sexta-feira, 16 de agosto de 2019


Revisões do afeto: os retratos de Guilherme Melich
por Ronald Polito


A exposição “Olhar a(r)mado”, com pinturas e desenhos de Guilherme Melich, atualmente no Museu de Arte Murilo Mendes (Juiz de Fora), surpreende de diversos pontos de vista. Cai como uma luva como homenagem ao museu e ao poeta ao dialogar com o acervo e com a história afetiva de Murilo Mendes, o que está no jogo do próprio título que foi dado à mostra.
É oportuno notar como circunstâncias pessoais podem adquirir uma dimensão pública ao serem elaboradas mediante uma forma consistente. Refiro-me aos móveis iniciais do trabalho. Frequentador antigo do museu, Guilherme foi impactado por duas obras do acervo: o retrato de Ismael Nery pintado por Guignard e um desenho de Murilo Mendes feito por Flávio de Carvalho. Em ambos, chama a atenção a centralidade do olhar: melancólico e pensativo de Ismael Nery; multifocal de Murilo Mendes, modo perspicaz que Flávio de Carvalho adotou para sinalizar a variedade de perspectivas do poeta e sua obra. Anos se passaram até que Guilherme materializasse o projeto da exposição, bem pensado, bem articulado, cuja impecável montagem deixa clara a conexão do conjunto e oferece ao público os elementos básicos para a fruição e o estudo das questões postas. E o mote foi encontrado também na obra do próprio Murilo, em um poema de A idade do serrote: “Ver coisas, ver pessoas na sua diversidade (...) O olho armado me dava e continua a me dar força para a vida”. O olho armado do poeta, os olhares de Ismael Nery e de Murilo no desenho de Flávio de Carvalho: estão dados os elementos capazes de orientar o que foi feito.
Guilherme, que desponta como um dos jovens e bons artistas da cidade, é sobretudo um retratista exímio, o que já era notável em seus autorretratos. Mas agora seu amadurecimento consolida e avança esse talento para retratar pessoas, o que sempre ocupou um lugar privilegiado em suas preocupações. Como ele próprio diz: “Tenho um interesse pelo ser humano, e o retrato é a forma como questiono isso” (Mauro Morais. Retratos dos retratos. Tribuna de Minas, 4 ago. 2019. p. 32).
Tema bastante perigoso por sua longa e milionária tradição na arte ocidental, a principal ambição de quem se arrisca nesse terreno talvez seja capturar a “alma” do retratado. E a estratégia adotada por Guilherme é singular por sua afinidade com os procedimentos da arte depois do modernismo. Com efeito, a base para os retratos são principalmente fotografias, o que sugere devolver a elas o que guardam em potência, o que não conseguiram explicitar de todo. Esse caminho ao contrário é, a um só tempo, uma homenagem à fotografia que teria supostamente desbancado tantas tarefas da pintura no passado e sua “superação” ao repropor uma modalidade de pintura pós-realista como modo de transcendê-la.
A exposição se organiza em torno de artistas plásticos que retrataram Murilo Mendes: Ismael Nery, José Maria dos Reis Júnior, Guignard, Portinari, Vieira da Silva, Arpad Szenes, Flávio de Carvalho, Carlos Bracher, Nívea Bracher e Pedro Guedes. À exceção dos três últimos, todos os demais foram amigos de Murilo e servem como pontuações do universo cultural e afetivo do poeta, como salienta Mauro Morais. Os retratos a óleo por vezes vêm acompanhados de desenhos em preto e branco, feitos em nanquim, grafite e carvão sobre papel, que podem ou não ter servido como esboços para as telas. Regra geral, os trabalhos expostos não buscam emular as técnicas e maneiras dos retratistas, ainda que haja exceções. Refiro-me ao retrato de Ismael Nery de Guignard, que Guilherme replica com uma sutil mudança de enfoque: o olhar de Ismael Nery se torna mais soturno e insondável que no retrato de Guignard. E o vermelho do casaco de Ismael Nery no retrato de Guignard migrou escurecido e decisivamente para seu rosto no retrato de Guilherme, acentuando a dramatização. Há também algum diálogo entre o desenho de Murilo feito por Flávio de Carvalho e um desenho de Guilherme em que retrata o mesmo Flávio de Carvalho, cujas linhas sobrecarregam seus olhos. E talvez inclusive entre alguns procedimentos do tracejado de Flávio de Carvalho e outros desenhos da exposição.

