Grafites
de Ronald Polito
Por Jardel Dias Cavalcanti
Só seremos artistas sob a
condição de sentirmos, como um conteúdo, como a própria coisa, aquilo que os
não artistas chamam forma. (Nietzsche)
Amparado por dois
frágeis fios de cabelo, o balanço se mantém firme numa pequena estrutura que o suporta.
O que não se imagina é que, além do fio de cabelo, se trata de um balanço e seu
suporte construídos com o mais fino grafite que se pode encontrar. Uma
fragilidade absurda que, no entanto, se mantém firme como estrutura estável. Eis
uma das obras da série Grafites, de
Ronald Polito.
Grafite 0,7 mm e fios de cabelo, 5,8 × 2,7 × 2,8 cm, 2014
A arte moderna e
contemporânea liberou o artista para que construísse suas obras com os mais
variados e inusitados materiais. As proposições poéticas também ganharam um
espaço de experimentação e de construção bastante amplas.
Quando pensamos nos Grafites, de Ronald Polito, é dentro
desse quadro de dupla direção que devemos situar sua criação. Do ponto de vista
do material, a escolha do grafite para a elaboração de suas obras é não só rara
como inusitada. Da mesma maneira, uma conjunção da poética do delicado e do
frágil com a ideia do arquitetônico, do resistente e do permanente é o que
marca essa série.
Aliada a esses
elementos, há que se perceber outra característica, agora ligada diretamente ao
artista e seu processo de construção das obras, que é o trabalho paciente,
exigente e hercúleo de colocar estruturas frágeis em pé, quando sabemos que o
menor descuido em seu arranjo as pode levar à bancarrota. Àquilo que periga a
um fácil desmoronamento, por seu alto grau de dificuldade de execução, Ronald
Polito investe, contrariamente, uma obsessiva forma de controle sobre o
material, tornando-o um grupo de estruturas firmes, que se sustentam, mesmo que
sua aparência indique que facilmente podem estar prontas para desabar.
O fato de serem
produzidas (ou organizadas) à mão pelo artista empresta um sentido físico
bastante premente ao trabalho. Muito de nossa admiração por estas obras leva em
conta esse procedimento dificultoso de armar estruturas geométricas que
aparentam possuir ao mesmo tempo os elementos contrastantes da fragilidade e do
equilíbrio. A exigência de um controle físico e paciencioso sobre o material é uma
condição do procedimento do artista que nos faz pensar nas atividades meditativas
dos mestres zen.
Há mais o que se pensar
sobre os Grafites de Ronald Polito. Eles
ora são expressão de uma ideia de equilíbrio, ora transmitem a expansão de uma
força, quando pontiagudos grafites ameaçam uma explosão para fora; ora são desenhos
geométrico que se bastam a si mesmos enquanto figuras admiráveis. Esses
sentidos, se por vezes estão presentes de forma unida em algumas das obras, em
outras aparecem separadamente.
Há algumas referências
que podem ser chamadas para se buscar uma certa similaridade com a série Grafites. No entanto, a semelhança não
define propriamente a aproximação das poéticas. Pense-se no caso da obra Acessão V, de Eva Hesse, por exemplo,
onde a preocupação é com a modularidade minimalista.
Ou em algumas das
“Estruturas de vibração”, como Cubo de
Espaço Ambíguo, ou Volume suspenso,
de Jesús Soto; apesar de a forma geométrica chamar a atenção, o artista está mais
preocupado com a questão de como a forma e a cor podem produzir movimento, ou
seja, criar uma poética do cinético.
No caso de Ronald
Polito, as preocupações são de outra natureza. Sua poética trata precisamente
dessa relação de força que se estabelece entre o material frágil e a possível
criação de estruturas sólidas, cujo aspecto construtivista se ressalta. A
delicadeza do material, extremamente frágil, se anula quando configurada em uma
imagem acabada e bem construída. Fica a impressão de uma força que se organiza
a partir da estrutura regular e bastante sólida, apesar da sabermos da natureza
frágil do suporte dessa estrutura.
Podemos pensar, se
quisermos ir um pouco mais além, dizendo que a poética de Ronald Polito se
funda na ideia da fragilidade. Embora a estrutura exista, é como uma ilusão de
permanência, de sustentabilidade, de força, já que a possibilidade do desmonte
da obra é real. Qualquer contato com os grafites, por mais cuidadoso que se
seja, pode ser fatal para a obra. Não há como negar essa característica que é
imposta aos Grafites. Em uma
exposição delas, o artista não poderia prescindir de um aviso aos espectadores:
“Cuidado, é frágil”.
Ronald Polito, esse
deslumbrante enfeitiçador, mantém suspensa sob nosso olhar a metafórica ideia
de que a vida... cuidado, é frágil!
Quantas vezes esses
trabalhos desmoronaram no momento de sua construção, só o artista pode nos
dizer. Mas não devem ter sido poucas. A possibilidade do alicerce ruir deve ter
sido constante e ameaçadora. Por isso, o esforço físico, invisível agora que a
obra está pronta, deve ter sido gigantesco. Concentração, cuidado, trabalho
árduo: sem isso não se constrói a fragilidade como força. (Nesse caso
estaríamos dentro da tradição de artistas que vai de Baudelaire, Poe e Valéry
até os Construtivistas, que acreditavam que o que é belo e nobre é o resultado
da razão e do cálculo).
