SILVIANO
SANTIAGO:
ENTREVISTA HISTÓRICA
Jardel, Mário Alex, Jaílson e Silviano Santiago
Grande Hotel, Ouro Preto- 1992
A entrevista com
o escritor, professor e crítico literário Silviano Santiago, no Grande Hotel de
Ouro Preto, no dia 29 de abril de 1992, foi realizada para o Jornal Reviraarte (Jornal de Arte e Educação do
Instituto de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal de Ouro Preto,
s/n).
A entrevista
aconteceu no momento da participação de Silviano Santiago como palestrante no
seminário “Minas e as Utopias”. Sua palestra foi publicada em SANTIAGO,
Silviano. “Utopia e democracia”. In: ANDRÉS, Aparecida (Org.). Utopias: sentidos Minas margens. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 1993.
As
perguntas foram formuladas em conjunto, sendo que uma ou outra intervenção não
haviam sido programadas, decorrendo do “calor” da entrevista.
Silviano
Santiago, o que o levou, no seu romance Em
Liberdade, a recuperar a figura de Graciliano Ramos, que é um
escritor-preso-político?
SILVIANO SANTIAGO: Para falar a verdade, o
romance está escrito quase que de trás para frente. A minha primeira ideia foi
a de fazer um trabalho sobre Cláudio Manuel da Costa. E a ideia de fazer um
trabalho sobre Cláudio Manuel da Costa adveio do fato de eu não conseguir
trabalhar muito bem os problemas da realidade imediata sem uma mediação
simbólica ou sem uma mediação metafórica.
Quer dizer, eu comecei a
bolar este romance por volta de 1975 quando houve o célebre caso [Vladimir]
Herzog, como vocês sabem, ele foi dado como suicida, mas na realidade ele foi
assassinado pelas forças de repressão. E as leituras que eu tinha em torno da
Inconfidência Mineira, e em particular de um primeiro Auto da Devassa, que foi feito às pressas pelos juízes do Rio de
Janeiro, eu tinha descoberto nesses textos que havia uma história, por assim
dizer, mal contada. E essa história mal contada ela acaba sendo bem contada nos
Autos da Devassa, nos clássicos.
Então, o que eu percebia nessa leitura é que tudo indicava que Claudio Manuel
da Costa não era suicida, que ele tinha sido assassinado e dado como suicida.
Então, era a maneira que eu tinha encontrado para falar do caso Herzog e ao
mesmo tempo dando uma dimensão simbólica a ele, porque o que eu queria fazer
era uma grande reflexão sobre os sistemas totalitários ou ditatoriais no
Brasil. Então, eu percebi que estava unindo Herzog a Cláudio Manuel da Costa,
quer dizer, Herzog, de maneira simbólica, e Cláudio Manuel da Costa através de
uma leitura que eu acho que na época era inédita e acho que ainda continua um
pouco inédita da situação de Cláudio Manuel da Costa em Vila Rica. E, de
repente, me veio a ideia de que estava faltando um outro período dos anos 30,
quer dizer, a Ditadura Vargas.
Então, nesse sentido, me veio
a figura de Graciliano Ramos, quer dizer, Graciliano Ramos surgiu no final, ele
não surge no início. E quando me veio a ideia de Graciliano Ramos, eu consegui
atar três períodos históricos bem nítidos e nestes períodos históricos nítidos
também três figuras de intelectuais bastante nítidas.
Aí então foi um pouco de
loucura, porque no caso de Claudio Manuel da Costa eu pensava criar um romance
a partir de um manuscrito que eu tinha descoberto vindo fazer uma pesquisa na Casa
dos Contos e esse manuscrito era o manuscrito de Cláudio Manuel da Costa. Falso
obviamente, porque ele nunca deixou nenhum manuscrito. Então, a ideia do
manuscrito e de um manuscrito falso, ele não é de Graciliano Ramos, é de
Cláudio Manuel da Costa, mas ao ler as partes finais, senão me engano agora,
não são as partes finais, ao ler a introdução do Ricardo Ramos, se não me
engano, ele disse que Graciliano Ramos não chegou a terminar Memórias do Cárcere, se não me engano,
vai ser difícil para eu lembrar todos os detalhes, isso eu escrevi em 1981. Mas
eu lembro que dava sempre uma impressão de que o livro o Memórias do Cárcere... [não captado pelo gravador] transpõe a porta
da prisão. Então, eu pensei assim: se eu quiser ser falso e inteiramente falso
eu tenho também de escrever uma coisa que ele tinha dificuldade em pensar, que
ele não queria pensar possivelmente que é exatamente o que acontece com você
quando você transpõe as portas da prisão, quando você está em liberdade e você
é obrigado a reconstruir a sua vida a partir do zero, que é então um pouco a
experiência do livro.
Então, eu joguei para a
segunda parte a história do Cláudio Manuel da Costa. E fica de maneira
extremamente simbólica o caso Herzog, porque o discurso, só para lhe dar um
exemplo, há diversos exemplos, o discurso, por exemplo, do padre ao enterrar o
Cláudio Manuel da Costa é a fala do cardeal Arns ao enterrar Herzog. Aí eu
comecei a fazer um jogo assim de textos para que as pessoas pudessem
eventualmente ver uma certa circularidade e sobretudo o que o livro era na
época: é um panorama das repressões e os regimes ditatoriais no Brasil.
No seu
livro Em Liberdade, há uma epígrafe
de Otto Maria Carpeaux sobre Graciliano Ramos: “Vou construir o meu Graciliano
Ramos”. Você coloca...
SILVIANO SANTIAGO: É uma epígrafe verdadeira.
[risos]
Eu
queria que você falasse sobre o que é ficção e o que é realidade dentro dessa
obra, numa perspectiva bem ampla. E outra coisa: qual a importância de se
recuperar Graciliano Ramos hoje [1992], sabendo desde já que esse ano se
comemora o seu centenário?
SILVIANO SANTIAGO: Você tem duas perguntas.
Então vamos à primeira. A primeira é o seguinte: é que a minha tentativa nessa
época era de escrever o que eu chamei de uma prosa-limite. O que é uma
prosa-limite?
Uma prosa limite a meu ver
seria uma tentativa de fazer um texto que aparentemente era autobiográfico, mas
que no fundo era biográfico. Quer dizer, em outras palavras, eu fingia o estilo
de Graciliano Ramos porque eu acreditava que fingindo o estilo de Graciliano eu
me aproximava muito mais de uma biografia dele do que se eu mantivesse um
discurso impessoal, objetivo, para poder descrever aquilo que estava
acontecendo. É algo semelhante ao que se passa na história. De certa forma,
quando você busca a testemunha, ou quando você está fazendo história, você de
certa maneira parafraseia o documento, ou se aproxima do documento, ou absorve
até mesmo o estilo do documento e assim por diante. Então esse foi o primeiro
aspecto.
O segundo aspecto importante
para mim é que eu tinha descoberto em virtude de também ser crítico literário,
que uma das coisas mais interessantes no texto modernista é que é muito difícil
definir até onde ele é ficção e até onde ele é autobiografia. O caso célebre
que eu dou sempre como exemplo, é o caso de José Lins do Rego.