Ismael Nery, segundo Guignard, 2019 – óleo sobre papel, 35 × 29,5 cm


Flávio de Carvalho, 2019 – nanquim e grafite sobre papel, 51,5 × 42 cm

Não é simples e talvez nem exatamente necessário classificar a pintura e o desenho de Guilherme. É evidente que seu trabalho decorre da tradição do expressionismo, mais particularmente do neoexpressionismo atual, mas não se resume a isso. Por exemplo, ao adotar uma paleta que traz à memória outro artista de sua predileção, alheio e muito anterior a esses movimentos, no caso, especificamente Rembrandt pela preferência declarada de Guilherme pelos tons terrosos, ocres e sépias, e por certo tipo de efeito de luz. Sem esquecer que a presença do branco e do preto nas telas nos faz pensar o quanto eles guardam daquilo que é mais típico do desenho ou de certo período da história da fotografia. Não é o caso de falar de influências, mas lembrar da afinidade do projeto de Guilherme com o do exímio retratista Lucian Freud, inclusive já pintado por Guilherme, que não vão pelo caminho de outros artistas contemporâneos com suas gritantes distorções, por vezes quase beirando o caricatural, das figuras, como Francis Bacon, Baselitz, Sentenat, apenas como exemplos numa infinidade de nomes, ou Iberê Camargo. Este último, talvez o fantasma que mais assombra Guilherme entre os artistas brasileiros. No fundo, ele se atém ao terreno do “clássico”, no sentido de buscar algo simbólico em suas imagens, e distante, portanto, de figurações alegorizadas.
O procedimento geral foi pintar três telas a óleo de cada artista plástico, bem como do poeta. E a preferência pela gestualidade da espátula e por generosas quantidades de tinta confere às telas uma grande carga de relevo, acentuando a aproximação do retratado de quem o está vendo. Outro aspecto é a relação figura e fundo, em que são notáveis dois procedimentos bem distintos: extensas regiões abstratas ou fundos que remetem a certa modalidade de geometrismo, ainda que bastante esbatido, esgarçado. Este segundo procedimento, de meu ponto de vista, é o que produz os melhores resultados por criar tensões singulares com os personagens. Em pelo menos um caso, de Vieira da Silva, vê-se uma clara intenção de capturá-la ao longo da vida. Há um retrato de Vieira mais jovem, outro em sua meia-idade e um terceiro com ela bem idosa. Mas outros retratados também são captados em momentos distintos de suas vidas, como José Maria dos Reis Júnior e Arpad Szenes. Por vezes, uma mesma fotografia parece ter servido de base para mais de um trabalho: caso de “A cabeça do poeta” e “Adalgisa Nery e Murilo Mendes”. Por fim, e ecoando o título, é o olhar, são os olhos o elemento mais importante nos trabalhos. Janelas da alma, espelhos do mundo, como pensou Leonardo da Vinci, é principalmente pelos olhos que conhecemos o que nos cerca e nos desnudamos.
Entre tantos trabalhos da mostra, e adotando a estratégia do pintor, vou me deter em apenas três, como modo de chamar a atenção para aspectos que, se evidentemente não esgotam, fornecem alguns elementos para serem pensados outros retratos e desenhos do conjunto, mesmo que por contraste.



