Michel Houellebecq:
Anatomia de uma lavagem
cerebral
por RAFAEL DYXKLAY
Quem por acaso
visitasse Versalhes no ensolarado novembro de 2008 teria uma feliz surpresa:
encontraria, entre os retratos de Luís XVI e Maria Antonieta, o busto de um
jovem artista norte-americano, aspiradores de pó junto às rainhas da França,
uma lagosta inflável em meio a seus lustres, a pantera cor-de-rosa em seu salão
principal e, por último, mas não menos importante, uma escultura dourada, em
tamanho real, de Michael Jackson e seu macaco de estimação como Maria e Jesus
na Pieta de Michelangelo.
E lá estava o mestre do kitsch, Jeff Koons, ostentando seu sorriso de
genro perfeito e aspecto de vendedor de Chevrolets. O homem que certa vez
promoveu uma das maiores vendas de arte da história — e, em seguida, as obras
desvalorizaram 900% —, no qual alguns vêem um visionário, outros um charlatão.
Um ano se passa e o romancista francês Michel Houellebecq, muito mais
reconhecido por americanos do que por franceses, escreve para Koons os textos
do livro de fotografias da exposição. A relação é inegável. Houellebecq também
foi sempre visto de formas radicalmente opostas, há forte estratégia comercial
em torno de sua obra e o autor somou alguns milhões a sua conta em uma troca
“futebolística” de editora. A diferença está em que realmente assume uma imagem
controversa, atacando o islamismo, defendendo a prostituição e dizendo que a
literatura do século 20 nada significa para ele. Ao buscar sua imagem no
Google, encontramos um senhor de aparentes sessenta anos, ou mesmo setenta, ora
sem camisa, ora em pé numa cadeira, usando óculos de sol característicos de um
jovem de vinte.
Em setembro do ano seguinte, o autor lança seu romance mais ambicioso, e
suas primeiras palavras são — adivinhem — “Jeff Koons”.
Supervalorizado
O mapa e o território retrata a vida de um artista plástico francês chamado Jed Martin, que, depois de falhar no quadro Jeff Konns e Damien Hirst dividem o mercado da arte,alcança reconhecimentocrítico e financeiro através de uma série de pinturas de personalidades no exercício de suas atividades. Dentre todos os trabalhos, sua provável obra-prima é o perturbador retrato do grande escritor francês Michel Houellebecq (sic).
Contudo, o enredo pouco diz da obra. É sobretudo nos diálogos e
digressões que o autor empenha sua pretensão universalizante. Por Jed passam
reflexões sobre a arte, o amor, a política, o capitalismo e a morte. A
arquitetura da qual seu pai tanto fala é sempre uma metáfora para o
comportamento humano, assim como suas obras são para as profissões, uma
reflexão sobre a organização da sociedade, os anos 2040 (no qual termina a
narrativa), uma teoria de a que rumos estamos caminhando.
Enquanto isso, seu estilo busca a radicalidade da arte contemporânea. A
apropriação de aspectos do best-seller, o trabalho com clichês, a estética do
kitsch, observações sensacionalistas e a tentativa de um estilo “branco” ou de
uma ausência de estilo — em analogia a artistas como Koons, que nem mesmo tocam
em seus trabalhos — são os motivos do repúdio e da devoção em torno de sua
obra.
Poucos dias após
seu lançamento, o romance possui toda a atenção da imprensa. Apesar de alguns
raros posicionamentos radicalmente desfavoráveis — e uma paródia chamada A massa e o supositório —, é seu livro mais bem
recebido. Entra na corrida já avançada dos prêmios literários anuais,
recebendo, de imediato, alguns de médio porte e se tornando forte candidato
ao já nem tão prestigioso assim Goncourt, concedido anteriormente a
autores como André Malraux, Simone de Beauvoir e Marcel Proust.
Se seu funcionamento equivalesse a sua ambição, teríamos uma obra
tão brilhante quanto foi considerada, e seu autor mereceria o rótulo — dado
invariavelmente por estrangeiros — de melhor autor da França atual. No entanto,
embora muito acima de seus companheiros de alta vendagem, Houellebecq nivela
por baixo os grandes mestres da contemporaneidade, quando a eles comparado.
Duas perguntas surgem, afinal: de que maneira o romance falha e por que
o autor é supervalorizado?
Dentre acertos notáveis, o romancista subestima seus leitores ao moldar
um texto predominantemente auto-explicativo, com páginas e páginas de
informações imprescindíveis sobre arte e história, geralmente encaixadas de
forma inorgânica ao personagem que as enuncia, como é característico de livros
juvenis, ou de autoria de Dan Brown. O que não metaforiza a era da informação
alienada, mas é tão somente um fator gratuito.
Outro problema é sua retórica insuficientemente madura para concatenar
tantos âmbitos do conhecimento humano sem cair na generalização ingênua e pouco
convincente. Erros que, por exemplo, W. G. Sebald não comete, ao se deparar com
casos semelhantes em seu último romance.
Houellebecq vai ao
mercado
A França hoje é vista de forma simplista, em associação ao liberalismo sexual e a decadência da Europa. Sua última figura pública de maior influência resolveu assediar uma camareira. Por transferência, também não se espera muito de sua literatura. Além disso, a dúzia de autores que nos são traduzidos passam primeiro pelo julgo anglófono. Na Wikipédia em inglês, e não no francês, há uma página dedicada ao movimento literário do “depressionismo francês”, em que apenas Houellebecq é citado. A revista americana TheNew Yorker considerou Marie Darrieussecq como uma das maiores promessas da jovem literatura européia por ser a “metamorfose erótica de sua geração”. A mesma revista dedicou uma matéria bem mais longa e elogiosa a Paulo Coelho.
O autor brasileiro
também figura, junto a Houellebecq, nas edições norte-americana e britânica dos 501 grandes escritores e 1001 livros para ler antes de morrer. Dadas as devidas
proporções de qualidade, o pessimismo de um e o misticismo de outro são vistos
de forma igualmente exótica. O filtro do sucesso comercial funciona para a
crítica estrangeira exatamente como para a decisão do autor francês de escrever
um romance sobre arte contemporânea citando apenas os dois artistas que dominam
— e não “dividem” — o mercado.
Precisamente como
todo o resto dos artistas plásticos de hoje, seu conterrâneo mais jovem Mathias
Énard, autor de um romance de quinhentas páginas e uma única frase de título La zone, considerado por alguns franceses como “o
romance da década, senão do século”, é excluído automaticamente da disputa pelo
trivial rótulo de maior autor francês por três motivos simples: sua vendagem é
muito mais baixa, sua dificuldade de leitura bem maior e, em países como o
Brasil, sua obra, vários anos após seu lançamento, ainda não foi traduzida.
Dois meses depois, O mapa e o território vence o Goncourt.
É crítico literário
e tradutor de obras de Charles Dickens, entre outros. Vive no Rio de Janeiro
(RJ).
Publicado em: http://rascunho.gazetadopovo.com.br/anatomia-de-uma-lavagem-cerebral/
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