Ele escreveu Menino do Engenho na década de 30, e
escreveu pouco antes de falecer, Meus
Verdes Anos, que é uma autobiografia. Se você ler Meus Verdes Anos e ler Menino
de Engenho você vai ver que é praticamente o mesmo livro. Então, porque
José Lins do Rego teve necessidade de escrever no final da vida Meus Verdes Anos? É exatamente para
dizer que na obra dele a fronteira entre a ficção e a memória não era uma
fronteira muito forte, era uma fronteira extremamente delicada e talvez até
mesmo com over laps tanto de um lado
quanto do outro. A mesma coisa, se você quiser, posso dar inúmeros exemplos, no
caso de Oswald de Andrade, se você ler Miramar
e ler Sob as Ordens da Mamãe você vai
ver que são praticamente livros idênticos. Sob
as Ordens da Mamãe – Memória. Miramar
– romance. Há quando muito uma diferença de estilo. Mas os fatos narrados, a
perspectiva é mais ou menos a mesma. Então isso era outra coisa que eu queria
levar até às últimas consequências: o fato de que entre ficção e memória as
fronteiras são muito fluídas.
E a terceira ideia, o
terceiro ponto dessa prosa-limite, ela adviria do fato de que talvez seja uma
das primeiras tentativas, ou talvez a primeira tentativa de uma literatura
pós-moderna no Brasil.
Então, o que eu tentei fazer
é: em lugar de usar o procedimento clássico dos modernistas, que era paródia,
onde você sempre tem uma distância irônica, escárnio em relação a outro texto,
quer dizer, eu tratei o texto de Graciliano com um certo carinho, porque é um
pastiche, é uma admiração, ao mesmo tempo em que ele me informa eu não gostaria
de ser tão informado por ele. Quer dizer, é isso que eu chamaria de uma atitude
pós-moderna de minha parte, quer dizer, eu não posso dizer que eu vivo a mesma
condição que viveram os modernistas. Porque os modernistas viveram com uma
tradição que deixaram muito a desejar – daí a paródia “minha terra tem
palmeiras”, “minha terra tem palmares”. A tradição, para os modernistas, quer
dizer, a tradição de uma literatura brasileira para os modernistas era muito
pobre, era o Romantismo, era o Parnasianismo, era o Simbolismo, que não eram
grandes produções literárias.
Então, eles podiam rir,
podiam se divertir em cima daquela tradição. Agora para mim é impossível,
porque eu tenho uma grande admiração por Drummond, eu tenho uma grande
admiração por Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Mário de Andrade, Oswald de
Andrade, e assim sucessivamente. Então foi a maneira como eu consegui tratar de
uma maneira decente isso que me informa me informa mas contra o qual eu queria
me rebelar de certa maneira dando uma visão de Graciliano Ramos. Daí meu “vou
construir meu Graciliano Ramos”, que talvez seja mais idealizada do que a visão
que ele próprio dava de si mesmo. Entende? Por quê? Porque eu achava que a vida
de Graciliano Ramos tinha situações tão extraordinárias, aqui vai um pouco de
petulância de minha parte, mas você sabe, se você é escritor você tem de ser
petulante. [Risos] Eu achava que tinha determinados momentos da vida dele que
ele não soube agarrar com a riqueza que esses momentos requeriam, o que é, por
exemplo, a questão da liberdade.
Eu acho que tem coisas nele
extraordinárias nesse sentido, mas ele nunca falou sobre isso. Ora, era uma
situação desagradabilíssima, ele tinha quatro filhos, maior miséria. Esses
dados todos são verdadeiros. Eu fiz muita pesquisa para escrever o livro, é
óbvio. Mas, agora, a pesquisa é assim: ele sai da prisão em tal hora, em tal
dia ele vai para a casa de José Lins do Rego, etc., etc. Agora, o que ele
conversou com José Lins não tem maneira de eu saber. Aí é: todo construção. É
aí que eu vou levantando questões que a meu ver extraordinárias e que eu tive a
petulância de tentar imaginar para ele, não imaginar para ele, de tentar
descrevê-las, eu acho que imaginar para ele está incorreto, de tentar escrevê-las
como ele as teria escrito. Aí está a petulância, aí está o exagero.
Então, é nesse sentido que há
uma construção de Graciliano Ramos que não é minha, que não é dele. E essa
construção de Graciliano Ramos ela foi possível. E aí eu remato esse terceiro
ponto, porque esse livro é muito importante na minha vida pessoal, inclusive no
meu trato com meus sentimentos, no trato até com meu estar no mundo. Porque eu
tinha muita vergonha de ser escritor quando estava num ambiente de professores
e tinha muita vergonha de ser professor quando estava num ambiente de
escritores. E aí eu descobri que tinha uma originalidade que nenhum outro
escritor brasileiro tinha que era de ser também crítico literário e que devia
colocar isso a serviço de minha criação. Quer dizer, se os outros não eram
críticos o problema era deles não era meu. Então, era o primeiro momento em que
eu não tenho vergonha de sendo escritor ser crítico literário e de sendo
romancista ou vice-versa, sendo crítico não ter vergonha de ser escritor. E é um
livro que só poderia ter sido escrito por um crítico, porque a maneira como eu
alimento os personagens não é aleatória, tem um lado obviamente da minha
imaginação, etc., mas não é aleatória. José Lins é totalmente alimentado pela
leitura que eu tenho de José Lins. Existe, por exemplo, um determinado momento
em que existe uma crítica de Rubem Braga a Jorge Amado. Essa crítica ela existe
e foi publicada numa revista, em que eu não me lembro do nome agora, em 1937. O
que eu fiz foi simplesmente tornar diálogo as ideias de Jorge Amado.
[não captado pelo gravador]
Não. Eu peguei umas folhas
enormes e quadriculei essas folhas com as datas. Eu sabia que ele tinha saído
da prisão no dia 11, entende, mas eu não sabia, eu sabia que era na terça-feira
ou quarta, eu tive que ir então, no calendário do ano. Então eu coloquei
segunda, terça, quarta etc. Eu fiz uma folhinha, quadriculei a folha e comecei
a ler jornais e revistas. Então eu alimentei o livro. O livro não é pura
imaginação, quer dizer, se eu falo em um determinado momento que a mulher de
José Lins e a mulher de Graciliano foram ver o filme La Garçon, é porque o filme La
Garçon estava sendo exibido naquele dia no Rio de Janeiro e havia uma
crítica no jornal, eu saquei qual era a crítica, etc. então eu alimentei a
conversa um pouco através disso. Então, dessa forma, depois desses quadrados
todos montados eu procurei ver quais eram os quadrados que tinham rentabilidade
dramática. Porque tinha dias em que não havia nada. Aí eu falei: não vou por
nada nesse dia. Entende? Aí outros dias tinham coisas interessantes aí eu
punha. Ele vai a São Paulo: eu olhei o que aconteceu quando ele ia a São Paulo.
Aí aconteceram casos extraordinários. Que é o primeiro dia da pensão. Aí na
segunda parte aconteceu uma coisa extraordinária. Eu anotava também se fazia
sol ou se fazia chuva. Então, de repente nesse dia chovia, e aí me veio a
ideia, que depois ficou muito bonita, o livro. Mas foi inconsciente, de ele
entrar no quarto e começar a fechar as janelas do quarto da pensão porque
chovia, e na medida em que ele vai fechando as janelas ele reconstrói
simbolicamente a prisão para ele. Então, o livro é todo feito dessa maneira.