Portinari (I), 2019 – óleo sobre tela, 55 × 50 cm

Em primeiro lugar, um retrato de Portinari. Ele destoa positivamente da maioria dos trabalhos ao não adotar de modo sistemático a paleta preferencial de Guilherme. É um quadro praticamente em azul acinzentado, preto e branco, que inaugura outro campo de cores a que ele pode se dedicar com fluência, ao mesmo tempo que aproxima pintura e desenho. O azul também funciona como referência ao próprio Portinari, que o empregava de forma tão particular. Sobretudo, parece um quadro terminal, a frieza do azul do fundo é como que a antevisão da morte que cerca a imagem retratada.





Adalgisa Nery e Murilo Mendes, 2018 – óleo sobre tela, 60 × 80 cm

Outro trabalho que se diferencia é o retrato “Adalgisa Nery e Murilo Mendes”, já citado. É o único caso na exposição de uma tela com mais de um retratado. Nele Guilherme usa sua paleta preferida e é dos mais sobrecarregados de camadas de tinta que, inclusive, ameaça escapar da tela em certos pontos da borda. Jogados ao final, os traços largos da espátula na roupa de Murilo e nos rostos, e a luz do branco, em fragmentos de linhas ou pequenos pontos, orientam de forma consistente a relação entre figuras e fundo. Distanciando-se da fotografia de base, o fundo não deixa mais entrever o lugar original. Antes multiplica o que os aproxima nos traços largos da espátula, concentrando-se radicalmente em quase quadrados entre as duas cabeças, que articulam e potencializam a grande energia amorosa que os unia. E fica a pergunta se essa leve geometrização é um modo de se comunicar com as pulsações de linhas e cores de Vieira da Silva.



Reflexo (III), 2019 – óleo sobre papel, 25,5 × 25,5 cm

Por fim, um dos três autorretratos do artista, “Autorreflexo (III)”, que está entre os melhores expostos. Como uma carta na manga, Guilherme se inclui na exposição ampliando a galeria dos afetados pela obra de Murilo Mendes. O retrato distancia-se mais que qualquer outro de uma representação. Dissolvente, ele temporalmente se situa antes ou depois de uma configuração nítida da imagem. Entre devir e déjà-vu, ele nos informa sobre a ilusão e o limite de toda representação, sobre o incaptável em qualquer subjetividade. Recusando-se a cristalizar uma imagem, trazê-la à tona, é pura potência, energia movendo-se, inquietação e instabilidade para nossa ânsia de fixar um caráter. Nada por acaso, o fundo homogêneo aumenta a impalpabilidade e impenetrabilidade da figura situando-a em lugar algum, sem passado, presente ou destino, convertida em esfinge. São gratificantes a suspensão de certezas e a emergência do imprevisível.

