Entrevista com Antonio Candido
Entrevista
concedida a Jardel Dias Cavalcanti, Jaílson Dias Carvalho, Mario Alex Rosa,
publicada no jornal Reviraarte (UFOP, Mariana/M.G, Ano I, n. 3, 1992), editado
pelos mesmos.
A entrevista aconteceu no momento do Seminário: "Tiradentes: mito, cultura e história", em 14 de agosto de 1992, quando Antonio Candido deu a belíssima palestra "Os poetas da Inconfidência", que está publicada em "IX Anuário do Museu da Inconfidência" (Ouro Preto, 1993). Outros participantes do seminário foram: Kenneth Maxwell, Francisco Iglésias, Sergio Paulo Rouanet, Fernando Novais, Caio Bosch e Fabio Lucas.
ENTREVISTA:
A entrevista aconteceu no momento do Seminário: "Tiradentes: mito, cultura e história", em 14 de agosto de 1992, quando Antonio Candido deu a belíssima palestra "Os poetas da Inconfidência", que está publicada em "IX Anuário do Museu da Inconfidência" (Ouro Preto, 1993). Outros participantes do seminário foram: Kenneth Maxwell, Francisco Iglésias, Sergio Paulo Rouanet, Fernando Novais, Caio Bosch e Fabio Lucas.
ENTREVISTA:
Jaílson
Dias Carvalho: Professor, você diz no seu livro “Tese
e Antítese” que no âmago da arte literária de Graciliano Ramos há um intenso
desejo de testemunhar sobre o homem, e que os personagens criados, como ele
próprio, são projeções deste impulso fundamental; e que Graciliano Ramos jamais
se repetia tecnicamente. Para ele, uma experiência literária efetuada era uma
experiência humana superada. A minha pergunta é a seguinte: como testemunhar
sobre o homem hoje e o que testemunhar, tendo em vista esta reflexão do senhor
segundo o qual uma experiência literária efetuada é uma experiência humana
superada?
Antonio
Candido: Bom, eu falava do caso preciso de Graciliano Ramos,
que não é obrigatoriamente o caso de todos os escritores. Cada um tem o seu
caminho. Há escritores que se repetem sem parar. Há escritores que dão seu
testemunho, repetindo-se sempre, dizendo sempre a mesma coisa. Eu não posso dizer hoje em dia qual é o
caminho. Como no tempo de Graciliano, existem escritores que dão o seu recado e
ficam quietos. E há escritores que não param de dar de dar o mesmo recado
sempre. Mas nós temos, por exemplo, alguns grandes escritores que são autores de
um livro só. Deram seu recado. É o caso, por exemplo, de um grande escritor
francês: Benjamim Constant, que escreveu um livro notável de testemunho sobre a
formação de um jovem, sobre o tempo dele [Antonio Candido se refere ao livro “Adolphe”,
escrito em 1816]. Escreveu aquele livro e pronto, ficou quieto. O caso de Graciliano
Ramos é um caso específico. Eu creio que eu não posso aplicar a outro, pois é o
único escritor de literatura brasileira que eu conheço que queimava etapas.
Quer dizer, ele não se repetia. Essa observação foi feita por Aurélio Buarque
de Holanda. Cada romance de Graciliano é diferente do outro. Agora, a ideia que
eu tenho, é o seguinte: que a passagem dele do romance para a autobiografia foi
uma etapa desse desejo de testemunho nosso. Que o desejo dele de testemunhar
sobre o homem era tão profundo que ele deu testemunho sobre o homem da pequena
cidade, sobre o explorador de homens, sobre o homem esmagado, sobre o pequeno
burguês dilacerado pela dúvida e pelo ciúme, e depois sobre ele próprio. Feito isso
ele ficou quieto.
Jardel
Dias Cavalcanti: Gostaria de saber do senhor: qual é a
possível relação entre história e literatura?
