel Observateur” em 2008.

quarta-feira, 7 de março de 2012

A Evolução – Desmond Morris


Para o zoólogo, o ser humano é um macaco sem cauda com um cérebro enorme. O que mais surpreende nele é seu incrível sucesso como espécie. Enquanto outros macacos se escondem em seus últimos refúgios, aguardando a chegada das correntes que vão aprisioná-los, 6 bilhões de humanos ocupam quase todo o globo, espalhando-se tanto e com tal velocidade a ponto de mudar drasticamente a paisagem como uma praga de gafanhotos gigantes.

            O segredo desse sucesso é sua capacidade de viver em agrupamentos cada vez maiores, onde, mesmo na mais alta densidade populacional, são capazes de se adaptar às tensões da vida e continuar procriando sob condições que qualquer outro macaco acharia insuportáveis. Além dessa capacidade, existe ainda uma curiosidade insaciável que os faz buscar sempre novos desafios.

Essa combinação mágica de sociabilidade e curiosidade foi possível graças a um processo evolucionário chamado neotenia, que permite aos humanos manter caracteres juvenis na vida adulta. Outros animais brincam quando são jovens, mas perdem essa capacidade quando amadurecem. O homem continua brincando e se divertindo por toda a vida – é um Peter Pan que nunca cresce. Naturalmente, quando se tornam adultos, os homens dão nomes diferentes a essa brincadeira: chamam-na arte ou pesquisa, ou esporte ou filosofia, música ou poesia, viagem ou divertimento. Como as brincadeiras infantis, todas essas atividades envolvem inovação, risco, exploração e criatividade. E são elas que nos tornam verdadeiramente humanos.



segunda-feira, 5 de março de 2012

Julio Castanõn e Manfredo de Souzanetto


obra de Souzanetto


 
Poema de Julio Castañon Guimarães

Fechada a porta que se abriu
e fechou para tantas narrativas
- vida e morte de uma casa -,
hoje, mais do que guardar
o que pudesse estar dentro,
onde então só o vazio,
guardaria o que está fora
e só tem a via da dispersão.
Gonzos calados, resiste,
absorta, a porta maciçamente,
despida de vestígios,
quando tudo em volta derrui,
paredes e personagens,
de modo que, com esse aspecto férreo
que lhe deram seu caráter e o tempo,
se elança, a porta,
como imensa chapa,
intervenção que se interpõe
no espaço que ela, a porta, abre.

sexta-feira, 2 de março de 2012

[MASP], poema de Gabriel Pedrosa



[MASP]
Gabriel Pedrosa



(masp

sempre que
passo o espanto
vão
o respiro
certa ideia de casa
e escondido o desejo
de que a laje rebente

pássaros)




NADIA COMANECI - Danilo Bueno




NADIA COMANECI
Danilo Bueno



Tudo assiste crescer em seu mergulho: astros expandidos, espelhos imemoriais. Tesa de intensa delicadeza desenha a teia certeira, estrita esgrima com a brisa, sem arrimo ou amarras, perdura o arco dorsal enquanto desmorona o fôlego suspenso dos metais – vôo que anula o entorno e batiza o desgoverno: múltiplo rebento do movimento, um impulso para o centro de si até construir o desfecho: o solo brotando para a planta dos pés.

Publicado em: Modo de usar e Co. – Nov./2007.









AMOR E CRIME COM HEIDEGGER




Trecho de: "Minha vida de amor e crime com Martin Heidegger"


UM INTERROGATÓRIO



- Então, se casaram em 1989?

- Sim.

- Era um casamento feliz?

- Era um casamento.

- Feliz?

- Durante algum tempo eu o julguei suportável.

- Suportável, apenas?

- Vocês são homens. Ignoram que um marido raramente é um companheiro.

-Por que deixou de pensar que era um casamento feliz?