Ronald Polito, 2019

terça-feira, 16 de abril de 2019

O REENCONTRO - CONTO




Foi só eu colocar o pé na rua, dar alguns passos, olhar o céu para ver a possibilidade de chuva, ajeitar a bolsa no ombro e lá estava ele vindo no passeio, na minha direção. Inicialmente não percebi quem era, afinal 20 anos se passaram. Algo do seu porte ainda se conservava, apesar do corpo mais macilento e os cabelos brancos. Eu o reconheci antes de ser reconhecida por ele. Vejo-o olhando para mim como os homens olham para uma mulher que os atrai: mede meu corpo de cima para baixo, depois retoma o olhar para cima. Agora sim, me reconheceu. Faz-se de surpreso, o tradicional beijo no rosto, elogio sobre minha aparência. Acredita que ainda persiste uma certa intimidade, mesmo passados tanto anos, que o permite segurar minha mão, tocar meus braços nus. Gelo por dentro e mil imagens voltam a me possuir. O toque de sua mão faz retornar a sensação do calor do seu corpo, de nossos banhos nus e seus gemidos ao me pegar por trás sob a água morna, as várias camas onde me possuiu e onde empesteamos o lençol com o cheiro do nosso sexo, as posições às quais me submeti numa soma de prazer e susto. No entanto, estou sóbria, faço perguntas tradicionais que me são devolvidas. Casada? E os filhos? Trabalhando? Continuamos mantendo a racionalidade numa conversa banal. A intimidade, que pensa ainda ser um direito dele, o faz comentar sobre meu corpo, de como estou mais atraente: “não perdeu a sensualidade com a idade, como os bons vinhos”, emenda sorridente. Devolvo com mais parcimônia, você também está ótimo. Penso: ele ainda está apreciável. Não larga minha mão, desculpa-se perguntando onde está a aliança, já que falei que estou com alguém. Não uso, para que usaria, digo-lhe, com a corrente de calor de sua mão me penetrando docemente. Ele não vê problema, está próximo, parece que quer encostar-se em mim, abraçar meu corpo como fazia sempre, roçando seus lábios no meu pescoço e falando no meu ouvido aquelas coisas que uma mulher adora ouvir quando está se entregando. No entanto, mantém a distância mínima. Também sei me colocar entre o que o desejo quer e o que eu tenho que representar como não desejo. Falar banalidades serve para isso, ser esse pequeno muro entre ele e eu, entre o que eu quero realmente, o que ele quer realmente, e o que não podemos deixar acontecer. Tantos anos se passaram e eu gostaria de saber como seria outra vez ouvir seus gemidos. Imagino o que se passa na cabeça dele, talvez fazer melhor o que não fez tão bem antes, abusar mais, quem sabe. E eu, me soltar mais, afinal os anos nos ensinam alguma coisa. O tempo está bom hoje, não é? Sim, por isso estou saindo para dar um passeio. Fazer umas compras. Eu tenho um trabalho para fazer. Está morando aqui perto? Sim. Que bom ter cruzado por essa rua e ter te encontrado. Bom te rever também. Ele quer algo mais? Olha meus pés, exibidos numa sandália que os deixa nus, repara em minhas curvas e seios. Olhos passando rápido aqui e ali, como em desespero, mas discretamente. Talvez pense, porque eu a deixei escapar de mim? Eu reparo nos pelos do seu braço, sua barriga mais proeminente, seu peito com cabelos escapando da camisa. Como o tempo passa! Sim, exclamo também. Ele toca meu braço, já me sinto aberta para ele. Ele não sabe disso, pois mantenho a distância necessária, sempre, por mais que eu esteja me derretendo, dentro do jeans apertado, sob seu toque leve. Volta a segurar minha mão, mais forte, já me possuindo inteira. Eu percebo que ele gostaria... um escritor disse que uma mulher percebe uma ereção a cem metros de distância. Ilusão, estou sonhando, apenas um toque entre nossas mãos? Nos despedimos. A gente se vê por aí. Sim, qualquer hora a gente acaba se encontrando outra vez aqui na rua. Bom, preciso ir. Ok. Me beija o rosto, como se quisesse beijar minha boca. Beijo seu rosto, como se quisesse beijar sua boca. Cada um vai para uma direção. Gostaria de virar para ver se ele está me olhando, afinal, sempre me apreciou por trás. Volto para casa horas depois dessa despedida, deito na cama, coloco o travesseiro entre as coxas e sonho.       

(Jardel Dias Cavalcanti / abril 2019)

(Imagem: Ronald Polito)

quarta-feira, 18 de outubro de 2017

ARTE E MORAL - Terror À Vista - Por Jorge Coli

PRAXITELES Cnidus_Aphrodite.jpg
Terror à vista
Por moralismo torpe, pessoas decidem eliminar a reflexão e neutralizar a arte

Refletir pressupõe não só ter consciência de si mesmo, mas também consciência do outro. Com a reflexão, o pensamento inclui, em seu exame, aquilo que o outro é. Ao levar o outro e suas razões em conta, o pensamento original se modifica, desviando-se da direção primitiva. A etimologia ensina que flexus, em latim, de onde vem a reflexão, quer dizer vergar, dobrar. Ou seja, abandonar a linha reta na qual caminhavam as convicções.