Tem um lado aleatório, imaginação, etc., mas tem um lado de pesquisa, por
exemplo, algumas piadas que existem no livro, por exemplo, essa piada de Oswald
de Andrade sobre o Duque de Windsor, se não me engano, que ele trocou um bom
trono por uma matrona, é uma nota aí e tal, isso era um piada da revista O Careta ou Fom-Fom, eu não vou lembrar agora. Eu peguei piadas, eu peguei
coisas e fui articulando essas coisas com os dados, pesquisando dados que eu
tinha a respeito de Graciliano Ramos, porque eu fiz questão de não entrevistar
ninguém, porque eu achei eticamente reprovável, então não entrevistei nem filho
nem filha, tudo que está aí foi coisas que eu descobri nas minhas leituras ou
de jornal ou de revistas ou de livros ou o que seja. Quer dizer, é tudo então
um trabalho em cima de textos, não tem nenhum depoimento pessoal, ninguém pode
dizer: Ah! Você abusou da minha confiança, você veio aqui em casa conversar
comigo e de repente você usou isso que eu te digo tão confidencial. Nada disso,
quer dizer, tudo é a partir de documentos, agora, obviamente, os diálogos, eu
imaginava que tipo de situação dramática estava sendo criada. Por exemplo, você
está hospedado numa casa que não é sua, etc., que diálogo pode haver entre as
duas mulheres, ou que diálogo pode haver entre os dois romancistas e coisas
desse gênero.
Jean-Paul
Sartre no livro O que é literatura
exime o poeta de ser engajado politicamente mas o romancista não. Você acha que
o escritor tem de ser engajado? Que a obra dele tenha que refletir a realidade
social?
SILVIANO SANTIAGO: Olha, o problema é o
seguinte: o que me incomoda quando se usa a palavra engajada, e quando se usa a
palavra com relação a um determinado Sartre. O que me incomoda, é que esse
engajamento antes de ser uma reflexão do escritor sobre a sociedade, sobre a História
ou sobre o tempo em que ele vivia, era um engajamento pragmático, quer dizer, é
isso que me incomoda.
Partidário?
SILVIANO SANTIAGO: É. Partidário, programático,
onde até mesmo se pode adivinhar um pouco os caminhos que aquela ficção ou que
aquele poema pode tomar. Se você ler Rosa
do Povo de [Carlos] Drummond que é um livro a meu ver que está envelhecendo
muito porque é um livro previsível, você já obviamente depois de uma certa
malandragem, você tendo lido um pouco de literatura da época, etc., você começa
a ver que as coisas começam a ser um pouco previsíveis, que de repente um poema
de Drummond que aparentemente não era nada engajado, aparentemente diz muito
mais do que um poema que é abertamente engajado. Então eu acho que esta questão
precisa ser tratada com certo carinho. Ela não pode ser tratada, em outras
palavras, de uma maneira grosseira. Então, antes de qualquer coisa eu diria
isso: engajado sim, comprometido com o seu tempo sim, comprometido com as
ideias libertárias sim, e assim por diante. Mas, vamos ver isso com cuidado.
Por quê? Porque eu acho que o
compromisso do escritor, pelo menos do grande escritor, eu acho que eu não sou
um grande escritor, porque eu não consigo chegar a este ponto, eu acho que o
compromisso do escritor é com a liberdade absoluta. É isso que torna um livro
uma obra de arte. Eu acho que eu não consigo chegar a essa liberdade absoluta.
Exatamente porque os textos que nós escrevemos nos últimos trinta anos são
textos por demais solicitados pelos fatos e pelos acontecimentos. Então, isso
de certa maneira que é ao mesmo tempo bom, ao mesmo tempo positivo, porque você
está respondendo, você está de certa maneira combatendo, você está tornando a
literatura útil, socialmente, politicamente, etc. Por outro lado retira da
literatura esta capacidade que ela tem de transcender o seu próprio tempo. Quer
dizer, então, a imagem que me ocorre, e a melhor imagem que eu encontrei para
explicar o que eu estou querendo falar para vocês é uma Faca só lâmina de João Cabral de Mello Neto.
Quando você pensa sobre o que
é uma faca só lâmina é uma faca sem o cabo. Então, quando você conseguir essa
faca só lâmina, ela corta, agora você é que vai ter que construir o cabo dela.
Ela não vai te dar o cabo e se você não construir o cabo dela você vai se
machucar, se ferir, ela não vai ter utilidade para você, ela não vai ter função
para você. Então, é isso que eu entendo por engajado, é a capacidade que terá o
leitor ou a capacidade que terá aquela obra de dar ao leitor a possibilidade de
um cabo para que aquela lâmina seja eficaz, ela seja eficiente, etc. Mas eu dar
o cabo para você, em outras palavras, eu fazer obra de proselitismo político,
isso não é engajamento para mim. Eu acho que isso é uma produção intelectual
que pode ter o seu valor e tem o seu valor, por exemplo, em todas as questões
das minorias, por exemplo as minorias sexuais ou minorias étnicas. Quer dizer,
você tem um tipo de produção intelectual que é muito útil e que é muito
importante. Você ter uma literatura homossexual, você ter uma literatura de
mulheres que é extremamente importante a meu ver. Agora, antes de chamar isso
de literatura, eu chamaria de uma produção intelectual muito importante. Eu não
quero também que todo mundo escreva literatura. As formas de produção
intelectual são variadas, são múltiplas, são infinitas. Você pode, de repente,
ter uma produção intelectual mais engajada nesse sentido sartreano e que pode
ser importante, porque a gente sabe que a homossexualidade, a questão feminina,
a questão do negro ou a questão do índio elas tem barreiras enormes numa
sociedade como a brasileira.
Então, é bom que haja também
algumas pessoas que tenham uma produção intelectual voltada para isso, com
cabo. Agora, isso para mim não é literatura. Literatura para mim é este outro
exercício, da liberdade absoluta, de você poder fazer o que você bem entende,
de você poder construir a perfeição. Eu gosto muito de uma passagem de uma peça
de [Samuel] Beckett, sempre me encantou, que é um alfaiate que acaba de fazer
as calças assim [Silviano ergue as mão como se estivesse segurando uma calça no
ar] e diz: “veja que perfeição”, e depois manda o espectador olhar para o mundo
e aí ele diz: “veja que caos”. Entende? É essa perfeição que Deus não conseguiu
criando o mundo, é essa perfeição que torna a obra de arte extraordinária.
Agora, essa perfeição você só pode conseguir com liberdade absoluta. Caso
contrário a coisa fica um pouco manca, pode ser mais eficaz no seu tempo, pode
ser mais popular no seu tempo mas ela não tem isso que exatamente a gente não
sabe explicar muito bem, não é, que é o que torna aquele texto transcendente e
a razão pela qual eu ainda continuo lendo Shakespeare, a razão pela qual nós
continuamos a ler Machado de Assis e ele ser um autor tão atual quanto o mais
atual dos autores que você achar que é atual. É isso que eu entendo por
engajamento. Essa capacidade de falar sobre o homem em sociedade, sobre o homem
em convívio, sobre a condição humana em suma, da maneira mais rica, mais
complexa, mas energética possível. É isso que eu acho importante: que a obra de
arte transmite uma energia inesgotável. É como se fosse uma tomada de luz onde
houvesse sempre luz. Qualquer pessoa que enfiasse qualquer aparelho ali teria
sempre força. É o que Nietzsche chama de força. É essa força textual que faz
com que um texto seja uma obra prima e não simplesmente um outro texto ou mais
um texto.
No
caderno Ideias/Ensaios de 1992 do Jornal do Brasil o escritor e crítico
Ferreira Gullar discute a questão da arte, do novo na arte. Resumidamente, ele
colocou que o novo é passageiro, é uma coisa efêmera de certa forma. Por
exemplo, essa coisa de arte que se diz pós-moderna. Ele pega, por exemplo, a Eneida de Virgílio: ela está no tempo.
Então é o velho-novo e vice-versa. A minha pergunta, já que você disse que vê
seu livro Em Liberdade como uma forma
de arte pós-moderna, é a seguinte: o que é a pós-modernidade para você?
