Jardel Dias Cavalcanti
Era aproximadamente cinco
horas da manhã de um verão tórrido quando Richard Louise acordou com a boca
seca, indo até a cozinha atrás de um copo de água, andando ainda sob o efeito
do sono pesado. O calor era tanto que decidiu abrir a janela em busca de uma
rajada qualquer de vento. Precisava se refrescar, pois acordara suado.
Ao abrir a cortininha que
se interpunha entre o vidro da janela e o vento tão esperado, percebeu, do alto
do seu segundo andar, lá embaixo, sob a árvore do quintal do vizinho, a
movimentação de um rapaz. Ele deitava uma escada sobre o tronco da árvore,
voltando-se depois para o chão, de onde pegou uma enorme corda grossa. Subiu
pela escada e lançou a corda sobre um dos galhos, possivelmente o mais grosso
da árvore. Richard Louise imaginou que ele estava preparando um balanço.
Decidiu continuar a observação. Aquilo ativava sua curiosidade. Só se perguntava
qual a razão do rapaz fazer isso tão cedo.
Percebeu que não era um
balanço o que o rapaz estava fazendo ao ver o nó que ele acabara de dar na
corda. Agora, mais ativado pela
curiosidade, colou o rosto na janela, para ter certeza do que ele iria fazer. O
rapaz desaparecera por uns minutos, mas voltou imediatamente com um pequeno
banco, onde se sentou munido de uma
caneta e um bloco onde começara a escrever alguma coisa. Com certeza uma carta.
Nada do sol aparecer
ainda. E a curiosidade de Richard Louise só aumentava. O que estaria
escrevendo¿ Porque se mataria tão jovem¿ Sim, agora ele tinha certeza de que o
rapaz iria se enforcar. Mas a sua reação não deveria ser de curiosidade, mas a
de tomar uma atitude e prontamente descer para tentar convencê-lo a não
praticar tal ato ignóbil. No entanto, ficou paralisado na sua posição de
observador e, como um verme que roendo uma goiaba saborosa da qual sente enorme
prazer em aproveitar cada pedacinho da fruta que vai destruindo, anotou em seu
cérebro tudo o que via, cada movimento do rapaz, sua tensão, seu olhar para o
além, sua cabeça se curvando sobre si em enorme dor, a aflição de quem sabe que
pode parar mas continua numa descida perigosa que não terá mais volta.
Porque pará-lo¿ Não, aquilo era uma
experiência excepcional para o observador. Mas
havia algo muito além disso. Uma obsessão maior o colocava na posição passiva
nessa observação do suicida e nesse desejo de acompanhar minuciosamente seus
passos rumo à desgraça total. A sua cabeça vazia, essa folha branca que o perturbava,
agora ia se preenchendo de letras, que viravam palavras, que viravam frases,
que se tornavam um escrito, que ganhava nome de conto, de história, de novela. Com
tudo registrado na cabeça, gozava do espírito preenchido, cheio de ideias,
coisas para escrever. Escreveu. Ele saia do limbo, se tornava alguma coisa, um
escritor, alguém que publicava um livro, que saia nos jornais, que tinha uma
obra, que tinha uma carreira. E nenhuma angústia o perturbava, mesmo sabendo
que tudo isso tinha em si, para sempre, o cheiro de um cadáver. Um cadáver que
ele ajudou a criar e que recriou na literatura.
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Ilustração do texto: "Retrato do artista". Fabricio Nery (coleção particular: jardel dias cavalcanti)
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