A reflexão pertence ao domínio da consciência e do conceito. Por exemplo, se eu vivesse no século 17, estaria convencido de que a Terra é fixa no centro do universo. Mas alguém (no caso, Galileu) traz para mim argumentos e provas contrárias a essa ideia. Então reflito, mudo minha concepção. Se, depois de conhecer as razões de Galileu, eu me mantivesse na convicção anterior, permaneceria em erro.

Mas existe um modo de reflexão que não é abstrato e vai além das argumentações claras. Este modo, bem mais complexo do que o primeiro, é proporcionado pela arte.

A arte não estimula em nós apenas as faculdades racionais. Causa impactos, provocando modificações em nossa sensibilidade e nossas emoções. Atua de modo profundo em nosso cerne, nossas entranhas, nossas contradições, nossos desejos e nossos medos.

Nunca é simples e nítida. Pode ser bela, sinistra, erótica, repulsiva e muito mais. Ultrapassa sempre as intenções do artista, mesmo as mais claras e racionais; pode mesmo negá-las e contradizê-las.

A arte, tantas vezes, nos choca. Abrigávamos um conjunto de sentimentos pacificados e, de repente, uma obra vem perturbá-los. Nós ou a recusamos, e permanecemos imóveis em nós mesmos, ou a aceitamos, e ampliamos os poderes compreensivos de nossa sensibilidade.

Há cerca de 2.400 anos, os habitantes da ilha de Cos encomendaram a Praxíteles uma estátua para o templo de Vênus. Ele figurou a deusa despida, preparando-se para o banho de purificação. Tomou, diz-se, a linda cortesã Frineia como modelo. Ora, as esculturas gregas não tinham o hábito de figurar mulheres sem roupa, e os sacerdotes recusaram a obra por ser indecente. Está aí um caso antigo e célebre de escândalo moralista.

Mais lúcidos, os habitantes de Cnido compraram a estátua, que se impôs logo como obra-prima absoluta. Era erótica a Vênus de Praxíteles? Era. Conta-se que um jovem grego, alucinado pela beleza da escultura, escondeu-se no templo para —como dizer?— gozar solitariamente daquela soberba sensualidade.

Não preciso aqui enumerar os escândalos, sexuais ou não, que as obras de arte provocaram, nem seria possível contar todos. É o papel delas: assim como o conhecimento, a arte é subversiva.

Sabemos, os regimes totalitários e os fundamentalismos religiosos não gostam de inquietações que perturbem o pensamento único. Odeiam contradições e dúvidas. Por isso, controlam o conhecimento e submetem a arte à censura.

No Brasil, hoje, pessoas  se recusam a pensar o outro, que se negam a entender o que lhes escapa, invadem museus em nome de um moralismo torpe (o MAM-SP, instituição contra a qual investiu uma horda de trogloditas) e atacam exposições que incomodam.

Pior ainda, instauram a autocensura, pois financiadores e instituições temem escândalos. Isso já ocorreu: não apenas a exposição Queermuseufoi abreviada em Porto Alegre, como o Museu de Arte do Rio, o MAR, que deveria recebê-la, renunciou, cedendo às pressões da prefeitura carioca.

Ao mesmo tempo, o Theatro Municipal do Rio, entidade pública, em princípio laica, anuncia um programa com o seguinte conteúdo: "O Renascer Praise nasceu de duas vontades que combinaram: a de Deus, em querer abençoar o povo e habitar no meio dele (porque a Bíblia diz que Deus habita no meio dos lo3uvores), e a vontade da Igreja Renascer e da bispa Sonia, em adorar ao Senhor de todas as formas, com todos os instrumentos e ritmos".

Simultaneamente, multiplicam-se as perseguições às religiões afro-brasileiras.

Em nome do moralismo e da fé, essas pessoas decidem eliminar a reflexão e neutralizar os poderes da arte. Quanto mais submissos, melhor. Têm base política impressionante e poder gigantesco. Aceleraram de dois anos para cá. Em meio à corrupção desenfreada, utilizam-se de instintos conservadores primários para manipulações e alianças políticas que lhes permitem subir cada vez mais.