Antonio
Candido: É a mais profunda possível. Você sabe que modernamente
houve correntes teóricas da literatura, como o estruturalismo, por exemplo, que
acentuaram o caráter ahistórico do texto. O que é uma etapa compreensível dos
estudos. Porque se a gente pensa demais no texto como produto histórico, a
gente pensa na história e não no texto. Então, eu vou ver, por exemplo, “A
Escrava Isaura”, de Bernardo Guimarães, não como um romance, mas como um
documento sobre a escravidão. Enquanto o romance não é documento. O romance é
uma criação autônoma. Então, os estruturalistas disseram: o importante é nos
fecharmos no texto, porque os textos obedecem não às circunstâncias onde eles
estão inseridos, mas a certos modelos intemporais da imaginação que são válidos
para todos os tempos. Este é um ponto de vista respeitável, mas isso eu
considero apenas uma questão da etapa metodológica. Porque no fim o texto está
na história. Eu posso abstrair o texto da história apenas para estudar, como eu
posso, por exemplo, tirar o olho de um cadáver e estudar apenas o olho se eu
for oftalmologista, mas depois eu tenho que pensar o olho, não em si, mas como
parte do corpo humano, porque ele recebeu a função do corpo. Então, da mesma
maneira que cada um de nossos órgãos pode ser estudado independentemente, como
se fosse um todo autônomo, mas eu só posso compreendê-lo se eu o devolvo ao seu
contexto, também eu só posso entender o texto literário se eu o devolvo ao seu
contexto histórico. O grande texto literário é sempre um testemunho, não é um
documento. O nosso querido aqui pegou uma coisa que eu acho fundamental, o
texto como testemunho. O texto é um testemunho. Porque, se não, ele é um
documento. Qual a diferença entre o testemunho e o documento? O documento é uma
coisa que serve para fazer ver uma realidade externa. O testemunho é uma visão
pessoal do mundo, não é? Isso é que é a literatura. Agora, cada etapa da
literatura, cada época da literatura, a beleza dela é que ela modifica a visão
de mundo. Marcel Proust dizia que todas as vezes que nasce um grande escritor,
o mundo é criado de novo. Porque o mundo que ele vai ver, não é o mundo que o
predecessor viu; nesse sentido é que eu digo que a literatura é um testemunho,
e o escritor é um observador privilegiado, porque ele não cria um documento,
ele cria uma visão de mundo. Na medida em que ele cria uma visão do mundo ele
está enraizado na história, mesmo que ele não tenha consciência disso.
No
meu trabalho, por exemplo, eu tenho uma etapa de crítico literário e tenho uma
etapa de historiador da literatura. Quando eu sou um crítico literário eu tendo
a me fechar no texto, quando eu sou um historiador da literatura eu tendo a
incluir o texto no seu contexto histórico. Eu conheci pessoalmente o grande
Lucien Febvre, pai da história francesa moderna. Lucien Febvre dizia que a única
ciência do homem que existe é a história, porque tudo é história, e de fato. Basta
vocês verem como todas as disciplinas humanas passam de moda e a história não
passa. Ninguém mais fala em sociologia hoje. No meu tempo era a ciência de
ponta, mas acabou. Agora, a história é a ciência do homem, pois tudo aquilo que
se refere ao homem chega um momento em que toca a dimensão histórica.
Jardel:
O senhor acha que dentro da análise
da história da arte, a análise estética abrangeria muito mais,
seria mais profunda, ao analisar uma obra de arte, que uma análise histórica da
arte?
Antonio Candido:
Olha, eu não diria que ela vai além. Ela vê uma outra dimensão. Vocês notem que
todas as visões que transformaram a nova concepção de obra de arte são visões
históricas. É a visão de Hegel, por exemplo, é a visão de Taine, não é? É a
visão, em nossos dias, do Hauser, é a visão do Panofsky. São visões históricas,
que perguntam, por exemplo, qual era a função de tal conjunto instrumental
naquele momento histórico a que ele correspondia. Porque surgiu aquele conjunto
instrumental? Quer dizer que a história estava sempre aí. Eu gosto muito de música,
aquela que eu considero a forma mais culta de música e a de que eu gosto mais é
o quarteto de cordas. O quarteto de cordas, se a gente vê, é um conjunto de
dois violinos, uma viola, e um violoncelo. Parece que alguém teve a ideia de
juntá-los porque sentiram que esteticamente daria um conjunto perfeito. Não
foi! Foi porque os seresteiros de Viena não poderiam carregar o cravo, e quem
fazia o baixo continuo era o cravo. Mas carregar o cravo era muito pesado, e
então eles passaram a levar o violoncelo para fazer o baixo contínuo, aí nasceu
o conjunto de cordas, e numa circunstância fortuita, historicamente documentada
e ligada à evolução da técnica. De modo que o histórico e o estético estão de
tal maneira interagidos, é que eu digo, não é que um seja superior a outro,
cada um é um momento da visão. Há o momento da visão estética e há o momento da
visão histórica. O que eu sustento é que é um erro querer hipertrofiar a visão
da obra como um todo autônomo, porque há um momento em que sempre nós temos que
voltar à história. Nós partimos da história e voltamos à história. Por exemplo,
o caso do estruturalismo. Eu costumava dizer aos meus alunos em São Paulo que o
estruturalismo é muito bom para ficar no texto, mas que a gente não pode ficar
no texto. A gente tem que entrar no texto e tem que sair dele. Então sair do
texto é saber o que ele significa realmente do ponto de vista da história.
