A exposição “Olhar a(r)mado”,
com pinturas e desenhos de Guilherme Melich, atualmente no Museu de Arte Murilo
Mendes (Juiz de Fora), surpreende de diversos pontos de vista. Cai como uma
luva como homenagem ao museu e ao poeta ao dialogar com o acervo e com a
história afetiva de Murilo Mendes, o que está no jogo do próprio título que foi
dado à mostra.
É oportuno notar como
circunstâncias pessoais podem adquirir uma dimensão pública ao serem elaboradas
mediante uma forma consistente. Refiro-me aos móveis iniciais do trabalho.
Frequentador antigo do museu, Guilherme foi impactado por duas obras do acervo:
o retrato de Ismael Nery pintado por Guignard e um desenho de Murilo Mendes
feito por Flávio de Carvalho. Em ambos, chama a atenção a centralidade do
olhar: melancólico e pensativo de Ismael Nery; multifocal de Murilo Mendes,
modo perspicaz que Flávio de Carvalho adotou para sinalizar a variedade de
perspectivas do poeta e sua obra. Anos se passaram até que Guilherme
materializasse o projeto da exposição, bem pensado, bem articulado, cuja impecável
montagem deixa clara a conexão do conjunto e oferece ao público os elementos básicos
para a fruição e o estudo das questões postas. E o mote foi encontrado também na
obra do próprio Murilo, em um poema de A idade do serrote: “Ver coisas,
ver pessoas na sua diversidade (...) O olho armado me dava e continua a me dar
força para a vida”. O olho armado do poeta, os olhares de Ismael Nery e de
Murilo no desenho de Flávio de Carvalho: estão dados os elementos capazes de orientar
o que foi feito.
Guilherme, que desponta
como um dos jovens e bons artistas da cidade, é sobretudo um retratista exímio,
o que já era notável em seus autorretratos. Mas agora seu amadurecimento
consolida e avança esse talento para retratar pessoas, o que sempre ocupou um
lugar privilegiado em suas preocupações. Como ele próprio diz: “Tenho um
interesse pelo ser humano, e o retrato é a forma como questiono isso” (Mauro
Morais. Retratos dos retratos. Tribuna de Minas, 4 ago. 2019. p. 32).
Tema bastante perigoso
por sua longa e milionária tradição na arte ocidental, a principal ambição de
quem se arrisca nesse terreno talvez seja capturar a “alma” do retratado. E a
estratégia adotada por Guilherme é singular por sua afinidade com os
procedimentos da arte depois do modernismo. Com efeito, a base para os retratos
são principalmente fotografias, o que sugere devolver a elas o que guardam em
potência, o que não conseguiram explicitar de todo. Esse caminho ao contrário
é, a um só tempo, uma homenagem à fotografia que teria supostamente desbancado
tantas tarefas da pintura no passado e sua “superação” ao repropor uma modalidade
de pintura pós-realista como modo de transcendê-la.
A exposição se organiza
em torno de artistas plásticos que retrataram Murilo Mendes: Ismael Nery, José
Maria dos Reis Júnior, Guignard, Portinari, Vieira da Silva, Arpad Szenes,
Flávio de Carvalho, Carlos Bracher, Nívea Bracher e Pedro Guedes. À exceção dos
três últimos, todos os demais foram amigos de Murilo e servem como pontuações
do universo cultural e afetivo do poeta, como salienta Mauro Morais. Os
retratos a óleo por vezes vêm acompanhados de desenhos em preto e branco, feitos
em nanquim, grafite e carvão sobre papel, que podem ou não ter servido como
esboços para as telas. Regra geral, os trabalhos expostos não buscam emular as
técnicas e maneiras dos retratistas, ainda que haja exceções. Refiro-me ao retrato
de Ismael Nery de Guignard, que Guilherme replica com uma sutil mudança de
enfoque: o olhar de Ismael Nery se torna mais soturno e insondável que no
retrato de Guignard. E o vermelho do casaco de Ismael Nery no retrato de
Guignard migrou escurecido e decisivamente para seu rosto no retrato de
Guilherme, acentuando a dramatização. Há também algum diálogo entre o desenho
de Murilo feito por Flávio de Carvalho e um desenho de Guilherme em que retrata
o mesmo Flávio de Carvalho, cujas linhas sobrecarregam seus olhos. E talvez inclusive
entre alguns procedimentos do tracejado de Flávio de Carvalho e outros desenhos
da exposição.