Parece-me claro: se nada for feito, logo viveremos sob uma teocracia fundamentalista cujo obscurantismo se iguala à sem-vergonhice mais sórdida e oportunista.

jorge coli

É professor titular de história da arte na Unicamp e autor de "O Corpo da Liberdade" (Cosac Naify).
Obs: Texto pulicado na Folha de São Paulo em 15/10/2017

quarta-feira, 11 de outubro de 2017

HÁBITOS ERÓTICOS - por JORGE COLI

HÁBITOS ERÓTICOS - por JORGE COLI


Todas as obras de arte são eróticas. Foram feitas para os sentidos e para a imaginação. Estão lá para nos dar prazer, seja de forma direta, seja de forma oblíqua, seja de forma perversa. Até um Mondrian. Até os branco sobre branco de Malévich. Sobretudo o branco sobre branco de Malévich, diria um mais brejeiro.




Malévitch- Quadrado branco sobre branco

Isso tudo é segundo, terceiro, quinto, décimo grau. Aqui, o que se trata, pelo o que eu entendi do que me pediram, é outra coisa, franca, sem muito disfarce. É séquiço, como diria a falecida Rê Bordosa. Não explícito, está claro, que a Bravo! é uma revista de família. Mas adulando o baixo-ventre.

Nem pensar em ser objetivo. Eu próprio não escolheria o branco sobre branco do Malévich, embora o brejeiro de serviço possa estar sendo sincero. No país do erotismo, existe de tudo. 


Parto da idéia de um erotismo mais direto. Tenho que eliminar, assim, toda a arte moderna, a arte de vanguarda. Ela tratou de sexo, está claro, tantas vezes. No entanto, é elevada demais, intelectual demais, sofisticada demais para oferecer-se como estímulo. O erotismo dos surrealistas é mental; as obsessões de Picasso são sinais, são marcas inquietas e, no final de sua vida, angustiadas e violentas explosões dos seus desejos. Contudo, não estão lá para estimular os apetites de ninguém. As Demoiselles d’Avignon eram prostitutas e estão nuas. Mas quem jamais olhou aquilo com apetite erótico nos olhos?



Picasso - Senhoritas de Avignon

Os artistas contemporâneos que enfrentam a sexualidade terminam por melhor esvaziá-la. Em suas fotos, Mapplethorpe eleva os motivos mais obscenos à pureza da forma, uma pureza quase intangível, clássica. A pornografia continua ali, e alguns puritanos particularmente obcecados censuraram, condenaram e expulsaram essas imagens de exposições. É preciso ter muito recalque na cabeça para ver nelas a obscenidade. Pois perderam a força de desejo. O erotismo é que fortalece a obscenidade.




Mapplethorpe

As vanguardas, na verdade, eliminaram o erotismo que triunfava nos salões de pintura, nas academias. Era um mar de nus maravilhosos e descarados. Haverá pintura mais safada do que aquele quadro de Oscar Pereira da Silva, na Pinacoteca do Estado de São Paulo? É uma tela vertical, grande. Representa uma escrava romana (escrava: pronto, posso ir ao mercado, comprar, levar para casa e fazer dela o que eu quiser) de pé, nua, linda, com o olhar despudorado, convidativo. Em volta do pescoço, tem uma tabuleta onde se lê: virgo (virgem). Quadro feito com a intenção cristalina de provocar delírios sexuais imaginários.

Ou então, o Rolla, de Gervex, que Huysmans tratou, em 1878, de “tela abjeta e priápica”. Rolla (não posso fazer nada, é o nome do personagem, e deve ser pronunciado com acento no a, assim: Rollá), o homem, perto da janela, contempla um nu adormecido, pintado com extraordinário sentimento da epiderme e das carnes: um esplendor absoluto. A história vem de Musset: mistura erotismo, ruína financeira e suicídio. Os devaneios sensuais do século XIX iam à fervura com o mito da mulher fatal.