- Era... tinha se tornado, naquele momento, algo como uma associação entre dois cães. Não havia no nosso casamento nada além de comida e sexo. Era um casamento de cães.

- Procurou uma compensação fora de casa?

- Não. Os homens me causavam um pouco de repugnância, pelo menos quando eu não era indiferente. A afeição que eles dão, é como um doce dado a alguma criança de quem queremos alguma coisa. É sempre a mesma coisa que os homens esperam de uma mulher. Sexo e servidão.

- Contudo, foi com o sexo que o suposto Heidegger conseguiu sua submissão?

- Eu não era submissa a ele. O que ele me ofereceu, a princípio foi minha própria... satisfação.

- Foi então porque ele demonstrava maior consideração nas relações ente os dois que se tornou sua amante?

- Um homem capaz de tal consideração é um homem com o qual podemos, com o qual queremos viver.

- Poderíamos dizer que o sexo foi o motivo dominante de sua aventura com o suposto Heidegger?

- Não. Foi o sentimento de dignidade. Com Heidegger eu era eu mesma.

***

Ele deu uma tragada no cigarro e eu sentia a cabeça vazia. Um céu com nuvens agitadas correndo em todas as direções. Sim, ele estava certo, eu estava ali para fazer amor com ele, mas ao mesmo tempo isso me assustava.

            -Então, sente aqui. Não, tire a roupa. Quero vê-la nua.

Sim, e eu queria que ele me visse nua. Saboreei o prazer antecipado. Abro dois botões da blusa e tiro-a pela cabeça, depois abro o zíper da minha saia e a deixo cair. Tiro a calcinha e me esforço para tirar o fecho do sutiã. Durante esse tempo ele tirou apenas a calça. Não usava cueca. Está com uma ereção e me observa. Seu sexo é diferente do de meu marido Mark. Não vi muitos sexos masculinos em minha vida, mas sei que cada um tem uma aparência própria. O de Mark é branco e cilíndrico, rosado e branco, regular. O de Heidegger é mais grosso, mais escuro, com a ponta vermelho-escura, violento e selvagem, enquanto o de Mark é o de um jovem impetuoso.

-Venha cá.

Ele se levanta, me abraça e me beija. Seus lábios são muito mais carnudos que os de Mark. Eles envolvem a minha boca e minha língua, depois me devora inteira. Ele está ajoelhado e repete o que havia feito na noite anterior. Suga o meu clitóris e introduz a língua entre meus lábios. Depois, suga os meus seios e me beija outra vez, com a mão no meu sexo, um dedo curvo dentro dele e deixo escapar um pequeno grito. A precisão dos seus gestos, o modo com que suas mãos se apossam de mim me embriagam completamente. Ele me deita suavemente no sofá e depois de separar minhas pernas, recomeça a lamber e sugar meu sexo. Eu grito outra vez, e mais outra. Levanto-me, seguro o sexo dele para ter certeza de que ele não está me usando, que me deseja. Sim, ele me deseja e eu ajoelho na frente do seu sexo, eu o beijo, manchando-o de batom, o acaricio com a língua, como para lavá-lo, e o sugo como ele há pouco sugou meus seios. Uma refeição. Uma refeição de bebês.

Ele me faz levantar, me deixa deita no sofá, abre as minhas pernas. Apóia-se sobre as almofadas e me penetra com uma lentidão, uma lentidão... Uma de minhas pernas está sobre seu ombro, a outra no chão, e o sofá desliza na água, balançando suavemente. Cada vez que ele avança, respiro profundamente, cada vez que ele se afasta, solto o ar dos pulmões. O tempo, é isso, o vaivém de um sexo em outro sexo, mais real do que todos os tique-taques dos relógios, dos pêndulos. E chega a hora, eu grito, ele responde com um rugido. Tudo pára. Eu o puxo para mim, o beijo, murmuro palavras doces.

- Martin Heidegger.

Dizer um nome, dizer o nome do amado, uma missa.