SILVIANO SANTIAGO: Eu não li o texto do
[Ferreira] Gullar porque eu estava viajando. Então eu tenho que acreditar no
que você disse. Vou tentar responder por partes. Eu estou respondendo a sua
pergunta e não a do [Ferreira] Gullar. Da mesma maneira que eu disse que havia
necessidade de um tratamento não grosseiro da questão do engajamento eu acho
também que não se pode tratar de maneira grosseira o novo. E o [Ferreira]
Gullar ultimamente anda tratando de maneira grosseira a questão do novo. Talvez
até mesmo por questões político-literárias. Uma certa disputa de poder
literário com os irmãos Campos [Haroldo de Campos e Augusto de Campos] a respeito
do concretismo e o neoconcretismo etc. Eu não quero entrar por aí. Eu acho que
isso é uma maneira grosseira de tratar o problema. A questão do novo, ela se
complicou a meu ver na pós-modernidade. Aqui eu caminho mais para sua pergunta
do que propriamente para o que o Gullar disse, porque eu li o artigo, e ficaria
meio ridículo.
A questão da pós-modernidade
se complicou um pouco na medida em que, eu tentei explicar para vocês, porque
há um tratamento diferente da tradição. É esse que é o dado importante a meu
ver na pós-modernidade. É que a tradição ela era nitidamente abandonada, ela
era nitidamente desprezada. Por isso que na crítica inglesa se chamou
auto-modernismo, que nós chamamos vanguarda ou modernismo etc., ele era
altamente desprezado. Então, você vê que este desprezo enorme pela tradição,
quer dizer, você teria que sempre fazer o novo pelo novo. Não há dúvida nenhuma
de que esse fazer o novo pelo novo possa cair numa determinada ideologia do
novo pelo novo. Que você acredita que simplesmente porque você está... sei
lá... em lugar de escrever poemas me folha de papel está escrevendo poemas no
muro que aquele poema é bom. Eu acho que você tem o direito de escrever poemas
no muro. Agora, dizer que ele é bom só porque você o escreveu no muro... aí
começa o equívoco. Então, é preciso ver essa questão com uma certa delicadeza.
Então o que é importante a meu ver, e aí é uma questão do nosso tempo e que
muitos críticos estão evitando tocar e que é um problema capital é que na
medida em que a produção literária hoje é veiculada pelo livro, hoje e sempre,
desde Gutemberg, mais e mais pelo livro e o livro fazendo parte da indústria
cultural e essas indústrias dando ao livro a qualidade também de mercadoria.
Então, nesse sentido nós temos o livro numa sociedade de consumo. Essa é que é
uma questão complicada a meu ver: o que é o livro na sociedade de consumo?
Então, você vai ver de um
lado um determinado balizamento que é o best-seller. O best-seller é o
compromisso do livro e do escritor com a sociedade de consumo. Então, você tem
o caso do Paulo Coelho que é o caso bastante óbvio, você tem o caso de inúmeros
escritores franceses e norte-americanos, porque essa situação já estava lá
muito antes de estar aqui para nós. Então, você tem esse caso. E no outro lado,
você tem a possibilidade, e é isso que é a grande dificuldade hoje de você
fazer uma obra-prima, onde você teria liberdade absoluta. Esses dois
balizamentos é que a meu ver são o grande desafio para o escritor brasileiro
contemporâneo. Não interessa se poeta, se romancista, não interessa se nem
mesmo historiador. E o grande dilema a meu ver é esse: onde você se situa dentro
desse arco que é enorme e extremamente complexo. Se você quiser ter uma
liberdade total, tudo indica que você terá poucos leitores. E na medida em que
você terá pouquíssimo leitores você não terá editores e tudo indica que você
viverá a situação de um Sousândrade, por exemplo, de ser descoberto depois de
morto e de ter uma reputação e de ser reconhecido até como figura humana muito
depois da sua vida. Você vai ter isso e ao mesmo tempo, você terá uma coisa que
a gente detectava no Brasil mas a gente nunca tratou muito bem, que são os
Coelho Neto da vida, os Humberto de Campos, que foram pessoas que tiveram
sucesso extraordinário no início do século XX e que hoje [1992] ninguém se
interessa pelas obras deles. Alberto Oliveira, o príncipe dos poetas, saía
dando concertos pelo Brasil inteiro, não sei se sabiam, nos cinemas, ele lia
poesias e cobrava, cobrava na leitura de poesia. Cobrava-se naquela época por
conferência e cobrava-se caríssimo, quer dizer, Coelho Neto ia e fazia uma
conferência no cinema da cidade e se pagava ingresso como se pagava para
assistir um filme. Quer dizer, ele fazia dinheiro com aquilo. Esse é o problema
a meu ver que está aqui, junto da gente e a gente vai ter de começar a
resolvê-lo. Agora, não existe uma fórmula para isso. Você tem Rubem Fonseca,
por exemplo, para dar um exemplo mais significativo dessa situação, porque ele
ao mesmo tempo está vendendo muito bem e ao mesmo tempo ele tem uma boa
qualidade. Você tem o Rubem Fonseca que tem altos e baixos, por quê? Porque ele
está entre esses dois vetores. Ele não sabe o que fazer. Ele quer vender e quer
se profissionalizar. Ele acha que é uma luta importante hoje no Brasil de que o
escritor se torne um profissional. Mas ao mesmo tempo ele quer ser um grande
escritor. Então, ele fica nesse choque, uma briga interna entre uma coisa e
outra. Como é que entra a questão do novo aí? Este é que é o problema. Quer
dizer, você já não pode fazer uma obra do novo pelo novo. Porque o novo pelo
novo trás uma certa radicalidade e aí é onde eu acho que a crítica do novo pelo
novo peca um pouco se ela for grosseira. Porque ela trás em si uma certa
radicalidade que vai contra os tempos. Que até pode desmanchar os tempos de uma
maneira mais precisa, de uma maneira mais aguda, de uma maneira mais nítida,
entende? Agora, isso terá o seu custo evidentemente. E o custo é que essa obra
possivelmente terá leitores, quer dizer, até nós descobrimos, que é outro dão
que eu acho importante trazer nessa nossa conversa, nós descobrimos uma coisa,
que o autor modernista pouco se preocupou com seu leitor. Eu tentei fazer um
levantamento de Macunaíma. A primeira
edição, se não me engano, é de 1927, com 800 exemplares. A segunda edição de Macunaíma - olha se um autor pode viver
dessa forma! - é 10 anos ou 12 anos depois, com apenas dois mil exemplares. E a
terceira edição, que é de 1943, 3 mil exemplares. Quer dizer, num espaço de
praticamente 20 anos apenas três mil livros dessa obra prima circularam no
Brasil. O que não é nada. Agora, no entanto, Mário de Andrade era legitimado
como um grande romancista. Por quê? Porque ele era legitimado pelos seus pares.
Essa é também um problema que a gente ainda não enfrentou. Quais as formas de
legitimidade da qualidade hoje? A legitimidade para os modernistas eu sei como
ela foi. O caso do [Carlos] Drummond é fantástico! Alguma Poesia sai em mil exemplares, primeiro livro dele. O segundo
livro dele Brejo das Almas, 500
exemplares. O terceiro livro dele Sentimento
do Mundo, que é quando ele começa a ter reputação de bom poeta, 250
exemplares. Quer dizer, no lugar do Drummond se tornar um poeta mais e mais
conhecido, mais e mais forte e a vendagem ser maior pelo contrário, decresce.