Henri Gervex- Rolla

A arte do século XVIII está saturada de erotismo. De Fragonard, Fogo na pólvora, em que um anjinho leva uma tocha ao sexo de da jovem que dorme para provocar-lhe sonhos vívidos; a Gimblette, no qual um cachorrinho afaga, com seu rabinho, o sexo nu de sua dona. De Boucher, Odalisca, que deve ter sido uma amante de Luís XV, e que exibe seu traseiro em meio a sedas e veludos, como uma jóia num escrínio. Mas o século XVIII tem lençóis demais, travesseiros demais, é empoado demais.




Fragonard – O fogo ao pó


Fragonard- Menina com o cão


Boucher - Odalisca


Nisso, é diferente do renascimento florentino, para quem a dimensão erótica é disciplinada pela secura do desenho. Os maneiristas foram mestres a partir desses princípios, e a primeira obra na qual eu pensei, antes de começar a escrever este artigo, foi A Luxúria descoberta pelo Tempo, de Bronzino, pintada no século XVI, que está na National Gallery, de Londres. É uma imagem em princípio moralizadora, destinada a mostrar os horrores do vício que os prazeres podem acarretar. 


Bronzino – Alegoria da luxúria...

Em princípio, apenas. Porque sua composição põe em evidência, dentro do discurso alegórico, a relação entre Venus e Cupido, entre a mãe e o filho.  O enlace é indisfarçável, as línguas se tocam, o bico do seio vem apertado entre os dedos da mão direita do menino. Panofsky (em Ensaios de iconologia) propõe uma análise do quadro. Assinala que Cupido está ajoelhado numa almofada, símbolo da luxúria. No entanto, diz também que o jovem deus é assexuado. Nada menos evidente. O velho e pudico professor fechou os olhos à posição inequívoca do rapaz, com as pernas afastadas e a bundinha arrebitada, convidativa, muito oferecida aos olhares de todos.

Quanto ao erotismo da Antiguidade, ele é eminentemente masculino, e o Fauno Barberini, da Gliptoteca de Munique, deve ser o seu apogeu.



Fauno Barberini


Enfim, depois de muitas voltas, escolhi. A obra mais erótica, é o Êxtase de Santa Teresa, do Bernini, em Roma, na Igreja de Santa Maria della Vittoria. O artista partiu da descrição que fez a própria santa de sua visão: um anjo, “formosíssimo”, carregando um dardo de ouro, que se punha “algumas vezes a metê-lo pelo meu coração adentro, de modo que chegava às entranhas”, misturando prazer e dor. Ela diz ainda: “O corpo fica despedaçado, incapaz de mover os pés e os braços. (...) Dá uns gemidos, baixinhos pela falta de forças, mas bem altos pelo sentimento”.

Nada mais erótico, em todos os sentidos, incluindo o mais elevado, que é o amor divino. Bernini esculpe a santa sob a agitação do hábito, mostrando apenas o pé esquerdo nu, a mão que pende, a boca entreaberta, o rosto transfigurado pelo desejo. O anjo da visão revela mais generosamente suas formas. 




Bernini – Êxtase de Santa Tereza, detalhe e orgasmo feminino


Trata-se de uma escultura, arte que, por princípio, atrai a mão de quem contempla. Mas Bernini frustrou o toque: dispôs a cena no alto, como se anjo e santa levitassem, emoldurados por um palco de mármore. O espectador fica atraído pelo inaccessível, o que exaspera ainda mais o desejo pelo objeto. 


É melhor assim. A santa e o anjo: Venus e Cupido, renovados pela sensibilidade católica nos tempos do barroco. Entre Teresa e o enviado de Deus, tal como Bernini nos mostra, há uma conexão invisível, um orgasmo divino, uma densidade tão fortemente erótica, que é preferível ficar à distância, contemplando, e não atrapalhar a união dos dois.