Foi só eu colocar o pé na rua, dar alguns passos,
olhar o céu para ver a possibilidade de chuva, ajeitar a bolsa no ombro e lá
estava ele vindo no passeio, na minha direção. Inicialmente não percebi quem
era, afinal 20 anos se passaram. Algo do seu porte ainda se conservava, apesar
do corpo mais macilento e os cabelos brancos. Eu o reconheci antes de ser
reconhecida por ele. Vejo-o olhando para mim como os homens olham para uma
mulher que os atrai: mede meu corpo de cima para baixo, depois retoma o olhar
para cima. Agora sim, me reconheceu. Faz-se de surpreso, o tradicional beijo no
rosto, elogio sobre minha aparência. Acredita que ainda persiste uma certa
intimidade, mesmo passados tanto anos, que o permite segurar minha mão, tocar
meus braços nus. Gelo por dentro e mil imagens voltam a me possuir. O toque de
sua mão faz retornar a sensação do calor do seu corpo, de nossos banhos nus e
seus gemidos ao me pegar por trás sob a água morna, as várias camas onde me
possuiu e onde empesteamos o lençol com o cheiro do nosso sexo, as posições às
quais me submeti numa soma de prazer e susto. No entanto, estou sóbria, faço
perguntas tradicionais que me são devolvidas. Casada? E os filhos? Trabalhando?
Continuamos mantendo a racionalidade numa conversa banal. A intimidade, que
pensa ainda ser um direito dele, o faz comentar sobre meu corpo, de como estou
mais atraente: “não perdeu a sensualidade com a idade, como os bons vinhos”,
emenda sorridente. Devolvo com mais parcimônia, você também está ótimo. Penso: ele
ainda está apreciável. Não larga minha mão, desculpa-se perguntando onde está a
aliança, já que falei que estou com alguém. Não uso, para que usaria, digo-lhe,
com a corrente de calor de sua mão me penetrando docemente. Ele não vê
problema, está próximo, parece que quer encostar-se em mim, abraçar meu corpo como
fazia sempre, roçando seus lábios no meu pescoço e falando no meu ouvido
aquelas coisas que uma mulher adora ouvir quando está se entregando. No
entanto, mantém a distância mínima. Também sei me colocar entre o que o desejo
quer e o que eu tenho que representar como não desejo. Falar banalidades serve
para isso, ser esse pequeno muro entre ele e eu, entre o que eu quero
realmente, o que ele quer realmente, e o que não podemos deixar acontecer.
Tantos anos se passaram e eu gostaria de saber como seria outra vez ouvir seus
gemidos. Imagino o que se passa na cabeça dele, talvez fazer melhor o que não
fez tão bem antes, abusar mais, quem sabe. E eu, me soltar mais, afinal os anos
nos ensinam alguma coisa. O tempo está bom hoje, não é? Sim, por isso estou
saindo para dar um passeio. Fazer umas compras. Eu tenho um trabalho para
fazer. Está morando aqui perto? Sim. Que bom ter cruzado por essa rua e ter te
encontrado. Bom te rever também. Ele quer algo mais? Olha meus pés, exibidos
numa sandália que os deixa nus, repara em minhas curvas e seios. Olhos passando
rápido aqui e ali, como em desespero, mas discretamente. Talvez pense, porque
eu a deixei escapar de mim? Eu reparo nos pelos do seu braço, sua barriga mais
proeminente, seu peito com cabelos escapando da camisa. Como o tempo passa!
Sim, exclamo também. Ele toca meu braço, já me sinto aberta para ele. Ele não
sabe disso, pois mantenho a distância necessária, sempre, por mais que eu
esteja me derretendo, dentro do jeans apertado, sob seu toque leve. Volta a
segurar minha mão, mais forte, já me possuindo inteira. Eu percebo que ele
gostaria... um escritor disse que uma mulher percebe uma ereção a cem metros de
distância. Ilusão, estou sonhando, apenas um toque entre nossas mãos? Nos
despedimos. A gente se vê por aí. Sim, qualquer hora a gente acaba se
encontrando outra vez aqui na rua. Bom, preciso ir. Ok. Me beija o rosto, como
se quisesse beijar minha boca. Beijo seu rosto, como se quisesse beijar sua
boca. Cada um vai para uma direção. Gostaria de virar para ver se ele está me
olhando, afinal, sempre me apreciou por trás. Volto para casa horas depois
dessa despedida, deito na cama, coloco o travesseiro entre as coxas e sonho.
(Jardel Dias Cavalcanti / abril 2019)
(Imagem: Ronald Polito)
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