Mário Alex Rosa: O
poeta foi expulso da República por Platão. Há espaço para o poeta hoje? O senhor
vê uma crise na poesia brasileira hoje?
Antonio Candido:
Para começar, porque Platão expulsou o poeta da República? Diante da crítica moderna
nós dizemos que há duas correntes: a platônica e a aristotélica. A crítica
aristotélica é aquela que se fecha na obra de arte, considera a coisa como
sistema sem estudá-lo. A crítica platônica é aquela que quer ver qual é a
função da obra de arte e como, para Platão, a obra de arte pode desviar a atenção
dos homens de coisas mais sérias, ele expulsou o poeta. Não vamos tratar disso.
Agora, não é que o poeta seja um funcionário da coletividade. O poeta não é
destacado para fazer nada, ele simplesmente cria. Acontece que ao criar, ele dá
voz àqueles que não têm voz. Eu sou incapaz de dizer sobre o mundo o que Carlos
Drummond de Andrade diz, eu sinto que é aquilo que eu queria dizer do mundo. Só
que ele é o Drummond, e eu sou um pobre diabo. Eu não seria capaz de dizer
aquilo. O poeta é o nosso delegado. O poeta é o homem que nos representa, é o
nosso deputado – logo, nós precisamos sempre dele. Por isso é que não há
cultura sem poeta. Há momentos em que há maiores poetas e momentos em que há
menores poetas. Há momentos de florescimento. Nós vamos estudar um momento
excepcional que foi a escola mineira, depois nunca mais Minas Gerais teve um
grupo como aquele do fim do século XVIII. Isso não é a terra que cria. São uma
série de circunstâncias fortuitas ligadas a motivações culturais e ao gênio de
cada um. Em todas as sociedades o poeta está presente como um intérprete. Nos nossos
dias, no Brasil, neste momento, eu não vejo a presença de grandes poetas. Eu vejo
a presença de muito boa poesia. Mais que no meu tempo de moço. Neste a gente
via andar pela rua Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond, Vinicius
de Moraes. Depois, já na minha idade, João Cabral de Mello Neto. Depois deles
nunca mais o Brasil teve poetas dessa altura. Mas há uma quantidade de jovens
poetas de meia idade e jovens mesmo, que são excelentes poetas. A poesia está
sempre ai. Como dizia Emilio Moura, um poeta mineiro que era meu amigo, a
poesia é eterna. Podem querer matá-la, mas ela renascerá sempre.
Jardel Dias Cavalcanti:
Posso fazer mais uma pergunta?
Antonio Candido:
Olha, tem uma senhora me esperando. Fazer esperar uma senhora, não há poesia
que justifique. (risos de todos).
Jardel Dias Cavalcanti: Comemorou-se
nos últimos dias a Semana de Arte Moderna e falou-se muito em Oswald de Andrade
– parece que recuperado pelo Haroldo de Campos – e o Mário de Andrade, que me
parece uma pessoa fabulosa, porque não se falou tanto nele?
Antonio Candido:
O Mário de Andrade? O centenário dele é no ano que vem. É o seguinte: Mário de
Andrade foi um homem muito glorificado em vida. Um homem que foi reconhecido em
vida. E o Oswald não foi. Foi um homem injustiçado, de modo que depois há um
momento histórico em que há uma espécie de báscula. Chegou a hora de Oswald – e
os poetas concretos fizeram um grande movimento de restauração do Oswald porque
eles consideravam o Oswald o seu precursor. A obra de Oswald é muito irregular –
ao contrário da obra do Mário. A obra do Mário é muito mais sólida. O Mário é
uma personalidade com uma envergadura cultural muito maior que Oswald. Agora, Oswald
é um homem que nos momentos me que acertou, acertou mesmo. De modo que foi
muito justo que o Oswald voltasse, porque ele andava muito esquecido. Eu fui
muito amigo do Oswald de Andrade. Fui compadre dele, eu sou padrinho do filho
mais moço dele. Eu fui mais amigo do Oswald que do Mário. Mas eu reconheço que
o Mário de Andrade era de muito mais envergadura cultural. A explicação é essa:
como Mário foi muito glorificado em vida, passa por um período de eclipse. O Oswald,
que foi injustiçado em vida, passa por um período de glória. Daqui a pouco vai
haver a virada simétrica de Mário de Andrade.
CAPA do jornal REVIRAARTE, onde a entrevista foi publicada:
parabéns! ótima empreitada desses jovens estudantes, conseguiram uma boa entrevista com o professor Candido!
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