Grafite 0,7 mm, 6 × 6 × 0,3 cm, 2015
A série de Grafites de Ronald Polito brinca com a
possibilidade aterradora de que aquilo que parece permanente, de um momento
para o outro, pode desmoronar. Podemos pensar, se quisermos teorizar, que os Grafites sejam metáforas para a ideia de
uma “contemporaneidade líquida”, ou mesmo do anúncio de Baudelaire para a arte
da modernidade, de que “o belo é constituído por um elemento eterno,
invariável, e de um elemento relativo, circunstancial”. Essa dualidade da arte moderna,
que passa a existir como autoconsciência de todo artista, seria também a
própria dualidade do homem, um ser que se constitui e que ao mesmo tempo se
dirige para a derrocada.
Em uma entrevista onde
comenta a relação entre sua produção poética e plástica (nota 1), Ronald Polito
nos fala de seu interesse em estruturar seus trabalhos a partir do uso de
poucos elementos, criando uma espécie de “economia radical” dos mesmos,
buscando uma “clareza e simplicidade de apresentação”. Sabendo ou não, o
artista está num diálogo direto com um dos escritos mais importantes de Maliévitch
sobre o Suprematismo. Também, na mesma entrevista, chama a atenção para a
natureza diagramática dos objetos, onde a sugestão é mais importante que a
realização “realista” das figuras. E o mais importante: como o próprio material
usado é significativo ao dar o sentido final ao objeto criado.
A vontade de fazer da
obra de arte um objeto autônomo está na base da ideia de se criar um objeto que
tenha consistência pela força interna de sua conformação. A indestrutível
arquitetura da forma é que garante a possibilidade, inclusive, como oposição,
de se pensar sobre sua fragilidade.
Não podemos esquecer, no
caso da criação dos Grafites, de
Ronald Polito, que a finalização da obra é resultado de um meticuloso trabalho
artesanal que implica uma exigência do material sobre o artista e da tentativa
do criador em submeter esse material ao seu absoluto controle.
Fazendo uma analogia,
podemos pensar em James Joyce perdendo toda uma noite em claro com o único
objetivo de descobrir uma palavra para terminar seu livro. A obsessão joyciana,
que coloca o escritor numa posição de severa atenção em relação à “disposição da palavra na frase”, frase que
ele busca domesticar a todo custo para não fazer ruir a arquitetura de seu
romance, nos remete ao trabalho árduo de Ronald Polito em sua meticulosa artesania
com os fragilíssimos grafites, prontos a se quebrar sob qualquer descuido e
levar ao fracasso toda uma estrutura à beira de ser acabada.
Grafite 0,7 mm e fios de cabelo, 7 × 1 × 0,9 cm, 2014
Esse cosmos particular
que são os Grafites substitui a ideia
de expressão pela de criação, já que é fruto do trabalho de um artista mais preocupado
com a linguagem que com a representação do real. Isso torna o ato de criação
uma poética da linguagem, materializada naquilo que Schöenberg e Stravinski
dirão da arte, que ela deve ser “o estabelecimento de uma ordem nas coisas” e
que “é justamente essa ordem que, uma vez conseguida, produz em nós uma emoção
que nada tem em comum com nossas sensações correntes e com nossas impressões da
vida cotidiana”.
Nota 1: Trecho da entrevista a Fabio
Weintraub: “para além desses sentidos e outros afins, a percepção do paralelismo, da convergência entre imagem e textos pode ser de outra natureza, que me interessa também e mais, revelando que ambos se estruturam a partir de bem poucos elementos, que há uma economia radical, quase que de guerra, com as palavras e os materiais plásticos. Que em ambos se buscou alguma clareza ou simplicidade de apresentação. Também salta aos olhos o que há de equívoco e paroxístico em sua composição: pelo material usado, pelas proporções. E com sua natureza também de diagrama, que apenas a sugere, é homóloga a diversas passagens dos poemas como quase esquemas com sentidos ambíguos ou diversos. Também não é alheia a ideia de que, finalizando o trabalho, sugira que alguma coisa brotou do próprio material que serviu para a escrita dos poemas. Depois das palavras com o lápis num papel, sua materialização em coisas. Depois das interpretações poderia vir a transformação, o pôr as mãos à obra. E, aproximando a escultura mais ainda de alguns dos poemas, me parece evidente a intimidade que ela sugere, o pequeno mundo dos afetos, bem como sua delicadeza, que foi buscada em alguns deles. Se ela não tem paredes de proteção, tem telhado e sombra em que se pode descansar, no que se inclui parte móvel de seu espaço exterior. Penso que esses elementos mais internos sugerem melhor, em sua natureza formal, o rendimento que essa escultura possa ter em relação ao livro, são conexões mais gerais e estruturais com os sentidos imaginados para o conjunto dos poemas”.
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Abaixo, capa da plaquete Grafites, edição da Espectro Editorial, 2017, onde inicialmente foi publicado o texto acima.
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