Então, quer dizer, era um processo de legitimação através dessa relação com os
pares, pela crítica literária dos pares. Que leu Sentimento do Mundo? E temos o caso do João Cabral de Mello Neto.
João Cabral só com Morte e Vida Severina
é que ele teve uma tiragem razoável. Ele imprimiu todos os seus primeiros
livros numa imprensa manual em Barcelona e eram 250 exemplares que ele mandava
para os amigos e, no entanto, já desde aquela época ele era considerado um dos
maiores poetas brasileiros. Então, essa é uma coisa que nós ainda não
descobrimos hoje: como é que vamos poder separar o joio do trigo? Como é que
vamos discernir o que é melhor do que é pior, o que é mais interessante do que
menos interessante. São questões em aberto. Hoje é que nós descobrimos qual foi
o jogo dos modernistas - eles próprios - acho que faziam isso sem saber.
No seu
caso, onde termina o crítico literário e onde entra o romancista? São duas
figuras diferentes? Elas se fundem?
SILVIANO SANTIAGO: Foi a resposta que eu dei
para o Em Liberdade. Eu resolvi o
impasse, o dilema que está tematizado no Em
Liberdade por um dado muito importante na minha obra que é um tratamento
constante através de estruturas esquizofrênicas isso é muito constante no que
eu faço. Você tem estruturas esquizofrênicas, mas espere, uma estrutura
esquizofrênica não quer dizer que você seja dois embora você seja dois. Mas é a
capacidade de você trabalhar isto. Essas estruturas esquizofrênicas é que dão
uma certa graça ao meu texto. Eu acho. Isso em Graciliano Ramos é o tempo todo
e toda hora você vê ele se dividindo. A própria frase às vezes se divide. É uma
coisa que eu aprendi com Graciliano Ramos, é uma coisa fascinante em
Graciliano, é que cada frase dele é nítida, você compreende, ela é precisa,
você entende. Na hora que você coloca duas frases dele juntas, uma seguida da
outra, a coisa começa a se confundir. E na hora que você tenta ler um
parágrafo, é brabo você dar sentido a esse parágrafo. Existe uma técnica dele,
é o que eu estou chamando de estruturas esquizofrênicas, é que as frases dele,
elas se combinam de maneira linear, existe como um abismo obriga a
interpretação. Este abismo exige a presença do leitor e ao mesmo tempo este
abismo é que cria isso que eu estou chamando de estruturas esquizofrênicas, em
que as frases, elas se combinam como uma composição que a gente faz para a
escola, onde uma frase tem que seguir a outra, senão a professora vem e diz:
olha, a continuidade não está boa, acrescente uma frase aqui para a
continuidade ficar melhor, quer dizer, então é um texto que é muito curioso,
porque nele cada frase é límpida e ao mesmo tempo é um texto descontinuo. É um
texto que você não lê com muita facilidade.
Tem
algumas partes que eu lembro. Na página 70 da segunda edição de Em Liberdade tem uma frase
existencialista que te faz refletir, depois você cai num outro texto
completamente poético. Você termina aqui dizendo: “[...] é procurando a vida
que se enfrenta a morte. Não é se resguardando da morte que vivemos”. Aí depois
tem o texto “Sem data”: “O amor não é o bastante”. Muda. Essa descontinuidade
que vai cair no texto da frente.
SILVIANO SANTIAGO: E aí é exatamente que eu
invento o “Sem data” porque senão você teria uma continuidade. Às vezes eu até
ponho uma nota: “Acredito que esse texto se encaixa aqui. Mas eu não tenho
certeza se ele se encaixaria aqui pois ele está sem data”. São coisas que eu
faço muito, às vezes é no nível da composição, às vezes é no nível da
estrutura. Aí eu acho que tudo é possível... mais isso é um traço muito comum.
Eu acho que advém do fato de eu ser muito curioso. Eu nunca me contentei em ser
uma coisa só. Eu acho que se eu quisesse eu poderia ser só professor, não vejo
nada de errado nisso, mas é que eu acho que é por um lado esquizofrenia, por
outro ansiedade, de querer chegar a algo mais, de querer ter alguma coisa mais.
E nesse sentido então eu fui obrigado a me diversificar, eu fui levado a me
diversificar e eu acho que essa diversificação é muito saudável. Para falar a
verdade, para mim mesmo, ela está ficando cada vez mais saudável. Quer dizer, o
texto que eu fiz hoje [Para o Seminário “Minas e as Utopias”] por exemplo, é um
texto que eu não teria feito há dez anos atrás. É um texto que eu nunca
misturaria um depoimento com reflexão teórica. Mas hoje, por exemplo, eu faço
isso com menos medo, por assim dizer, com menos receio. Eu acho que está aí uma
graça, uma ousadia, e tem de novo a escritura esquizofrênica. Você pega o
início do texto e é a memória que me dita.
Aí está
a petulância também!
SILVIANO SANTIAGO: Também [risos] depois de um
outro determinado momento a memória já não me diz mais nada porque ela já não
me ajuda a compreender hoje. Por quê? Porque houve uma tal explosão no mundo
que não adianta eu querer me valer da minha memória, eu vou ter de pensar agora
as coisas quase a partir do zero. A queda do Muro de Berlim, o esfacelamento da
União Soviética em pequenas nações, o retorno do nacionalismo. A gente
acreditava que a Alemanha nazista tinha acabado. Eu estou vindo da Alemanha
recentemente, e o preconceito racial está nas ruas. Você pega o Le Pen na
França com 15% de votos. Para a França não é brincadeira não gente, porque lá
tem muitos partidos: 15% é uma taxa muito alta. Então, essa coisa: você pensa
que de repente as coisas estão resolvidas, que o nazismo estava para sempre
enterrado, etc., e você vê a insurgência dessas coisas todas no mesmo instante.
Foi o que eu tentei apreender hoje. A solução mais fácil a gente já sabe: é
começar uma nova ditadura. Começa a haver caos, começa a haver confusão, etc.
mas a minha proposta é exatamente de uma democracia em que a gente está
trabalhando com categorias muito precárias, contingências. Mas a gente não
trabalha dessa maneira, a gente está abrindo um espaço para o retorno de uma
ditadura. Então é esse lance que eu acho hoje muito importante: é que a memória
ajuda a gente até certo ponto. A tradição ajuda a gente até certo ponto. Eu
também não vou negar a tradição. Mas ela ajuda até certo ponto. Mas a partir de
um determinado ponto tem que ser a construção do novo. Agora essa construção do
novo ela é complicada hoje. Ela não se dá da mesma maneira como se dava quando
havia os manifestos de vanguarda, ou quando mesmo havia o Manifesto da Poesia Concreta, que você tinha uma determinada
certeza. Eu comecei também escrevendo poesia também, em 1958-60, eu tinha lido
o manifesto, o plano piloto da poesia concreta e aquilo me dava uma certa
segurança, uma certeza de que se eu seguisse aquilo eu estaria fazendo uma boa
poesia. Assim como eu acredito que os dadaístas seguindo mais ou menos os
manifestos acreditavam estar fazendo boa poesia, os futuristas e assim
sucessivamente. Hoje não há possibilidade de você escrever um manifesto, não
há, você vai ter que inventar sua própria poética e aí é um outro dado a
respeito, a meu ver, da pós-modernidade, que é muito importante para mim, o
fato de eu ser crítico também, é que a obra literária tem que trazer sua
própria poética dentro de si. No caso da poesia concreta você tinha um poema e
tinha uma poética que era os manifestos etc. Agora nesse livro aí [refere-se à Em Liberdade] você vai tendo uma
reflexão sobre literatura brasileira, sobre o escritor brasileiro, sobre o que
é literatura nordestina, sobre o que é Inconfidência Mineira, sobre o que é
escrever durante a Inconfidência Mineira e assim sucessivamente. Então, ela vai
criando sua própria poética. E em outro romance que eu escrevi Stella Manhattan, eu paro em um
determinado momento e faço um longo capítulo que se chama “O Narrador”. Aquela
história estava contada de maneira muito fácil, como quase que não tivesse
narrador. E aí eu escrevo quem é o narrador daquele livro, fecho e continuo a
escrever a historinha. Por quê? Porque eu tinha de refletir sobre aquilo que
estava fazendo. Porque aquilo podia se dado como um narrador onisciente, um
narrador impessoal. Eu estou comprometido com aquela obra então o narrador está
muito próximo de mim, tá muito mais próximo de mim do que da história que ele
está contanto.
