Heidegger
visita a peça “Recordações do tempo em que tinha boca”, de Aguinaldo de Souza
Por Jardel Dias Cavalcanti
A
morte enquanto indagação filosófica foi o tema da instigante peça “Recordações
do tempo em que tinha boca”, sob direção de Aguinaldo de Souza, apresentada no
Filo (Festival Internacional de Londrina).
Livremente
inspirada no cinema de Charles Chaplin e no livro “Intermitências da morte”, de
José Saramago, a peça faz do corpo o principal instrumento de comunicação. Os
recursos cênicos são mínimos justamente por isso, para que a mímica nos
transporte para uma situação absurda, a da relação do homem com sua mais
terrível e única certeza: a morte.
Não
podemos deixar de pensar na filosofia de Heidegger durante a apresentação da
peça. Para o filósofo alemão, o homem é um ser jogado no mundo, abandonado à
sua precariedade, perdido e mergulhado na angústia de sua finitude. Seu próprio
ser é indefinido, sendo sua convivência com os outros e com as coisas incerta e
precária. Na busca por apoio, encontra apenas a terrível certeza de que a
morte é inalienável. Imprevisível, mas certa, a morte é assustadora. Quando
chega, é implacável e inadiável na destruição do Ser. Portanto, para Heidegger,
o homem é um ser-para-a-morte.
A
peça de Agnaldo de Souza trafega nesta certeza. Os atores vivem ou em situação
de repetição absurda de seus gestos, como um Godot a espera de nada, ou em
momentos de desequilíbrio e impossibilidade de afirmar qualquer razão para a
vida. A cena mais dramática nesse sentido é a da atriz passando de um sapato de
salto alto a outro, se calçando num desequilíbrio permanente.
Outro
momento forte da peça é quando a lista de mortos anunciada é constituída de
nomes de pessoas da própria plateia. Esta
estratégia aproxima a angústia da morte de todos, destruindo o distanciamento
que a condição de espectador possibilita. O riso amarelo da plateia revela o
resultado positivo da estratégia.
Voltando
ao corpo dos atores: eles falam mais do que tudo. Lucas, Paula e Tainara chaplinianamente tornam
nossas ações cotidianas desprovidas de heroísmo, calcadas em repetições sem
sentido, desprovidas do sublime. Comer, passar o dia nas redes sociais, se
enfeitar. Estratégias para a fuga da certeza inabalável da morte? De nada
adianta, é o que a sôfrega e caricata representação de nossos gestos pelos
atores nos comunica a cada segundo da peça.
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