Ismael Nery, segundo
Guignard, 2019 – óleo sobre papel, 35 × 29,5 cm
Não é simples e talvez
nem exatamente necessário classificar a pintura e o desenho de Guilherme. É
evidente que seu trabalho decorre da tradição do expressionismo, mais
particularmente do neoexpressionismo atual, mas não se resume a isso. Por
exemplo, ao adotar uma paleta que traz à memória outro artista de sua
predileção, alheio e muito anterior a esses movimentos, no caso,
especificamente Rembrandt pela preferência declarada de Guilherme pelos tons
terrosos, ocres e sépias, e por certo tipo de efeito de luz. Sem esquecer que a
presença do branco e do preto nas telas nos faz pensar o quanto eles guardam
daquilo que é mais típico do desenho ou de certo período da história da
fotografia. Não é o caso de falar de influências, mas lembrar da afinidade do
projeto de Guilherme com o do exímio retratista Lucian Freud, inclusive já
pintado por Guilherme, que não vão pelo caminho de outros artistas
contemporâneos com suas gritantes distorções, por vezes quase beirando o
caricatural, das figuras, como Francis Bacon, Baselitz, Sentenat, apenas como
exemplos numa infinidade de nomes, ou Iberê Camargo. Este último, talvez o
fantasma que mais assombra Guilherme entre os artistas brasileiros. No fundo, ele
se atém ao terreno do “clássico”, no sentido de buscar algo simbólico em suas
imagens, e distante, portanto, de figurações alegorizadas.
O procedimento geral
foi pintar três telas a óleo de cada artista plástico, bem como do poeta. E a
preferência pela gestualidade da espátula e por generosas quantidades de tinta
confere às telas uma grande carga de relevo, acentuando a aproximação do
retratado de quem o está vendo. Outro aspecto é a relação figura e fundo, em
que são notáveis dois procedimentos bem distintos: extensas regiões abstratas
ou fundos que remetem a certa modalidade de geometrismo, ainda que bastante
esbatido, esgarçado. Este segundo procedimento, de meu ponto de vista, é o que
produz os melhores resultados por criar tensões singulares com os personagens. Em
pelo menos um caso, de Vieira da Silva, vê-se uma clara intenção de capturá-la
ao longo da vida. Há um retrato de Vieira mais jovem, outro em sua meia-idade e
um terceiro com ela bem idosa. Mas outros retratados também são captados em
momentos distintos de suas vidas, como José Maria dos Reis Júnior e Arpad
Szenes. Por vezes, uma mesma fotografia parece ter servido de base para mais de
um trabalho: caso de “A cabeça do poeta” e “Adalgisa Nery e Murilo Mendes”. Por
fim, e ecoando o título, é o olhar, são os olhos o elemento mais importante nos
trabalhos. Janelas da alma, espelhos do mundo, como pensou Leonardo da Vinci, é
principalmente pelos olhos que conhecemos o que nos cerca e nos desnudamos.
Entre tantos trabalhos
da mostra, e adotando a estratégia do pintor, vou me deter em apenas três, como
modo de chamar a atenção para aspectos que, se evidentemente não esgotam,
fornecem alguns elementos para serem pensados outros retratos e desenhos do
conjunto, mesmo que por contraste.
Portinari (I),
2019 – óleo sobre tela, 55 × 50 cm
Em primeiro lugar, um
retrato de Portinari. Ele destoa positivamente da maioria dos trabalhos ao não
adotar de modo sistemático a paleta preferencial de Guilherme. É um quadro
praticamente em azul acinzentado, preto e branco, que inaugura outro campo de
cores a que ele pode se dedicar com fluência, ao mesmo tempo que aproxima
pintura e desenho. O azul também funciona como referência ao próprio Portinari,
que o empregava de forma tão particular. Sobretudo, parece um quadro terminal,
a frieza do azul do fundo é como que a antevisão da morte que cerca a imagem
retratada.
Outro trabalho que se
diferencia é o retrato “Adalgisa Nery e Murilo Mendes”, já citado. É o único
caso na exposição de uma tela com mais de um retratado. Nele Guilherme usa sua
paleta preferida e é dos mais sobrecarregados de camadas de tinta que,
inclusive, ameaça escapar da tela em certos pontos da borda. Jogados ao final,
os traços largos da espátula na roupa de Murilo e nos rostos, e a luz do
branco, em fragmentos de linhas ou pequenos pontos, orientam de forma
consistente a relação entre figuras e fundo. Distanciando-se da fotografia de
base, o fundo não deixa mais entrever o lugar original. Antes multiplica o que
os aproxima nos traços largos da espátula, concentrando-se radicalmente em
quase quadrados entre as duas cabeças, que articulam e potencializam a grande
energia amorosa que os unia. E fica a pergunta se essa leve geometrização é um
modo de se comunicar com as pulsações de linhas e cores de Vieira da Silva.
Por fim, um dos três autorretratos
do artista, “Autorreflexo (III)”, que está entre os melhores expostos. Como uma
carta na manga, Guilherme se inclui na exposição ampliando a galeria dos
afetados pela obra de Murilo Mendes. O retrato distancia-se mais que qualquer
outro de uma representação. Dissolvente, ele temporalmente se situa antes ou
depois de uma configuração nítida da imagem. Entre devir e déjà-vu, ele
nos informa sobre a ilusão e o limite de toda representação, sobre o incaptável
em qualquer subjetividade. Recusando-se a cristalizar uma imagem, trazê-la à
tona, é pura potência, energia movendo-se, inquietação e instabilidade para
nossa ânsia de fixar um caráter. Nada por acaso, o fundo homogêneo aumenta a
impalpabilidade e impenetrabilidade da figura situando-a em lugar algum, sem
passado, presente ou destino, convertida em esfinge. São gratificantes a
suspensão de certezas e a emergência do imprevisível.
Ronald
Polito, 2019