[pergunta
não captada pelo gravador]
SILVIANO SANTIAGO: Aí são processos muito
complexos. Em primeiro lugar você ter essa situação que eu já tentei descrever
de você ser extremamente popular na sua época e no entanto não ser legitimado.
Segundo lugar, você pode ser completamente desconhecido na sua época e ser legitimado
a posteriori. E você pode construir
também os próprios elementos da sua legitimação. Por exemplo, eu gosto muito de
ler as correspondências dos modernistas porque eu acho que é nas
correspondências que eles estavam se legitimando. Porque na correspondência de
[Carlos] Drummond para Mário de Andrade, ele estava dizendo: “Olha acabei de
ler o seu livro tal, eu estou achando isso etc. Olha aqui estão alguns
poeminhas meus você poderia dar uma lida”. Aí Mário de Andrade sempre crítica,
vira e diz: “não gostei de tal poema porque você diz ‘vou à cidade’, não tem
sentido ‘vou à cidade’, todas as questões de coloquialismo hoje é capital para
nós, então é: vou na cidade”. Coisas assim.
É nesse jogo entre eles que
foi, a meu ver, uma das formas de legitimação. Hoje a meu ver, uma das formas
de legitimação é você ter uma poética embutida no seu próprio texto trazendo
uma poética dentro do seu próprio texto e esse texto sendo criticado por dentro
ele vai também ser criticado por fora, mas ele já é criticado por dentro, você
mesmo, com seu próprio texto, com os limites dele, com as facilidades dele, com
os jogos dele. A meu ver, então, você está escrevendo uma obra mais forte hoje
em dia. É só para te dizer que não há uma regra para o novo, o que você precisa
é detectar que se nós queremos uma sociedade democrática, se nós queremos, de
certa maneira, uma história plural, se nós queremos uma concepção de poder que
não seja totalitário. A gente vai detectar que o texto chamado manifesto traz
regras, não sei se vocês leram o Manifesto
Futurista: como fazer uma frase, qual é a sintaxe, qual é... Entende? Ou se
você ler o Manifesto da Poesia Concreta.
A poesia concreta simplesmente decidiu que estava dado por terminado o ciclo do
verbo. Tudo bem, o Sr. acha que está dado por terminado o ciclo do verso, eu
tenho grande admiração por isso, mas que isso seja uma regra, aí pronto.
Aí acaba
com a liberdade absoluta.
SILVIANO SANTIAGO: Entende? Acaba com a
liberdade absoluta. Então você está vendo que a própria ideia de manifesto hoje
não faz sentido, é anacrônica a ideia de manifesto hoje. Quer dizer, se vocês
quiserem lançar um manifesto da poesia mineira vai ficar anacrônico,
extremamente anacrônico, provinciano, atrasado. E, no entanto, você pode estar
querendo dizer que está lançando o novo através de um manifesto. Então, nós
vivemos hoje, repito, eu acho que a gente vive uns tempos por um lado muito
chatos, insuportáveis, mas por outro lado a gente está vivendo um tempo também
muito interessante, porque de novo nós estamos tendo a oportunidade de
construir, assim como os próprios modernistas tiveram a possibilidade de
construir.
Quando você pega o livro Pau Brasil do Oswald de Andrade, quando
ele tem a coragem de dedicar o livro assim: “para Blaise Cendras no momento da
descoberta do Brasil”. Quer dizer, cometer esse anacronismo, a gente está
sabendo que ele não está escrevendo aquele livro no momento da descoberta do
Brasil, agora esse anacronismo, a gente está sabendo que ele tem sentido. Não é
um anacronismo gratuito. Você pode até ler da primeira vez e achar que é uma
bobagem. Esse livro foi escrito em 1924, não foi escrito em 1500, esse
anacronismo tem sentido. É que o modernismo é uma segunda descoberta do Brasil.
Houve uma descoberta do Brasil que foi a de Pedro Álvares Cabral e a
colonização portuguesa, horrorosa etc. Agora o cidadão livre brasileiro, o
intelectual brasileiro ele opta por redescobrir o Brasil na Europa, que é o
grande movimento de Oswald de Andrade, ele descobre o Brasil na praça de Clichê
que é o ovo de Colombo. Tá lá no Paulo Prado, ele chama a atenção. É o ovo de
Colombo você descobrir o Brasil na praça de Clichê, é muito importante. Por
quê? O grande perigo de 1922, e a gente se esquece, é que se estava comemorando
os cem anos da Independência do Brasil e havia ainda o ufanismo e nacionalismo
muito forte no Brasil, e que depois vai aparecer no grupo Ânta e vai aparecer no grupo Integralista,
no grupo Curupira e assim
sucessivamente. Então naquele momento a maneira como você vai lutar contra forças
retrógradas era fazendo um elogio da Europa. O que você não poderia fazer em
1500 ou 1700 ou, sobretudo em 1792. Em 1792 eu nunca faria um elogio da Europa
mas em 1924 eu faço um elogio da Europa. Por quê? Porque eu quero atualizar o
saber brasileiro, segundo meridiano da melhor literatura. Então aí você comete
um anacronismo de propósito. Um anacronismo que vai dizer muita coisa vai ser
extremamente rico. Então é a segunda descoberta do Brasil, não é a primeira
não. E esta descoberta, repito, é uma descoberta pelo qual todos nós passamos,
que é a descoberta de uma outra literatura, de uma outra cultura, de uma outra
sociedade, e assim por diante. Porque senão nós nos reduzimos ao
provincianismo, nos reduzimos a nacionalismos estreitos, a essa coisa toda.
Eu estou
curioso com seu novo romance Uma História
de Família. Dá para você adiantar um pouco.
SILVIANO SANTIAGO: Uma das coisas que é
característica minha é que eu não consigo repetir um livro. Cada livro meu é
diferente do outro que, aliás, é um traço de Graciliano Ramos. Se você ler Caetés é diferente de São Bernardo, de Vidas Secas, que é diferente de Angústia, e assim sucessivamente.
Então... Em Liberdade é extremamente
diferente de Stella Mahattan, que é extremamente diferente de O Olhar, e que é extremamente diferente
de Uma História de Família. Uma História de Família para mim ainda é
muito difícil falar sobre ele porque ainda eu não conheço muito bem, eu acabei
de escrevê-lo. Eu posso falar sobre os motivos que me levaram a escrevê-lo.
Foram vários os motivos. Um dos motivos mais importantes é uma constatação um
pouco minha e de todo mundo hoje que é a perda da noção do sentido de família.
Eu acho que ela não deve ser tratada apenas como perda de sentido. Eu sempre
gosto de fazer esses jogos. Qual é o sentido que a família tem no momento em
que ela perde o sentido? Essa pergunta que eu fiz para mim mesmo. E aí eu
descobri o primeiro dado que foi muito importante para mim, é que não há
possibilidade de se escrever a história de uma família. O [romance] como Thomas
Mann escreveu, evolução da família, dos avós, dos pais, dos filhos, etc. Porque
exatamente isto não faz mais sentido hoje. A única coisa que temos
possibilidade hoje é de escrever histórias de famílias. Porque a própria noção
de família se encontra fragilizada. Então, foi esse o ponto inicial e a partir
daí então eu bolei que o narrador tentaria fazer, no sentido de Foucault, uma
arqueologia da família, ou seja, quais os elementos dentro da família com quem
ele manteria hoje um diálogo? Essa que é a família no momento em que ela perde
o sentido. Quais são aqueles? Então ele descobre que ele poderia manter
diálogos com o tio que era louco. Mas só que era um diálogo impossível.
Primeiro, porque o tio era louco e era surdo. Entende? Já na época era
impossível, agora muito mais porque ele já morreu. Então é esse diálogo quase
impossível que ele tenta manter com esse tio surdo. E ao querer manter esse
diálogo ele vai tratando de determinadas questões e aí o livro vai se tornando
altamente simbólico.
Aí de novo essas questões que
eu gosto, não gosto que seja uma coisa direta. Ele vai se tornando altamente
simbólico de duas situações ao meu entender extrema na década de noventa, que é
a experiência da morte e da loucura. Então, o livro é basicamente sobre a morte
e a loucura, quer dizer, quando a gente fala de morte na década de noventa é um
livro direta ou indiretamente sobre a AIDS. Quando olho meu livro de endereços
e em cada letra eu já cortei pelo menos cinco nomes, essa é uma experiência
atroz. Qualquer pessoa que tem uma sensibilidade está vivendo isso de maneira
atroz. E obviamente a gente sabe que isso conduz à loucura, isto conduz a um
desespero muito grande. Como se você não tivesse mais nada em que se agarrar a
não ser se agarrar na morte. É esse lado que eu tento tratar no livro. Eu tento
tratar no livro da experiência da morte e da loucura. Uma coisa positiva, que
isso não é só negativo, existe uma positividade nisso. Existe uma certa
experiência quando você se aproxima disso, que é uma experiência muito difícil
de ser escrita, mas que é altamente enriquecedora. Eu me lembro de uma frase do
Mário de Andrade, que é muito importante para mim, quando ele diz: “a própria
dor é uma felicidade”. Foi uma frase muito importante para mim. De novo essas
estruturas esquizofrênicas etc. O que o Mário de Andrade estava querendo dizer
com isso, a meu ver é uma leitura de Nietzsche, é que mesmo no momento em que a
vida diz não você deve dizer sim à ela. É o que Nietzsche vai chamar em um de
seus livros de um duplo sim à vida. É o sentimento trágico. No momento da maior
dor, você aquela dor não para transformá-la em ressentimento, você trata aquela
dor como uma forma de enriquecimento da sua personalidade, do seu ser, da sua
riqueza de ser humano. Então isso é uma forma de se chegar à felicidade, de
você chegar a uma alegria que é um conceito muito importante em Nietzsche. É
esse sentimento então que eu procuro encontrar nesse tio porque a lembrança
mais forte que eu tenho dele, obviamente se você o ver realisticamente é que
ele ria o tempo todo. Então, eu tento apreender aquele riso dele. É essa
tentativa de apreender essa alegria que ele tinha, entende?, era a pessoa mais
abjeta da casa, eu cheguei a vê-lo acorrentado numa árvore, que ele tinha crises
horrorosas, coisas desse gênero. E no entanto, era uma pessoa que transmitia
alegria numa casa pesadíssima, uma casa fúnebre. Porque o outro lado trágico
dessa coisa toda é que eu perdi minha mãe com um ano e meio, é uma situação
muito confusa, porque era uma casa onde eu não podia me sentir muito bem. Meu
tio estava ali, minha avó estava ali etc. Mas no entanto, naquela casa eu não
me sentia muito bem. Havia uma alegria que não estava na minha vó, que não
estava nos outros tios, mas que estava naquele tio, que era dado como o menos
interessante do grupo. Quer dizer, é esse trabalho todo de arqueologia que eu
tento fazer. Mas é claro que depois eu vou fazer mil ironias em torno disso,
mas isso vai alongar demais a conversa, porque o narrador acaba sendo a pessoa
que menos conhece a família. Aí é uma brincadeira que eu faço com os
modernistas. Porque o intelectual modernista ele era muito pretensioso nesse
sentido, não petulante, pretensioso. É que ele acreditava que ele era o
elemento da família que melhor poderia compreender a família. José Lins do
Rego, Oswald de Andrade etc. E a brincadeira que eu faço é que o intelectual é
aquele que menos compreende os mecanismos da família. Então ele recebe um amigo
da família e esta carta reexplica toda a família para ele e aí é o grande jogo
do livro. É que o narrador vai gradativamente perdendo a voz e no final ele não
consegue narrar mais e o livro termina. Quer dizer não consegue mais narrar a
história de família e aí a história termina.
Samuel
Beckett tem uma frase, que eu acho memorável, ele fala assim: “Cumpre agora
falar de mim. Estou a um passo do meu silêncio”.
SILVIANO SANTIAGO: É isso. Aliás, para dizer a
verdade, o livro tem 110 páginas, mas no projeto inicial ele teria 150 páginas
porque esse narrador ele seria becketiano nas últimas 40 páginas, mas eu o
enfraqueci de tal modo que ele teve que silenciar. Então o livro não acabou da
maneira que eu queria que acabasse. Mas é um livro muito becketiano. Ele começa
a falar de si, descobre que falando de si ele nunca está falando bem de si mas
ele continua a falar e ele vai descobrindo que ao falar de si o outro fala dele
melhor do que ele próprio e na medida em que ele vai descobrindo isso ele vai
se recolhendo ao silêncio, ao desaparecimento, e aí a frase do penúltimo
capítulo ser: “fecho-me em copas ou continuo”. E aí ele se fecha em copas,
porque não dá para ele continuar aquela narrativa. Eu concordo plenamente com
essa frase, ela está muito próxima do meu livro.
De você
também?
SILVIANO SANTIAGO: É. Porque isso é outro dado.
Por exemplo, esse livro aqui [Em
Liberdade] eu diria que é de uma esquerda mais tradicional. Stella Manhattan é uma esquerda mais
libertária, é um livro sobre homossexualidade. E esse livro [Uma História de Família], por exemplo, é
um livro sobre a possibilidade de escrever num momento em que tudo nos conduz
ao silêncio. Então, eu acho que por isso cada livro tem uma estrutura que lhe é
própria.
Agora, o lado mais complicado
do livro e aí começa uma coisa que eu não sei, que eu entrei no quarto escuro é
que ele se passa na cidade onde eu nasci, Formiga, mas Formiga existe como no
romance de Kafka. Formiga é um lugar teórico assim como o castelo de Kafka.
Porque o romance tinha que se passar no interior. Por que o que me interessava
era dar uma visão de Minas. Eu sou neto de imigrantes italianos. É dar uma
visão de Minas que não é a do ouro nem a do ferro nem a do sertão, é a visão do
imigrante italiano. E então, não podia ser a Formiga tal qual é construída pelo
nativo, pelo português que se aclimatou aqui e colonizou aquela região etc.
então, a ação do romance se passa quase todo de tensão. E é dessa tensão que a
cidade é vista. E é dessa tensão que a cidade é compreendida. Então, é uma
Minas... eu acho, eu posso estar enganado mas eu acho que isso nunca foi feita,
ver a Minas do imigrante. E aí eu tive que bolar uma coisa que foi muito
complicada, obviamente uma grande reflexão sobre a minha família, mas não é uma
reflexão sobre isso e aquilo. É que o imigrante enxerga o universo através do
que eu chamo de uma ética da vergonha, porque na ética da vergonha você tenta
ser o mais transparente possível dentro da cidade. Porque a priori você é estigmatizado como
estrangeiro.
No caso do italiano, o
[carcamano]. Então, você é obrigado a ter vergonha de todos os seus atos, você
é obrigado a vigiar todos os seus atos para que você seja igual a todas as
pessoas da terra, e essa vigilância de seus atos vai criando uma ética que eu
chamo de uma ética da vergonha que é a ética da culpa, porque ela é católica. O
grande jogo do livro é esse que acaba sendo uma grande reflexão sobre a questão
da AIDS hoje, entre uma ética da vergonha e uma ética da culpa. Na medida em
que você tenta esconder sua sexualidade, reprimir sua sexualidade, não deixar
ela aparecer, ou você faz aquilo mas se culpabiliza, se auto-destrói, se
auto-flagela etc., então, o livro tenta ser muita coisa ao mesmo tempo. Agora,
se ele vai ser isso...
Só uma
curiosidade literária. Você leu o último livro de João Gilberto Noll, O Quieto Animal da Esquina?
SILVIANO SANTIAGO: Ah! Claro que li. Mas eu
diria que este livro [Uma História de
Família] eu o estou escrevendo desde 1976. O problema é o seguinte: eu
errei, eu fiz um grande equívoco ao escrever este livro. Eu comecei a
investigar tudo sobre Formigas e tudo sobre imigração italiana. Aí eu descobri
que era a maior bobagem porque as Ciências Sociais fazem isto muito melhor hoje
em dia. Então eu abandonei todo esse material. Eu ia fazer um grande romance de
cerca de 400 páginas, meio saga, meio não sei o que. Eu acho que o grande jogo
que eu descobri foi que eu tinha que escrever um romance altamente estilizado e
aí talvez se aparente com a técnica do João Gilberto Noll que também tem livros
estilizados. Ele é um pouco Kafka. As situações são muito poucas, são umas seis
ou sete situações. E essas situações, então, são núcleos muito densos de
significados e essa densidade é que torna o livro polissêmico. Pelo menos é
isso o que eu pretendo, se ele é isso é outro problema. Isso é a minha pretensão:
fazer um livro muito polissêmico, porque são situações que a meu ver as
Ciências Sociais não conseguem chegar até esse ponto. Ela pode descrever as
dificuldades que uma família italiana tem ao se integrar no interior de Minas.
Ela pode descrever o caso de uma família etc. Mas eu acho que elas não
conseguiriam ordenar o relacionamento humano daquela família com a cidade a
partir disso que eu estou chamando de uma ética da vergonha.
Mais uma
pergunta para encerrar. Como crítico literário como você vê a produção poética
na década de oitenta ou a produção mais contemporânea? E que conselhos você
daria a um poeta iniciante?
SILVIANO SANTIAGO: Em primeiro lugar nenhum
conselho. O conselho que eu daria é exatamente ler os livros em que se
aconselha poetas [risos]. Eu acho que há um fenômeno que me interessa muito na
década de oitenta, final de setenta para oitenta, que eu acho que ainda não foi
muito estudado. Eu também não estudei, e eu acho muito importante, que
mereceria muita atenção por parte de um jovem poeta, isso não é uma receita,
mas explica o movimento. Eu acho que no momento em que entrou a abertura, no
momento em que a questão da poesia política, engajada naquele sentido sartreano
já não tinha mais sentido e que ao mesmo tempo houve um esgotamento natural de
uma proposta de vanguarda, tipo poesia concreta, essa coisa toda, eu acho que
sem querer os bons poetas jovens fizeram uma coisa genial: começaram a
traduzir. Todos, Ana Cristina César, Paulo Henriques Brito, todos eles, eu não
citar nomes, basta fazer um levantamento, todos eles fizeram tradução. E aí
aconteceu uma coisa a meu ver fascinante, é que houve um enriquecimento da
dicção poética brasileira a partir da tradução. Porque exatamente as pessoas
estavam traduzindo e estavam retirando do exercício da tradução a
potencialidade da língua portuguesa, potencialidade que ficava desconhecida se
você não fosse obrigado a transpor construções de outra língua para nossa
língua. Eu tenho a absoluta certeza de que Ana Cristina César, se ela não tivesse
traduzido Émile Dickson ela não teria a dicção que ela tem. Entende? Para dar
alguns exemplos, se Paulo Henriques Brito, alguns que eu conheço melhor, alguns
foram até meus alunos, se Paulo Henriques Brito não tivesse traduzido Lawrence
Stevens, a poesia dele não seria o que é. Então, houve um aumento potencial da
língua portuguesa enquanto instrumento de poesia, que lhes foi dado, muito mais
do que a mim, pela tradução. Então, o que eu aconselharia, mas é um conselho
absurdo, é que se fizesse tradução. Em primeiro lugar ler muito bem um grande
poeta, o que é sempre útil e aconselhável. Se você não ler muito bem aquele
grande poeta você não consegue fazer uma boa tradução dele. Em segundo lugar,
você é obrigado a pensar a sua concepção de língua portuguesa que lhe é dado
pela escola, pelo consenso, pela gramática etc. Você é obrigado a repensar
porque você vai recriar aquilo em português. Você vai fazer uma tradução
literal, se você fizer uma tradução literal não vai ter nenhuma graça. Por
outro lado você vai ser obrigado, que é muito importante também a meu ver, pelo
menos foi muito importante na década de oitenta, você vai conhecer a técnica.
Se você quiser traduzir um poeta que escreve decassílabo, você vai ter que
aprender o que é decassílabo, se um poeta rimar, você vai aprender coisa sobre
rima, assonância etc. É um aprendizado a meu ver extraordinário e que apareceu
assim, se não me engano, na década de oitenta e ficou como definidor dessa
riqueza. Há muitas outras razões pelas quais a tradução é útil, ainda que seja
uma tradução para você guardar em casa, sem publicar nem nada, como exercícios,
exercícios, exercícios. Porque você sai da rotina da poesia brasileira, você se
aproxima de um grande poeta universal.
Aconselho que você escolha um
grande poeta, você é quem escolhe. Tem uma frase de Barthes que está no S/Z, se não me engano, que foi muito
importante para mim no momento em que eu estava escrevendo Em Liberdade, que é: quais os textos que eu gostaria de dar como
meus? Agora, só você que sabe. Pode ser Pound para mim, pode ser Valéry para
você, para ela pode ser Baudelaire, é isso que é importante. Você manifesta na
sua escolha um desejo. Entende? Um desejo de que aquilo fosse seu, e você o
está fazendo seu traduzindo-o. Então, eu acho que é o que diria hoje: tente
aprender uma língua estrangeira. De repente são os adjetivos que são colocados
de maneira diferente, são os verbos que são colocados numa posição que você não
espera e aquilo fica na sua cabeça, de repente você está escrevendo um poema e
você pensa: deixa eu colocar o adjetivo ali para ver o que dá e aí você cria
uma estranhamento, para usar um termo dos formalistas russos, você cria um
negócio assim que é o novo, mas não é o novo no fundo por que de onde surgiu
esse novo? De um trabalho com o melhor da tradição ocidental, um grande poeta
da tradição ocidental. Eu acho que é por aí.